RESUMO
O artigo discute os impactos do uso de modelos prontos de redação na formação da autonomia intelectual dos estudantes que se preparam para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A partir de uma análise crítica, examina-se como o ensino baseado em fórmulas pode limitar o desenvolvimento da capacidade argumentativa e a reflexão crítica, transformando a escrita em um processo mecânico e previsível. Por outro lado, reconhece-se o papel pedagógico desses modelos quando utilizados de forma orientada, como instrumentos de apoio para a compreensão da estrutura textual e da organização das ideias. Conclui-se que o equilíbrio entre o uso de técnicas consolidadas e o estímulo à autoria é essencial para o aprimoramento da escrita e para a formação de sujeitos críticos, criativos e autônomos.
Palavras-chave: Redação; Autonomia intelectual; Modelos prontos; ENEM; Escrita crítica.
Modelos de redação: quando a ajuda vira dependência
Nos últimos anos, a oferta de modelos prontos de redação para o Enem se transformou em um verdadeiro mercado. Apostilas, videoaulas e sites especializados prometem fórmulas que garantem uma nota alta no exame mais importante para o ingresso no ensino superior. Para muitos estudantes, principalmente aqueles que não tiveram acesso a uma formação sólida na escrita, esse recurso funciona como um alívio: é mais fácil seguir um roteiro do que enfrentar a folha em branco.
Mas até que ponto esse apoio pode se tornar um atalho perigoso? Será que decorar introduções e conclusões genéricas não ameaça a autonomia intelectual e a capacidade de pensar criticamente?
Os benefícios dos modelos prontos
Especialistas em educação chamam atenção para o risco de que os modelos prontos acabem engessando a produção de texto. De fato, é inegável que os modelos prontos podem desempenhar um papel positivo no processo de aprendizagem. Para muitos estudantes, principalmente aqueles que enfrentam dificuldades com a escrita, ter acesso a exemplos de textos bem estruturados oferece segurança e clareza. O modelo ajuda a visualizar como organizar as partes da redação, a conectar argumentos e a manter a coesão.
Além disso, para os sujeitos que não tiveram acesso a uma formação escolar de qualidade ao longo da trajetória educacional, bem como para aqueles que não dispuseram da oportunidade de frequentar um cursinho preparatório, esse recurso configura-se como um importante mecanismo de nivelamento do conhecimento em relação às exigências do ENEM, contribuindo, assim, para a democratização das oportunidades de obtenção de um bom desempenho na avaliação.
Contudo, o que inicialmente se destinava a servir como ponto de partida para auxiliar a produção textual de estudantes iniciantes passou, em muitos casos, a ser utilizado como modelo fixo, independentemente do tema proposto. É nesse contexto que se evidencia o problema: o momento em que o recurso deixa de cumprir sua função de apoio pedagógico e passa a substituir o esforço intelectual e o desenvolvimento da autonomia na escrita. Consoante o autor George Orwell, a escrita deve ser um exercício de reflexão crítica, onde o estudante constrói razões que sustentem suas ideias, exercitando sua capacidade de argumentação e autoria.
O que mostram os dados?
O Enem exige não apenas a capacidade de seguir um formato, mas também a habilidade de apresentar argumentos coerentes e relevantes, relacionar informações e demonstrar repertório sociocultural. Quando o estudante se limita a copiar exemplos, corre o risco de produzir redações superficiais e previsíveis, comprometendo a pontuação.
Nesse sentido, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) adotou medidas mais rigorosas para a correção da redação, com maior atenção às competências 1 e 3. Os corretores passam a avaliar com mais profundidade o domínio da gramática e a capacidade de construir argumentos próprios, acompanhados de citações pertinentes. Conforme observa o filósofo Péricles, “aquele que sabe pensar, mas não sabe expressar o que pensa, está ao nível daquele que nada sabe”, reforçando a importância da expressão crítica.
O risco da repetição mecânica de fórmulas — o que alguns autores chamam de “preguiça intelectual” — é a perda do hábito de pensar criticamente. Esse efeito reflete-se não apenas na redação, mas também em outras provas, diminuindo a capacidade de analisar, interpretar e argumentar com profundidade, o que contribui para a concentração de candidatos com pontuações abaixo de 900 pontos.
