Amor irracional
Sobre o amor entre um animal e um ser humano.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Será possível para um animal irracional desenvolver algum tipo de afeição que ultrapasse seu instinto de interesse e proteção e se aproxime do que chamamos de amor? Quem possui em casa algum bicho de estimação garante que sim, embora dificilmente consiga explicar com alguma lógica como se dá esse sentimento que atribuímos exclusivamente a nós. Mas aí não é tão difícil encontrar argumentos que justifiquem um lado afetivo-emocional que todos compartilham em maior ou menor grau, independentemente de se ter ou não qualquer explicação.
De fato, os seres humanos costumam justificar seus mais diferentes atos passionais como se eles acontecessem separadamente da razão e ou em oposição a ela. Mas esta é um debate amplo, difícil e que caberiam opiniões das mais diversas e antagônicas. Na verdade, gostaria de contar aqui apenas uma história ocorrida numa cidade do interior da Bahia, que bem poderia ter saído de algum romance de Guimarães Rosa e que traz à tona acontecimentos que só reforçam a tese da existência de fatos sem qualquer explicação.
Morava nos arredores da pequenina Boa Nova, num daqueles sítios humildes, um adolescente chamado Ismael, de quase nenhuma instrução e dedicado ao trabalho rural, como seu pai, sua mãe e o restante da família. Além da criação doméstica de galinhas e porcos e dos gatos e cachorros que perambulavam pelo terreiro, um minúsculo curral nos fundos da casa abrigava uma vaca para o consumo diário de leite e um boi usado para puxar um arado rústico, responsável pelo preparo da pequena lavoura de milho e feijão. Por lidar mais diretamente com este último, o rapaz de 17 anos mantinha com o animal uma aproximação que seus pais e irmãos não partilhavam. Era cena comum vê-lo dando comida ao boi na palma da mão ou simplesmente conversando com ele como se realmente se entendessem.
As poucas idas ao centro da cidade aconteciam aos sábados, quando levava o que colhia para comercializar na feira local. De pouca conversa e de uma timidez roceira, ele quase nunca era visto em bares ou em qualquer outro evento onde se pudesse perceber seu comportamento. Foi num dia qualquer da semana que um dos poucos amigos da vizinhança o procurou para contar que havia brigado com o pai e que, por isso, queria ir embora de casa. Estava decidido ir para São Paulo e tentava convencer o amigo a seguir junto com ele, como já tinham vislumbrado outras vezes, sonhando com uma vida melhor no Sudeste.
Relutante, Ismael disse não ter coragem de abandonar a família e sair de casa fugido. Ele não podia negar, porém, que São Paulo era um sonho que alimentava há algum tempo e que aquela era uma oportunidade única de realizá-lo. Lá poderia procurar seus parentes. Com a viagem marcada para a manhã do dia seguinte, saindo de Boa Nova para a vizinha Poções, onde pegariam o ônibus, o pacato rapaz não teve tempo de pensar muito e decidiu viver aquela que seria, talvez, a primeira de muitas aventuras que o aguardavam.
Logo cedo os dois saíram levando em duas mochilas velhas pouco mais do que a roupa do corpo. A fuga foi descoberta horas depois dos pais de Ismael terem sabido da briga do seu amigo com os pais dele. Na cidade foram informados de que ambos foram vistos partindo na linha diária para o município vizinho. Desesperado, o sitiante conseguiu fretar um carro e foi sozinho até a rodoviária de Poções na esperança de ainda encontrar o filho e persuadi-lo a voltar. E assim aconteceu: lá estava ele, em companhia do amigo, à espera da hora da partida. Surpreendido e convencido pelo pai a voltar para casa, o rapaz parecia feliz por ter sido tirado de uma aventura que não era mesmo sua.
No caminho de volta, a cerca de cinco quilômetros do trevo de entrada para Boa Nova, o carro em que estavam foi apanhado em cheio por uma das tantas carretas que fazem da BR 116 uma das estradas mais movimentadas e perigosas do país. Nenhum dos três ocupantes conseguiu escapar com vida. E em pouco tempo a notícia já havia se espalhado pela cidade, causando uma comoção geral. O duplo velório no sítio trouxe para a vizinhança um silêncio incomum e uma tristeza contagiante. Algumas horas após o enterro pairava no ar um vazio que apenas alguém que tenha perdido, de uma só vez, marido e filho é capaz de sentir.
Entretanto, não foi apenas o coração de esposa e mãe o único atingido por um misto de sentimentos que, num momento desses, se externam simultaneamente em amor, dor, saudade, tristeza... A população inteira custou a acreditar no que soube ou viu com os próprios olhos: um boi havia quebrado a cerca de um sítio, percorrido mais de um quilômetro para plantar-se à porta do cemitério onde acabara de ser enterrado aquele que poderia ter sido bem mais do que seu dono.
Publicado por: Roberto D´arte
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