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O humor visual como representação política no jornal Diário do Nordeste na décadda de 1980

O humor visual como representação política no jornal Diário do Nordeste na décadda de 1980, os paradigmas explicativos da realidade, o que se entende por humanidade, a produção da charge, a diversidade de temáticas apresentadas.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

RESUMO

Nossa pesquisa dedica-se a utilização das charges publicadas no periódico cearense Diário do Nordeste durante a década de 1980 como objeto passível de uma leitura política. Esse tipo de humor constituiu-se numa unidade de significados a respeito do contexto em que foi produzido. Não queremos atribuir a essa produção a característica de cópia fiel da realidade, mas constatamos que ela tanto se realizava a partir desse real, como também evidenciava perspectivas da sociedade. Isso porque diferente de outras manifestações da caricatura, ela é contextualizada. Daí nosso interesse em perceber as intencionalidades que envolveram a criação, publicação e socialização das charges, haja vista o momento de transição nas relações políticas que o Brasil viveu nesse período.

PALAVRAS-CHAVES: humor; política; representação; história cultural.

A história, assim como as demais ciências humanas, tem ressignificado alguns paradigmas explicativos da realidade. Essas mudanças de perspectivas possibilitaram novos olhares nos estudos históricos, ampliando o campo de análise do pesquisador, com a utilização de novos objetos e, portanto, de novas fontes/documentos. Surge, a partir de então, outros problemas, outros métodos, outras tentativas de melhor explicar a complexidade do real e, esse “novo olhar” tende a privilegiar a análise e a explicação em detrimento da descrição. Os estudos se voltam para as diferentes atividades e criações dos indivíduos, revelando seu(s) sentido(s) para a sociedade na qual estão inseridos, sendo a leitura desta, realizada também através de conflitos existentes nas relações sociais.

Apesar de poucos estudos, principalmente históricos, realizados sobre o humor, considero uma temática que pode e deve ser estudada nessa perspectiva. Aqui estas imagens serão analisadas também quanto produção cultural. Produção esta, que constitui uma unidade de significados a respeito do contexto em que foi criada e divulgada. Cabe questionarmos, nesse momento, o que se entende por seriedade. Será que o “não-sério” perde seu caráter humanamente histórico? O termo sério é polissêmico, podendo ser associado a sincero; honesto e realmente. No entanto, encontramos esses significados imbuídos nas críticas realizadas pelas charges do Diário. Neste caso, as dúvidas quanto à legitimidade do objeto, se surgirem, não são sustentáveis.

Durante a década de 1980, o jornal contou com cinco cartunistas para criar as charges principais editadas na segunda página do jornal. Glauco, Maurício Silva, Eris, Mino e Meg compunham a equipe em sistema de alternância e, embora houvesse semelhanças nos traços dos desenhos, cada autor apresentava características específicas. E não podemos esquecer da subjetividade que acompanha essa criação, pois era realizada por profissionais que pretendiam apresentar suas idéias ao maior número de pessoas possível. Isso significa que, ao criar e publicar um desenho, o cartunista estava tomando um posicionamento político e ideológico.

Nos anos de 1980 temos um período de transição de sistema político no Brasil que foi denominado de abertura democrática. No campo da economia, o momento era de instabilidade e descontrole inflacionário. Essas questões estavam, pelo menos naquele momento, intimamente relacionadas, haja vista as imagens de associação entre governo e economia que visualizamos em nosso estudo.

Compreendendo a charge como um texto jornalístico, um tipo de comunicação visual socialmente aceita, na qual uma idéia e/ou um acontecimento real é analisado e transmitido com expressões risíveis e pretende ser veiculado ao grande público. Seus principais meios de publicações são jornais impressos e revistas, que trabalham com assuntos do cotidiano; seja nos aspectos político, econômico, sociais ou outros. Contudo, essa manifestação da caricatura, mais que uma expressão artística, é uma ilustração do momento vivido, pois as informações nela representadas, frequentemente, dizem respeito às notícias que estão em voga.

Para compreender a linguagem do humor visual, é fundamental um conhecimento prévio do assunto e saber em que momento ela foi publicada. De acordo com Onici Flores[1] ao narrador cabe estabelecer vínculos entre texto e contexto, sendo sua existência totalmente dependente da publicação da matéria. Além dessa relação texto-contexto, há toda uma linguagem específica de produção imagética, composta pelo exagero, ironia, surpresa, rigidez. Estes são elementos de fabricação da comicidade, que muitas vezes servem para acautelar um posicionamento de seu autor. A dificuldade em perceber os “não-ditos” da charge advém do elemento satírico que perpassa sua construção. A idéia pode ser apresentada com o sentido inverso, o desenho pode causar desproporções, a cena pode ser inesperada, já em outros casos a sátira é facilmente percebida. É por utilizar esses recursos que vemos seus produtores com uma certa autonomia perante a editoração dos jornais. De fato, não é possível se afastar da linha editorial da empresa. (lê-se jornal e, no nosso caso, o Diário do Nordeste), como mostra um estudo realizado pela Folha de S. Paulo; “Segundo eles, há plena liberdade de criação, desde que sigam o pensamento filosófico da empresa jornalística”. Mas, há recursos técnicos capaz de suavizar o conteúdo.

