A poética do olhar
Clique e confira uma análise das metáforas em "Dom Casmurro", de Machado de Assis.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
RESUMO
O presente artigo científico traz uma análise da obra “Dom Casmurro”, interpretando algumas metáforas, sempre observando a maneira como Machado de Assis narra em flashback a história da juventude de um homem, estando ele já na velhice, deixando assim uma lacuna no tempo, mantendo uma impossibilidade de chegar-se a uma conclusão exata de saber se o que está sendo narrado é verdadeiro ou se não passa da imaginação do autor. Os pressupostos teóricos tidos como base para esta análise são as considerações de Andrade (1975), Bosi (2006) e Prata (1968).
PALAVRAS-CHAVE: Arte. Metáforas. Personalidade. Realidade. Imaginação.
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico surgiu com a obtenção de retratar uma análise da obra “Dom Casmurro” de Machado de Assis. Trata-se de um romance psicológico onde há preferência em perscrutar e analisar os motivos íntimos das decisões e indecisões humanas. O romance volta-se para a realidade psicológica dos personagens, estabelecendo as técnicas do conteúdo memoralístico.
Dom Casmurro, afirma Bosi, “faz voltar o estilo das memórias” (BOSI, 2006, p.192), uma vez que a obra é um relato memorialístico do passado de Bentinho, no qual percebe-se um grande conflito psicológico. É um romance narrado em primeira pessoa e em seu enredo o protagonista Bentinho relata sua vida durante a adolescência, aos quinze anos de idade, desde o início de seu namoro com a vizinha Capitu e sua vida de Dom Casmurro depois de ancião.
No desenvolvimento da narração há várias interferências do autor, o que nos permite fazer uma reflexão do que seja real ou imaginação na obra, pois Machado de Assis faz uma relação entre o fato real e o fato imaginado, já colocando na obra uma impossibilidade de compreender objetivamente o que seja verdadeiro, levando o leitor a refletir, mas não chegando a uma conclusão exata da veracidade dos acontecimentos.
Ao lermos toda a obra podemos observar que constantemente o escritor tenta convencer o leitor a acreditar que realmente aquilo que é narrado é toda a veracidade dos fatos. Todo o texto é persuasivo e verossímel, essa verossimilhança é vista através da coerência dos fatos, pois tendo coerência não importa se o que está descrito é verdadeiro ou falso. Vemos a partir daí, que a “realidade” passa a ser comparada, ou seja, ter relação com aquilo de que se trata, nisso podemos observar que a literatura cria uma ilusão tão perfeita que a vimos como se fosse realidade.
Ao apreciar Dom Casmurro, Bosi afirma que a obra é uma “tragédia perfeita” (BOSI, 2006, p.191), e assim concluímos que, Machado de Assis nos conta a história de um homem completamente perturbado por um sentimento complexo: o ciúme. E por esse motivo não podemos confiar na narrativa de um homem certo de ter sido traído pela esposa, sem nunca ter comprovado realmente suas dúvidas, e com isso não tem certeza se houve um envolvimento amoroso entre Capitu e Escobar, lembrando que o narrador nunca afirma a traição, apenas insinua. Uma vez que, Bento Santiago amargurado e só, quem decide o que deve ou não ser relatado ao leitor.
Atentando-se para a condição da alma humana, Prata analisa que
Na obra topa-se com sabedoria em todas as páginas. E que páginas profundamente sarcásticas, terrivelmente irônicas, retumbantemente amargas, onde a alma humana aparece a todo instante revestida da mais horrenda podridão moral. (PRATA, 1968, p.37).
A grande questão do livro deixa de ser se Capitu cometeu ou não adultério, o que importa é perceber como Machado de Assis foi capaz de retratar de modo extraordinário o comportamento de um homem completamente transtornado por um sentimento que destruiu totalmente a sua vida, e que agora depois de velho ainda cheio de rancor tenta reconstruir sua vida passada através da casa em que mora no Engenho Novo.
