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Outras vozes

Clique aqui e leia o texto "Outras vozes" de Bete Bissoli!

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

São passos leves que me voltam à lembrança. Chinelos arrastados pelo casarão imenso. Mil portas e janelas de um casarão que me parecia maior do que era! É interessante a dimensão que os espaços assumem frente a olhos infantis. As mesmas coisas da nossa meninice que davam a impressão de enormes, só adquirem seu tamanho real quando chegamos à idade adulta... Mas o casarão de minha nona tinha mesmo incontáveis cômodos e mil portas e janelas.

São dias idos que me vêm à lembrança. São duas gotas de saudade escapando dos meus olhos e invadindo salas amplas, varanda ensolarada, pés de frutas em que eu, irmãos, primas e primos subíamos.
É como um filme antigo projetado na tela da minha alma. Eu me vejo, vejo a eles, me transporto a um tempo de inocência, e vou parar no casarão. Até hoje, a cada vez que me deparo com um pano azul-marinho de bolinhas brancas, não consigo enxergá-lo como um simples pedaço de tecido. Ele é um lenço, cobrindo cabelos brancos...
Gritaria, brincadeiras, gargalhadas, palmadas, castigos, choros, camas de ferro, colchões de palha, jardim, armários da cozinha, doces, ah! os doces, chego a senti-los em minha boca! Isso compunha nosso mundo. E tudo nos ajudava. Até o corredor longo, estreito e cúmplice que, muitas vezes, nos livrava de castigos. Ladeado de passagens para vários quartos, nenhum adulto conseguia nos pegar quando ele nos escondia.
Era o começo de nossas vidas e as portas ficavam abertas para nós, mas a rua de terra batida não possuía os atrativos do nosso quintal. Tínhamos um mundo inteiro na casa da nona Luigia, e isso nos fascinava.
Tempo de limas e amoras... De pitangas roubadas do vizinho... Quantas pipas exploraram o céu por meio de mãos infantis, em busca das nuvens! E (que ingenuidade!) quantos buracos cavamos na terra tentando encontrar o Japão...
O casarão era o refúgio seguro nas noites de tempestade. As brasas do fogão de lenha aquecendo a cozinha, os relâmpagos e os passos lentos porém nervosos da nona em busca da palma-benta para queimar. Que fortaleza o casarão! Que segurança ante nosso medo infantil!
Ah! a hora do almoço, do jantar, as panelas de ferro, os pratos e as canecas de ágate, o café com bolinho de chuva, as histórias de lobisomem... E os tios quando bravos? O eco das botas pesadas nas tábuas do assoalho da sala. Tábuas largas, claras, fortes!
Dentro desse universo que tanto amei, uma coisa me era sagrada: a roseira que uma de minhas tias cultivava. Quando florescia, a planta, forte e enorme, parecia fraca para suportar o peso de tantas rosas.
Não me esqueço das vezes em que minha tia a podava. Os golpes certeiros da tesoura soando como uma agressão, mas ela me dizendo que era preciso podar para que novos brotos nascessem e, a partir deles, mais flores. Eu, secretamente, me rebelava contra a ofensa à roseira. Não sabia do mistério do nascer de novo.
Que tempo feliz e que gosto doce me voltam à lembrança... Todas as manhãs, uma das primas mais velhas escrevia na janela o nome do primeiro namorado e corria para apagar à tarde, antes que seu pai voltasse do trabalho. E todos nós, à noite, escondidos, nos engasgávamos na fumaça dos cigarros roubados. Pelas janelas, velhos e desconhecidos retratos pendurados nas paredes a nos espreitar... É incrível a força de uma casa e como ela pode nos marcar para a vida inteira!
Agora, não existem mais as mesmas pessoas, nem o pomar, nem o jardim, nem a velha paineira atiçando nossa vontade de voar. A construção foi demolida, as pessoas já se foram há tempo. Do casarão, só lembranças felizes! Hoje, o que existe, é uma nova casa em que vivo, em outro lugar, com novas pessoas. Mas, há vozes, e é a voz do filho do meu filho que ouço neste momento. O pequenino me diz que o jardineiro está cortando a roseira, que gosta dela e não quer que o homem faça isso.
Tento explicar o motivo, porém ele não entende. É muito jovem para compreender coisas que só a vida ensina.
Calço o chinelo, vou dar uma volta no nosso jardim, e continuo em minha reflexão. Um dia não estarei mais aqui fisicamente, mas me eternizarei no neto do neto de meu neto..., e as vozes na casa continuarão ecoando por todo o sempre.


Publicado por: Bete Bissoli

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.