Os dados do Inep confirmam essa tendência. Em 2024, apenas 12 participantes alcançaram a nota máxima (1000 pontos), número significativamente inferior aos 60 registrados em 2023. Entre aqueles que se aproximaram da pontuação máxima, 2.308 candidatos obtiveram notas entre 980 e 1000, sendo 215 provenientes da rede pública. A média geral da redação em 2024 foi de 660 pontos, ligeiramente superior à média de 645 pontos do ano anterior, em um exame com mais de 4,3 milhões de inscritos.
Esses resultados evidenciam que o domínio da escrita exige muito mais do que o uso de modelos prontos ou fórmulas fixas. Para alcançar bom desempenho, o candidato deve compreender a proposta, articular ideias de forma coesa e coerente e sustentar seus argumentos com repertório sociocultural pertinente. Embora o Inep não tenha divulgado o número exato de redações com nota zero, a instituição ressalta a ocorrência frequente de fugas ao tema, cópia de trechos da prova e textos desconectados da proposta, reforçando a necessidade de desenvolver a escrita com criticidade.
Assim, os resultados do Enem 2024 confirmam que a boa escrita depende menos da memorização de estruturas e mais da reflexão crítica, da clareza argumentativa e do domínio da linguagem.
O risco da dependência e a perda da autonomia
Quando o uso de modelos prontos se torna excessivo e acrítico, corre-se o risco de prejudicar o desenvolvimento do raciocínio autônomo. Escrever é, antes de tudo, um exercício de pensamento: requer interpretar, refletir, relacionar informações e construir argumentos próprios.
Ao decorar esquemas prontos, o estudante pode entrar no chamado “modo automático”, reproduzindo fórmulas sem compreender profundamente os temas propostos. Isso enfraquece a capacidade de lidar com questões inesperadas ou de adaptar a argumentação a diferentes contextos.
Sem argumentos sólidos, o texto perde consistência. É fundamental aprender a argumentar com clareza e coerência, apresentando contra-argumentos e refutando-os, demonstrando conhecimento de outros pontos de vista, sempre com uma linguagem precisa e respeitosa. Nesse sentido, Stephen Toulmin, autor de Os usos do argumento, comparou a argumentação a uma ponte construída entre a mente do autor e a do leitor — um processo que fortalece o pensamento crítico quando há esforço genuíno para confrontar informações e se posicionar.
Para evitar essa armadilha, especialistas recomendam o uso equilibrado de modelos: eles devem servir como referência inicial, e não como substitutos do processo de elaboração. Estudar exemplos é importante, mas é igualmente essencial questionar, criar, testar argumentos e desenvolver a própria voz autoral.
A necessidade do equilíbrio
Em síntese, os modelos prontos de redação para o ENEM podem constituir ferramentas úteis na preparação, desde que utilizados com consciência crítica. Quando percebidos apenas como atalhos, têm o potencial de engessar o pensamento, reduzir a capacidade de argumentação e gerar dependência. Por outro lado, quando empregados como referência inicial e fonte de inspiração, contribuem para o desenvolvimento da organização e da segurança do estudante.
O desafio consiste em encontrar um equilíbrio entre a absorção de técnicas consolidadas e a construção de uma escrita autoral, fundamentada na reflexão, na criatividade e na autonomia intelectual. Dessa forma, escrever bem vai além da simples reprodução de roteiros: trata-se de um exercício de pensamento crítico e de autonomia, capacidades que não podem ser substituídas por modelos prontos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Enem 2024: resultados mostram crescimento na adesão e na média das notas. Brasília, DF: Inep, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/enem-2024-resultados-mostram-crescimento-na-adesao-e-na-media-das-notas. Acesso em: 12 out. 2025.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Confira o perfil de quem obteve nota mil na redação do Enem 2024. Brasília, DF: Inep, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/enem/confira-o-perfil-de-quem-obteve-nota-mil-na-redacao. Acesso em: 12 out. 2025.
ORWELL, George. Por que escrevo. Tradução de Duda Teixeira. 14 ago. 2021. Disponível em: https://dudateixeira.com.br/2021/08/14/por-que-escrevo-por-george-orwell/. Acesso em: 12 out. 2025.
PÉRICLES. Aquele que sabe pensar, mas não sabe expressar o que pensa, está no mesmo nível daquele que nada sabe. Disponível em: https://blog.gointegro.com/pt/6-charlas-ted-sobre-employee-engagement-0-0. Acesso em: 12 out. 2025.
TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Tradução de R. Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001.