DESVENDANDO OS BASTIDORES DO GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 A PARTIR DE SEUS ELEMENTOS ESTRUTURAIS E CONTEXTO HISTÓRICO
Breve discussão histórica acerca dos bastidores do Golpe Civil-Militar de 1964 e seus elementos estruturais.
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Ao examinar a história do Brasil, Dezemone (2014) destaca a presença de uma disputa memorialística que se manifesta por meio de representações duais e polarizadas em relação à última ditadura civil-militar (1964-1985). Por um lado, há a memória da repressão, da violência política e da sistemática violação dos direitos humanos - os “anos de chumbo”. Por outro lado, existe a memória do crescimento econômico, da geração de empregos e da suposta manutenção da ordem social - os “anos de ouro”. Essas duas memórias são distintas e se opõem uma à outra, mas ambas começaram a ser gestadas em 31 de março de 1964.
No meio dessa dualidade, surgem narrativas seletivas que alimentam disputas retóricas, buscando a supremacia de uma narrativa em detrimento da outra. Embora a produção acadêmica e social sobre a primeira narrativa seja historicamente abundante, a segunda tem encontrado eco na identidade de grupos da sociedade civil, especialmente aqueles ligados ao bolsonarismo e ao conservadorismo brasileiro. Nesse contexto, diferentes versões têm gerado narrativas conflitantes, resultando em confrontos. Entender, portanto, a origem dessa disputa, isto é, o contexto histórico do golpe de 1964, é fundamental.
De acordo com Sodré (2010), o golpe civil-militar não pode ser considerado um resultado passageiro dos eventos históricos de março de 1964, tais como o Comício da Central do Brasil, a Revolta dos Marinheiros ou a reunião no Automóvel Clube. O autor argumenta que o golpe começou a ser cuidadosamente planejado por elementos militares a partir de 7 de setembro de 1961, quando a posse do vice-presidente João Goulart foi assegurada. Após 937 dias, o golpe foi desencadeado contra a democracia brasileira.
Devido à natureza multicausal desse acontecimento histórico, algumas confabulações podem acabar sendo feitas por historiadores: será que um diálogo mais amplo entre as diferentes forças políticas e sociais poderiam ter evitado o caminho autoritário que o país seguiu? Será que uma melhor preparação dos conselheiros civis e militares do presidente poderia ter mudado os rumos de algumas ações conflituosas do presidente? Poderia ser o golpe de 1964 evitável?
Esses questionamentos são explorados no trabalho “Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?”, que está presente em 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil (2004) e que analisaremos nesta resenha. Essa coletânea reúne trabalhos apresentados no Seminário 40 anos do Golpe de 1964, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 26 de março de 2004, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF/UFF) e na Fundação Getulio Vargas (FGV).
Sua autoria é de Argelina Cheibub Figueiredo, doutora em Ciência Política pela Universidade de Chicago e atual professora no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Além disso, é pesquisadora emérita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ). Seus principais temas de pesquisa envolvem instituições políticas, relações entre poderes, políticas públicas e eleições.
Figueiredo (2004) inicia suas considerações trazendo sua própria leitura do contexto do golpe civil-militar de 1964. Afirma: “[...] a democracia brasileira sucumbiu ante o confronto de forças radicalizadas de esquerda e de direita” (FIGUEIREDO, 2004, p. 26). Em sua visão, portanto, as instituições democráticas não resistiram a uma polarização violenta vista no Brasil e, assim, cederam às pressões dos dois lados do jogo político.
A grande premissa metodológica da autora é que o golpe não foi uma consequência inevitável de fatores estruturais, sejam eles econômicos ou institucionais, visto que alguns de seus elementos estariam postos desde 1961, quando um golpe militar foi interceptado por forças legalistas. Seu argumento é que escolhas e ações específicas na década de 1960 teriam dificultado uma ampliação da adesão democrática às reformas de base, fazendo com que diminuísse a capacidade de neutralização ao crescente movimento golpista contra o governo.
A partir desse pressuposto não determinista, Figueiredo (2004) se propõe a analisar a crise política que culminou na destituição do governo democrático de João Goulart. Para esse fim, sua metodologia utilizada é a identificação de possíveis alternativas aos acontecimentos históricos, com o objetivo de incrementar o debate historiográfico entre as abordagens estruturais e a abordagem estratégica do problema da mudança política.
Para sustentar sua tese, a cientista política remonta ao contexto turbulento da renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Com a abdicação do então presidente, formaram-se coalizões políticas tanto para impedir quanto para assegurar a posse do vice, João Goulart, antigo ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, deflagrando um claro conflito entre forças golpistas e legalistas no Brasil.
A posse de Goulart foi assegurada a partir da limitação dos seus futuros poderes pela substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo. Vinculado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assumiu a presidência em 8 de setembro de 1961 como o primeiro presidente comprometido com um programa de amplas reformas socioeconômicas Suas intituladas “reformas de base” passaram a ocupar o centro da nova agenda política do país.