O processo de constituição da charge tende a articular relações bastante complexas. É preciso elaborar um sistema interno e externo de significação. O que chamamos de sistema interno é o momento de criação da charge, onde faz-se necessário associar imagem e texto que possibilitem uma leitura, mesmo que superficial, do desenho. Já o sistema externo de significação corresponde ao momento pós-publicação, em que o leitor precisará relacionar o conteúdo desse desenho com a sociedade em que vive. Então, esta não é uma produção fechada em si mesma. Ela possui um campo de circulação social, no qual será apropriada de acordo com as diversas subjetividades, embora seja diferente da intenção do autor.

Muitas vezes, tal produção é vista como uma ilustração meramente humorística de uma notícia, ou seja, destituída de seu caráter crítico-informativo. Assim, é válido destacarmos as intencionalidades dessa “arte”. Ela é um meio pelo qual se constroem possibilidades de críticas morais e sociais.

Por mais regular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosa que supomos serem suas linhas, por mais graciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é absolutamente perfeito. Nela sempre se discernirá o indício de um vezo que se anuncia, o esboço de um esgar possível, enfim uma deformação preferida na qual se contorceria a natureza. A arte do caricaturista é captar esse movimento às vezes imperceptível e, ampliando-o, torná-lo visível para todos os olhos. Faz caretear seus modelos como eles mesmos o fariam se chegassem ate o extremo de seu esgar. Advinha, por trás das harmonias superficiais da forma, a revoltas profundas da matéria. Realiza desproporções e deformações que deveriam existir na natureza em estado de veleidade, mas que não puderam concretizar-se, porque reprimidas por uma força melhor. Sua arte, que tem algo de diabólico, reergue o demônio que o anjo subjugara.[2]

Com relação à produção da charge, não há como duvidar da exclusividade humana de sua realização. O que estamos querendo, aqui, é chamar atenção para seu caráter cultural, no momento em que visualizamos um significado atrelado à sua criação, bem como uma intencionalidade que pode ser percebida completamente ou não. Se entendermos a cultura no sentido mais contemporâneo do termo, ou seja, como as diversas formas de significação da vida social, então devemos concordar que o humor gráfico é uma expressão cultural da sociedade, já que se apresenta de acordo com as idéias e valores de determinada época. Enfim, parece que esta produção denuncia seu lugar de pertencimento.

O Diário do Nordeste, fundado em 19 de dezembro de 1981 pelo grupo Edson Queiroz e tendo a Verdes Mares como editora, vem sendo desde então um dos mais importantes periódicos no Estado do Ceará. Importante no sentido de ter uma grande circulação. Na década de 1980, destacava-se com matérias de conteúdos nacional/estadual. Não possuindo um número fixo de cadernos nem páginas, suas reportagens estavam divididas basicamente em chamadas, opinião, política, Brasília, nacional e internacional, bairro, cidade, economia, polícia, roteiro, sociedade, passatempo, televisão, variedades, classificados, esporte e cultura.

Apesar da diversidade de temáticas apresentadas, é notório o destaque de alguns temas. Dessa forma, pode-se visualizar dois momentos com relação a essas imagens: até 1984/85, os temas mais freqüentes eram ligados a problemas sociais. A partir de 1986 os dois temas mais utilizados pelo humor gráfico no Diário são política e economia. A economia foi utilizada frequentemente como inspiração na criação dos desenhos pelo fato de ser um conteúdo sempre noticiado pelo jornal e por ter sido vivenciado um período de crise econômica. Já a política, apesar de sempre ter sido apresentada pela produção do humor de imagens, é a partir de meado dos anos 80 que passa a ter um maior destaque.

Convém inicialmente situarmos que esta produção foi realizada num contexto de transição no que diz respeito às relações políticas e à liberdade de imprensa.

Nos quatro primeiros anos de circulação do Diário do Nordeste, as questões políticas ainda não eram tão exploradas como viria a ser nos anos posteriores, é fato notório que a liberdade – critica de imprensa, nesse primeiro momento passava por limitações, apesar do espaço de atuação já alcançado. Isso não implica dizer que as publicações eram passivas às atitudes políticas, mas a redemocratização (como um processo) precisou de tempo para se estabelecer, principalmente com relação à imprensa.

Desta forma, entre 1985/86 há uma mudança no sistema de representação política trabalhado pelo Diário através do humor gráfico. Não se trata apenas de um aumento quantitativo da temática, mas também de uma visualização diferenciada do político, nesse segundo momento, o político passa a ser representado em situações fora do campo da política institucional. Num período de transição de um sistema ditatorial para um regime que se pretendia democrático, esta temática passa a ser discussão freqüente na imprensa e fora dela. Com um maior espaço para se falar em política, as possibilidades de critica e enfoques se modificam consideravelmente. A mudança de grupos políticos, portanto, a entrada em “cena” de outras práticas e idéias contribuiu para a transformação das representações políticas das charges. Assim, temos dois presidentes da Republica com posturas distintas e por isso inspiraram imagens distintas.

