Compreensão fenomenológico-existencial da solidão
solidão, solidão existencial, angústia, Fenomenologia-existencialO texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Navegar é preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
(Fernando Pessoa)
Navigare necesse; vivere non est necesse"; frase em latim dita pelo general romano Pompeu em 106-48 a.C. a marinheiros que temiam navegar em tempo de guerra. Dessa frase se aproveita Fernando Pessoa metaforizando-a de forma a encharcá-la com seus desvarios mentais que remetem ao sentimento natural humano de não suportar estar e ser a sós consigo mesmo. O texto a seguir se desvela a partir desse sentimento, no movimento instantâneo “entre o ser e o não-ser, entre o nada e a realidade” (AGOSTINHO), no segundo de solidão plena em que um humano conquista sua propriedade autêntica.
Apresentação
A escolha desse tema não é e nem poderia ser neutra, nela estão implicadas questões que me acompanham há tempos, sentidos que me sacodem e me aproximam da frieza da morte, do calor da vida, freqüentemente.
São incontáveis as madrugadas que acolhem a mim enquanto divago sobre as mais impensáveis respostas para as interrogações mais deslocadas do contexto mesológico e temporal em que me situo agora.
O que devo salientar é que não só percorro as noites silenciosas do meu quarto bambeando entre raciocínios simetricamente interligados; em diversos segundos sou inundada por uma sensação súbita que não demonstra origem alguma, lançando-me num cenário mental emprestado da astronomia e ali, inebriada, tenho como único objeto palpável o instante que ganha o mérito de transcender o tempo por se fazer espaço para a consagração do meu estremecido bastar-me.
Minha vida ali parece transcorrer “como uma fugaz palpitação, como o principio de algo que deve ser buscado até que se possa dizer basta” (AGOSTINHO), como uma chama que se consome ardorosamente, mesmo tendo consciência da escuridão iminente.
As palavras já ditas são influenciadas pela disciplina de fenomenologia-existencial que curso na faculdade de psicologia, todavia, bastante disto já me parecia familiar antes do contato com esse mundo teórico. O motivo eu desconheço, mas eu me satisfaço pelo prazer de conhecer fundadamente noções de fenômeno e existência que tanto me incitam.
Solidão Existencial
O homem e o mundo pertencem um ao outro, ambos se criam e se influenciam mutuamente o que torna a linha divisória entre eles tão sutil que causa confusão em quem tenta desvendar essa epistéme no sense. O primeiro se identifica no segundo com a impressão de reconhecer algo seu no já dado, isto porque a sua pre-sença é também uma co-presença.
Entre o ser e o não-ser, entre a patente e a potência existe um vácuo que ao mesmo tempo em que se apresenta como abrigo ilimitado, sufoca. Afetado pelo mundo, situado no momento, o homem experimenta essa dicotomia e na tentativa de equilibrar-se e manter-se erguido ele é sugado para o nada.
Antes mesmo de surgir na concretude; no ato de nascer, uma gama de significados já está lá construindo o homem, o enquadrando, prontos para endurecer seus sentidos e se transformarem em sua essência. O turbilhão de símbolos e signos que aparecem e desaparecem freneticamente em nossa sociedade atual contribui para um mal-estar ainda maior, é como se obrigassem este a encontrar espaço para eles em seu íntimo á custa de sua individualidade.
Os significados seduzem o ser, ao mesmo tempo em que o amedrontam, já que o arrancam de sua propriedade apriorística. E neste passo receoso de ser dado em direção ao mundo dos outros o indivíduo está só. Somente desvencilhando-se das verdades pré-fabricadas ele é capaz de se apropriar de uma existência autêntica, entretanto, o fato é angustiante. A consciência da efemeridade de tudo, de que toda construção que ele julga própria é pura matéria mundana prestes a se esfarelar com o peso do próximo segundo - ou não – a sensação de nudez e arrepio quando a claridade cegante do tempo nos rasga as vestes como um raio decepa os galhos de uma frondosa árvore. Vivenciar a solidão é passear entre a vida e a morte, entre uma origem vazia e um destino também vazio e provar da angústia, da condição ontológica de todo humano; a sua propriedade.