ANÁLISE DA METÁFORA DA CASA
Em Dom Casmurro, o narrador Bento Santiago procura explicar a seus leitores a razão de ter decidido escrever um livro sobre sua vida. Com essa façanha vai descobrindo sua verdadeira personalidade. Aos poucos vamos percebendo que é um homem dividido, compartimentado diante dos acontecimentos e do seu mundo sensível.
Bento procurou libertar-se de seus rancores demolindo a casa materna, em Mata-cavalos, onde viveu toda sua infância; ao reconstruí-la no Engenho Novo, fazendo uma réplica da primeira, não conseguiu se desfazer dos seus destroços. A estratégia fracassou, e o motivo também apresentado no trecho lido, merece atenção: ele não é mais a mesma pessoa que viveu dias felizes na casa de Mata-cavalos “se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” (ASSIS, 2008, p.7).
Sua personalidade começa a transparecer nas primeiras revelações sobre a vida e a rotina que leva: solitário, afetado, frágil, sem amigos, isolado de tudo e de todos em meio as recordações de um passado que busca reconstituir. O isolamento em que vive e a postura ensimesmada valeram-lhe a alcunha de Dom Casmurro. Bento é único num cenário devidamente rubricado conforme as indicações feitas por ele ao construtor e ao pintor idênticas as da casa de Mata-cavalos.
[...] É o mesmo prédio assobradado, de três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas [...] O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. (ASSIS, 2008, p.6;7)
Devido aos ciúmes torna-se com o passar dos anos um homem “ensimesmado em sua casmurrice”, solitário e refém de sua própria história, perturbado pelos seus sentimentos e desconfiança em relação à Capitu, e assim, dividido em suas particularidades. Podemos perceber um pouco de sua personalidade e a razão determinante para que sua vida se tornasse um romance no capítulo dois, quando diz que
Vivo só, com um criado. A casa que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mais vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. (ASSIS, 2008, p.6)
Percebemos que encontra-se sempre dividido, compartimentado diante do seu mundo sensível e ao tentar reproduzir no Engenho Novo a mesma casa da infância, a da Rua de Mata-cavalos, com o fim de “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.”, mas percebe que apesar de tudo não conseguiu “recompor o que foi nem o que fui” (ASSIS, 2008, p.7).
O perfil de Bento assemelha-se com a divisão interna de uma casa, onde ele próprio comenta que “a alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados.” (ASSIS, 2008, p.85). Sua tentativa em reconstruir no Engenho Novo a casa materna, compreende, como ele mesmo confessa a “construção ou reconstrução de mim mesmo” (ASSIS, 2008, p.102) que se concretiza apenas fisicamente. A metáfora da casa, na semelhança entre os seus compartimentos com os da alma humana, mais uma vez, traduziu para o narrador sua incapacidade em lidar com o tempo vivido.
A casa exerce função essencial para a narrativa, uma vez que, é em seu interior que se passam todas as cenas tristes, felizes, de distração e até mesmo de pura tensão, e é onde Bentinho tece a história de sua infância, todas as esperanças e sonhos em relação ao seu futuro com Capitu, sua amada, por quem descobre um amor puro e verdadeiro que só é despertado através do agregado José Dias, em uma conversa que tem com a mãe de Bentinho, Dona Glória, na sala. É quando percebe que dentro de si, existe adormecido e escondido, um amor que só aumentava cada vez mais à medida que se encontravam.
ANÁLISE DA METÁFORA DOS OLHOS
A poética do olhar é o momento em que se dá todo o enigma, configurando-se a grande metáfora da obra, quando o mesmo Bento, dividido e compartimentado, revela metáforas e é tragado pelos olhos de ressaca de Capitu. Certa vez observando-os atentamente fez um paralelo entre os mistérios presentes para ele nos olhos da amada com os ritmos da vaga do mar em ressaca, que é uma composição de elevações da superfície da água; elevações que se propagam umas às outras, produzidas em geral pela ação do vento.