O então presidente brasileiro, João Batista de Oliveira Figueiredo, foi pouco utilizado como referência para conteúdos das charges que estivemos analisando. Algumas das criticas direcionadas a ele ou a seu governo eram realizadas tomando como personagens da cena pessoas comuns que não estavam diretamente ligadas ao sistema político institucional.Quando aparecia como personagem das cenas criadas nas charges, sua expressão era pouco humanizada; sugerindo uma pessoa tensa, esteticamente disforme e mecanizado. Essa imagem não se limitava à visão que os chargistas tinham do presidente, mas também, como eles gostariam que o mesmo fosse visto publicamente. Essa rigidez física era usada para revelar uma personalidade inflexível do personagem. Pois, era exposto como um político incapaz de encontrar soluções para os problemas do país. Nesse momento o país estava passando por uma crise econômica, que iria ser presente durante toda a década de 1980.

No campo da economia, toda a década de 1980 foi permeada pelo clima de instabilidade. E isso para todas as classes sociais, embora que para algumas tenha sido mais traumático. A inflação praticamente incontrolável era representada, pelos cartunistas do Diário, como um DRAGÃO.

Fazendo uma leitura desta analogia, é possível visualizarmos, a dimensão tomada pela crise. Simbolicamente, o dragão significava o mal que deveria ser detido para que as pessoas pudessem viver tranquilamente; um monstro causador da destruição, atingindo principalmente as pessoas com menos possibilidade de defesa, no caso da crise econômica seriam as classes menos favorecidas. Na época a inflação era esse mal que precisava ser controlado.

Durante o governo de José Sarney (1985 – 1990), os problemas com a economia continuavam. Neste contexto, foram lançados, dentre outros o Plano Cruzado II; Plano Bresser e o Plano Verão. Sem resultados positivos, o governo e os planos econômicos tornavam-se conteúdos freqüentes das charges. A partir de 1985, a política e os pacotes econômicos, lançados na pretensão de conter a crise, ganham preferências dos autores desta produção.

É certo que estas duas temáticas estavam muito ligadas entre si, não sendo possível apresentarmos um limite entre o político e o econômico em termos de classificação. Se antes desse período a política não tinha tanta visibilidade nas crônicas humanísticas do jornal, com a mudança de governo há uma transferência de enfoque para os personagens da cena política.

Com todas essas associações a imagem do presidente José Sarney passa a ser uma constante nas charges porque o público, também, estava interessado. Ter a possibilidade de revelar uma personalidade política como risível significava “culpá-lo” por decisões tidas como não acertadas ou ineficientes. Ou seja, havia algo a ser corrigido.

Frequentemente Sarney era apresentado ao público com uma aparência sorridente. Sua fisionomia estava menos relacionada a uma personalidade simpática que um cinismo disfarçado. Pois assim era representado na linguagem do humor gráfico, como se estivesse rindo da população, assumia a condição de inimigo do povo. Os cartunistas, a fim de salientar um aspecto moral do político, utilizavam-se de elementos da constituição física do personagem. O riso do presidente não era uma demonstração de felicidade espontânea, era uma expressão sarcástica e forçada / rígida.

De acordo com a produção, o presidente teria conquistado pouca popularidade e credibilidade junto à sociedade, em decorrência das instabilidades de seu governo. Um elemento relevante na compreensão deste fato reside nas questões que envolvem a falta de confiança na classe política, tendo em vista o período ditatorial que antecedeu o governo de Sarney.

A inspiração para formulação de um discurso político inerente à prática do humor de imagens se estabeleceu pela necessidade de comunicá-la, transmiti-la. O caráter político na construção de uma charge correspondia não só a um posicionamento do autor diante de um fato, mas também se dava no contato com seu público leitor.

A aproximação entre política e humor presente na produção das charges se deu basicamente por dois motivos. Primeiro porque, em termos proporcionais, essa era a temática do jornal que apresentava o maior número de polêmicas, portanto, constituía-se como conteúdo de inspiração dos profissionais, além disso, a polêmica provocava a curiosidade do público. Em segundo lugar, é próprio do humor transformar situações ou indivíduos em alvos de suas indicações desarmônicas; personagens políticos acabaram sendo utilizados por questões de identificação ideológica, ou seja, esses personagens eram vistos, também pela população, como alvos em potencial para críticas porque foi construído no imaginário coletivo que “deve-se desconfiar dos políticos”. Dessa forma, o humor funcionava como compensação social, na medida em que construía um outro cenário de vivência, onde o indivíduo era destituído de seu poder e tornava-se ridículo.

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[1] FLORES, Onici. A leitura da charge. Eanoas: Ed. ULBRA, 2002. p. 10.

[2] BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade, São Paulo: Martins Fontes, 2001 (coleção tópicos). P. 19.


Publicado por: Matilde de Lima Brilhante

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