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Resenha crítica do filme “Dos homens e dos Deuses”

Dos homens e dos Deuses é um filme francês, do ator, diretor e roteirista francês Xavier Beavouis e de Etienne Comar.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

“Dos homens e dos Deuses” é um filme francês, do ator, diretor e roteirista francês Xavier Beavouis e de Etienne Comar. Ganhou o grande prêmio do júri do Festival de Cannes (2010). O filme conta a história real dos nove monges trapistas do Mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, localizado em Tibhirine, fundado na década de 1960, numa afastada localidade no norte da Argélia, dos quais sete foram sequestrados em 27 de Março de 1996 e decapitados por um comando terrorista da GIA em 21 de Maio. Cabe destacar, antes de qualquer coisa, que "Trapista" é um "apelido" da "Ordem Cisterciense da Estrita Observância ". Este apelido surgiu justamente do fato de que seu primeiro mosteiro foi a Abadia de La Trappe, não tem relação com "trapos" ou com o fato dos monges serem "esfarrapados", confusão muito comum, um "mito" acerca dos trapistas. Os trapistas são monges beneditinos cenobitas, isto é, vivem em comunidade, o que os difere, por exemplo, dos monges cartuxos, que são eremitas, isto é, religiosos de vida solitária.

Confesso que não esperava tamanha qualidade do texto, e, claro nem imaginei, ao começar a assistir o referido filme que iria me surpreender, me emocionar, comover. Além disso, o fato de tratar-se de uma história real deixou-me boquiaberta, pelo fato de pelo que li sobre esses homens, a história ter sido bastante fiel, e contata de uma forma singela, o que me encantou.

A história baseada na vida dos nove monges e da sua “preparação” para a morte impressiona a qualquer um que assisti-la, um verdadeiro exemplo de humanidade, fé e coragem.

O começo da produção busca ilustrar a harmonia existente entre a comunidade e os monges residentes no mosteiro de Atlas, seu cotidiano numa aldeia pobre da Argélia, carente de quase tudo, onde os laços de amizade da população local com esses religiosos nos fazem refletir.     Embora religiosos, o filme demonstra muito bem como os monges não tinham intenção de converter nenhuma pessoa da vila, todos muçulmanos, atendiam a todos sem restrições ou exigências.

Durante o filme podemos observar que embora tenham uma relação próxima com os moradores da vila apenas os monges estão presentes nos ritos religiosos, demonstrando a tolerância religiosa existente ali. Alguns muçulmanos, profundamente religiosos, paulatinamente começam a frequentar o mosteiro. Em resultado disto, um grupo de diálogo cristão-muçulmano, o Ribat (uma palavra árabe que significa "ligação") se formou, e se encontravam regularmente no mosteiro para oração e discussão, também é mostrado no filme a relação íntima entre alguns membros dessa comunidade e os monges, que frequentavam suas residências, participavam de festas etc.

A história tem início no ano de 1993, contando de certa forma a transição de uma Argélia pós-colonial, contudo a produção se mostra sem aspirações de fomentar uma narrativa sobre a questão política existente neste contexto. A paz  nessa comunidade começa a entrar em risco justamente neste período, quando tem início a disputa entre diversas facções políticas na Argélia: governo, socialistas, muçulmanos e extremistas, conflito que teve seu ápice com o assassinato, em 1993, de um grupo de trabalhadores Croatas. Tendo como personagens principais o superior dos monges, frei Christian de Chergé (Lambert Wilson), eleito o líder do grupo, estudioso da Bíblia, mas também do Corão que acreditava que a sua missão era continuar naquela vila, e também frei Luc (Michael Lonsdale), o médico, idoso e doente, que curava aldeãos, mas também terroristas, e que não se negava a ajudar todas as pessoas que o procuravam em busca de ajuda,  os  outros monges complementam a imagem de comunidade, de comunhão, e, o mais interessante, ao longo do filme demonstram as suas dúvidas, anseios, aflições, o medo de morrer, a possibilidade de fugir, de regressar a França, às suas famílias,  apesar de  implicitamente, saberem qual a sua missão, eles refletiam muito sobre quais as decisões certas a se tomar, demonstrando no decorrer de todo o filme os vícios e virtudes da “pessoa” humana.

Suscita nossa reflexão, principalmente pelo fato de tratar-se de religião, conflitos religiosos, quando estamos habituados a ver atrocidades serem cometidas em nome da religião, os monges tinham sido sempre muito respeitosos do povo, da cultura e da religião locais, o que nos leva a questionar o porquê de tanta intolerância se todos poderiam viver em paz respeitando a religiosidade alheia como eles e nos deixa mais indignados com o desfecho da história.

Uma das sequências mais interessantes da produção mostra a visita do líder dos terroristas, invadindo o mosteiro de forma autoritária e exigindo que o médico (Frei Luc) o acompanhasse para tratar um dos seus homens que tinha sido ferido, e, é confrontado por frei Christian de Chergé , que o informa de maneira calma, mas firme que ali não podem entrar armas, pois trata-se de um local de paz, um templo, e sobre os medicamentos ele diz: “eu não posso dar o que não tenho”  informando que terá o mesmo tratamento dado a comunidade –  ainda cita o Corão e para surpresa daqueles que esperavam uma reação agressiva por parte do terrorista, ele aperta a sua mão e acaba por aceitar a negativa, Frei Christian lhe diz que é a Noite de Natal, na qual se comemora o nascimento do Príncipe da Paz, em minha opinião uma das cenas mais emocionantes, e claro, não posso deixar de citar aqui a cena em que Frei Christian reconhece o corpo do mesmo terrorista, quando levado pelos militares e reza por sua alma, outro exemplo de fé e tolerância.