O mar desempenha papel essencial em Dom Casmurro, já que em dia de ressaca, metáfora para os olhos de Capitu, é também em um mar ressaqueado que Escobar, colega de Bento desde o seminário, encontrará sua morte. É do agregado José Dias a definição para os olhos de Capitu, quando em uma caminhada pelo Passeio Público, que na época fazia divisa com o mar, Bentinho é despertado para a profundidade contida no olhar de Capitu. Durante o passeio, no percurso do portão central até o terraço, José Dias pela primeira e fatídica a vez qualifica os olhos de Capitu como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p.39), frase que entrou para a história da Literatura Brasileira como sinônimo do seu caráter afeito à traição.
Bentinho ao ouvir ficou com o traço da dissimulação por saber o que significava e logo depois acrescentou outra característica particular sua a esta definição e deu aos olhos da amada os traços da ressaca do mar “olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova” (ASSIS, 2008, p.51). Os olhos de Capitu, confessa Bento, que “traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca” (ASSIS, 2008,p.51). Capitu é misteriosa como o mar e dissimula como a vaga do mar. Assim, seu olhar de acordo com o narrador, dissimulam porque querem dissimular o seu ser, e Bento é atormentado por esses olhares, que os cercam em todos os momentos.
Bento tornou-se um observador obsessivo por olhares. Sendo assim no romance que pretende escrever, o olhar ocasiona conflitos, ao mesmo tempo em que passa a ser uma forma de fixação do narrador e observador Bento Santiago que, ao espreitar o observado, transforma-o em objeto de sua compulsão.
É no velório de Escobar, seu amigo desde o seminário, e que morre em um dia no qual o mar está de ressaca, que Bento observa atentamente as movimentações e olhares de Capitu diante do defunto. Acaba interpretando os menores gestos como sinais de traição e percebe que “seus olhos fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mais grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar o nadador da manhã” (ASSIS, 2008, p.167).
O olhar em Dom Casmurro, representa as sensações do observador Bento Santiago; consiste num processo, na própria busca, por meio de sensações, da identificação do protagonista consigo e com os outros. Os olhares dão-nos o modo da ação da narrativa e exercem a sobredeterminação da narrativa, têm um saber que, de forma subliminar, expressam o modo do querer dos personagens; representam o sentido da busca da narrativa de Bento Santiago, confiada aos seus desejos e saberes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta análise da obra conclui-se que, na verdade, Machado de Assis é ao mesmo tempo, um artista e um artesão, pela sua genialidade com as palavras. Sobre a importância da arte, argumenta Andrade que “si um artista é verdadeiramente artista, quero dizer, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte” (ANDRADE, 1975, p.11), percebe-se o domínio do material e do talento no dado momento em que se começa fazer a arte, vemos a verdadeira arte estampada diante de nossos olhos através de seus personagens.
Machado de Assis traça um perfil exato, autêntico,e genuíno da personalidade humana descrevendo o comportamento e atitudes de um homem dominado pelo ciúme, em sua narrativa Machado se faz de algumas metáforas para melhorar a compreensão do leitor ao ler a obra, trazendo uma reflexão não apenas sobre a vida, mas também a respeito da “arte de narrar”.
Finalizando, esperamos que está análise possa contribuir para os estudos machadianos, e desse modo, ajudar professores, alunos, universitários e aos demais que lerem este artigo, nas pesquisas e interpretações à respeito da obra “Dom Casmurro” de Machado de Assis, tão importante e primordial para a literatura brasileira, e a todos os que estiverem desejosos de conhecer como a arte é trabalhada por esse autor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. O artista e o artesão. In: O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, Brasília, INL, 1975.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Coletânea: Um passeio pelo tempo machadiano. Rio de Janeiro: Rovelle, 2008. 192 p.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
PRATA, Edson. Machado de Assis: o homem e a obra vistos por todos os ângulos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1968. 172 p.
Publicado por: Ana Virgínia Oliveira
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.