Mas viver não é preciso, é preciso mesmo navegar. A solidão existencial dura pouco por ser intolerável, então, o ser retorna à terra das ilusões inebriantes. A decadência garante a aparente calmaria e segurança. Esquecendo-se de si ele flui novamente para o alheamento, para ser-no-mundo-com-os-outros. “Viver não é necessário, o que é necessário é criar”, diz bem Fernando Pessoa em seu poema, o mundo concreto funciona deste modo, neste lamacento processo relacional entre teias e teias no constante ocultar-se e desvendar-se de tudo. Quem habita a terra deve seguir seu ritmo, na ex-posição quase permanente.
“O barco, meu coração não agüenta/ tanta tormenta, alegria/ meu coração não contenta/ o dia, o marco, meu coração, o porto, não. (...) O barco, noite no céu tão bonito/ sorriso solto, perdido/ horizonte, madrugada/ o porto, nada.” (Caetano Veloso)
Os sentimentos diversos que correm pelas veias humanas, os dias, os fatos, o navegar, não plenificam, contudo, o porto, que no meu ver aparece como momento de solidão, de existência em seu mais esplendoroso sentido é insuportável. É realmente preciso navegar.
Fernando Pessoa no poema citado fala que não pretende gozar da vida, nem pensa nisso, quer apenas torná-la grande, nem que para isto ele tenha de usar seu corpo e sua alma como lenha desse fogo, ele quer torná-la de toda a humanidade, mesmo tendo de perdê-la como sua. É exemplo riquíssimo da decadência (o retornar), sacrificando sua propriedade para se jogar de volta à humanidade, o poeta quis navegar, e revela o esforço para a auto-preservação; a fuga da morte.
É no meio de um oceano de possibilidades que o homem navega e as estadias breves no porto da solidão e angústia devem, como diz Nietzche, ao contrário de resultarem em uma decadência medíocre, aquecerem o movimento dos remos, deslizando nas águas da existência sempre à frente, com coragem, sem sucumbir a mania de impugnar a vida, afirmando a si, preservando a si apesar da sensação incômoda de ter estado no porto.
Conclusão
A solidão existencial diferente da solidão usada cotidianamente pelo senso comum é vivida no momento da angústia, condição ontológica do homem. No instante em que ele se livra de tudo que lhe é alheio e existe apenas consigo mesmo. Tal experiência causa náuseas pela vertigem do abismo cavado entre as dicotômicas formas de ser possíveis a este ente. Embora se mostre como algo pejorativo, esse intervalo de tempo está longe de o ser, vivenciado essa solidão profunda, o homem é capaz de retornar pronto para fazer jus a sua fugaz existência, usando sua liberdade para escolher as mais relevantes formas de viver.
Depois de ancorado no porto da solidão meu barco procurará as águas mais calmas e claras e os mares de céu mais limpo para navegar até poder gritar: Terra á vista!
Bibliografia
DICHTCHEKENIAN, Maria Fernando S.F.B. Vida e Morte: ensaios fenomenológicos. Ed. C.I., São Paulo, 1998.
CORTELLA, Mário Sérgio. Não espere o epitáfio...provocações filosóficas.5ªed. Petrópolis: Vozes. Rio de Janeiro, 2005.
CRITELLI, Dulce Mára, Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2007.
http://vagalume.uol.com.br/caetano-veloso/os-argonautas.html acesso em 25/11/08
http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso05.html acesso em 25/11/08
¹ discente do curso de Psicologia da Faculdade Leão Sampaio. E-mail: larissalinard@hotmail.com
Publicado por: Larissa Maria Linard Ramalho
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.