Vale destacar os momentos de tensão em que os monges são aconselhados pelo próprio governo argelino a regressarem a França, contrapostos com a vontade expressa da comunidade que não os queria ver partir, o medo os assolava, e esses homens os transmitiam uma sensação de segurança, afinal neste período morreram mais de 150 mil pessoas. Um dos monges, aparece uma sequência, atormentado, rezando durante a noite, gritando por ajuda, acaba procurando Frei Christina, que o aconselha  a expressar as suas dúvidas e o orienta encontrar a paz que, por momentos, havia perdido.

Outro momento inesquecível do filme é o momento em que ao som da música de Tchaikovsky, num velho rádio que toca o Lago dos Cisnes, há uma lindíssima associação à Última Ceia, na qual os monges abrem duas garrafas de vinho,  os monges aparecem um a um, a sorrir, a chorar, explicitando sua fragilidade, diante do seu destino e conformando-se.

Nas últimas cenas de “Dos Homens e dos Deuses”, no meio da noite, os monges são raptados – à exceção do frei mais velho, que se esconde de baixo da cama, demonstrando a tão humana característica do medo e da fraqueza, e que até mesmo esses homens sucumbem ao temor da morte – são levados como reféns, cogitei que em sequência viriam cenas das atrocidades sofridas por eles, mas enganei-me.      Destaca-se que não aparecem cenas explícitas de violência, ferimentos, sangue, nada disso evidencia-se, destaca-se o branco da neve que submerge os últimos passos dos monges nesta terra, e a leitura da carta testamento deixada por frei Christian, escrita antes do rapto, e na qual expressa a sua decisão, explica suas motivações, o reconhecimento da vida dos seus irmãos, seu amor pelo país, com os seus ideais corânicos, a sua espiritualidade e o seu Deus que, afinal, em vez de dividi-los, se apresentou como único, realmente comovente.

Ao assistir esta belíssima obra, lembrei-me de outra produção que assisti há muito tempo atrás, “Cruzada” ou “Kingdom of Heaven” estrelada por Orlando Bloom, dirigida por  Ridley Scott, lembrei da intolerância, das atrocidades cometidas em nome de Deus expressas também nesta obra, e me veio imediatamente  a fala proferida pela personagem de David Thewlis, quando este responde a alguns anseios e dúvidas do personagem de Bloom acerca da religião: “Não aposte em religião, através da religião eu vi os mais variados fanatismos serem chamados de a vontade de Deus. A santidade esta na ação justa e na coragem de proteger aqueles que não podem defender a si mesmos e a bondade. O que Deus deseja esta aqui (na cabeça) e aqui (no coração) e através do que você fazer a cada dia você será um bom homem ou não". Exatamente o que podemos reconhecer na história desses homens.

O que mais me cativou nesta produção,  foi a fidelidade desses homens à sua vocação, a todos os argelinos com quem tinham constituído laços de amizade,  a lealdade ao povo em torno deles.

Vale a pena assistir, o que nos fascina é que o filme não foca, como de costume, em discutir questões políticas, não brutaliza, não polemiza, apenas busca mostrar a neutralidade, de uma forma que não leva a indiferença e sim ao respeito pela fé do outro, a solidariedade, o respeito mútuo, a nobreza desses homens, o respeito. Talvez pudesse levantar algumas questões que  prefere não tocar e ser mais contemplativo, de todo modo é tocante, comovente, ao assisti-lo somos agraciados com um verdadeiro diálogo inter-religioso, com as fraquezas humanas, a dúvida, o medo, dramas pessoais, a humanidade e a espiritualidade, e a coragem.

E para concluir a citação de Pascal, que Xavier Beavouis achou conveniente inserir em seu texto é acertadíssima quando este afirma que “Os homens nunca cometem o mal tão completamente e alegremente como quando eles o fazem por convicções religiosas.” O mesmo filósofo é responsável por outra célebre frase “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Quantas pessoas foram mortas brutalmente em nome da fé? Quantos conflitos religiosos ainda estão ocorrendo no mundo? Quantas pessoas ainda morrem em nome da religião? Em seus corações não existe piedade? Solidariedade? Só fanatismo? quais as razões destas ações que vão contra a todos os ideais de fé?

Dos homens e dos Deuses, nos leva a refletir sobre nossas ações, nossa fé, nossas fraquezas, nossa religiosidade, nossa "razão" e, principalmente nossa tolerância e respeito ao próximo,  é capaz de comover não somente os cristãos, sejam católicos ou protestantes como também, acredito, agnósticos e até mesmo ateus, por exaltar homens que suportaram o que lhes foi designado com determinação,  seguem seus princípios até o fim, em nome do que acreditam, algo raro; o filme é comovente sem ser cansativo, contemplativo sem ser entediante, reflexivo sem ser divagador, ideal para qualquer grupo, e no meu caso pretendo utiliza-lo em sala de aula, a partir dele podemos trabalhar diversas questões urgentes como  intolerância, discriminação, violência, preconceito,  rotulação, estigmas, etc.


Publicado por: Bianca Wild

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