Suas propostas reformistas angariaram grande apoio de movimentos políticos, como as ligas camponesas, e de partidos e grupos parlamentares nacionalistas e de esquerda. Contou também com uma expressiva adesão da população civil, ao passo que ganhou desavenças. Nesse contexto de ampla anuência e litígio, Figueiredo (2004, p. 26) questiona-se: “Por que não foi possível naquela conjuntura política alcançar uma solução que combinasse democracia e reformas sociais?”.
Para responder essa pergunta, a autora analisa os meses finais do governo democrático de Jango. Em 6 de janeiro de 1963, Goulart recuperou seus plenos poderes presidenciais por meio de um plebiscito que, com mais de 75% de votos favoráveis, restaurou o presidencialismo frente ao parlamentarismo. Com amplo apoio popular, o resultado acachapante dessa consulta inflamou movimentos oposicionistas ligados ao empresariado, à imprensa e ao latifundiarismo, que recearam perder o controle do rumo e ritmo das reformas.
Embasado nessa vitória popular, o governo de Jango tomou as primeiras iniciativas concretas de suas reformas agrária, administrativa, bancária e fiscal frente ao Congresso Nacional. Em relação ao primeiro projeto reformista, pontos como arrendamento compulsório, desapropriação de terras urbanas e indenização provocavam reações contrárias dos partidos conservadores. Figueiredo (2004) é categórica em pontuar a intransigência dos partidos de direita e esquerda em torno das negociações na Câmara.
Nesse contexto de reações acaloradas, a autora analisa as oportunidades futuras e motivações presentistas que foram exploradas tanto pela coalizão pró-reformas quanto por grupos conservadores. Enquanto a primeira almejava mudanças sociais de cunho estrutural, o segundo estava preocupado com sua própria sobrevivência política e, por isso, era movido por considerações de ordem imediata e particularista. Acirrava-se ainda mais o conflito entre o governo e a oposição parlamentar.
Em meio aos embates vistos no Congresso Nacional, a cientista política pontua a figura hesitante de João Goulart como gargalo de possíveis negociações e conciliações entre os grandes partidos, PTB, PSD e UDN. Ao ceder às pressões políticas, a autora atribui esse fato como um impeditivo para qualquer possibilidade de garantir alguma proposta de emenda constitucional que fomentasse uma reforma agrária.
A população brasileira estava no centro dessa disputa, mas longe de estar inerte politicamente. Para ilustrar o grau de politização da sociedade brasileira, Figueiredo (2004) resgata pesquisas da época feitas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) que apontavam um alto grau de identidade com posições centro-progressistas, o que foi também foi constatado nos resultados das eleições de 1962.
No início de 1964, viu-se uma ampliação da base de apoio da oposição, com a incorporação de outros grupos ao bloco antigovernamental. Segundo Figueiredo (2004), o acirramento do conflito entre os dois grupos políticos teria mitigado qualquer possibilidade de remediação pelas vias democráticas. Com a captura da bandeira da legalidade pela coalizão golpista, o golpe teria sido, assim, a solução autoritária para os conflitos sociopolíticos vivenciados na década de 1960.
Em “Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?”, Argelina Cheibub Figueiredo, em linhas gerais, examina o contexto histórico do golpe civil-militar que ocorreu no Brasil. Sua tese central é que o golpe não foi uma consequência inevitável de fatores estruturais, mas sim resultado de escolhas e ações específicas tomadas ao longo da década de 1960. A autora questiona se um diálogo mais amplo entre as forças políticas e sociais poderia ter evitado o caminho autoritário que o país seguiu.
Analisando o período que culminou na destituição de João Goulart, Figueiredo (2004) propõe uma abordagem estratégica do problema da mudança política, buscando identificar possíveis alternativas aos acontecimentos históricos. Por meio de sua análise, ressalta a intransigência dos partidos, assim como a hesitação de Goulart como um entrave para a negociação e conciliação política. No entanto, também destaca o alto grau de politização da sociedade brasileira na época, evidenciando um potencial para soluções democráticas.
No final das contas, o golpe de 1964 se apresentou como a solução autoritária para os conflitos sociopolíticos vivenciados naquela década, encerrando a trajetória democrática do país. A obra de Figueiredo (2004) contribui, assim, para um debate historiográfico mais amplo sobre o golpe, enfatizando a importância de compreender as estruturas e escolhas que moldaram esse momento crucial da história brasileira.
REFERÊNCIAS
DEZEMONE, Marcus. 1964 e as batalhas de memória 50 anos depois. Revista Maracanan, n. 11, p. 56-67, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12957/revmar.2014.14305. Acesso em 20 fev. 2023.
FICO, Carlos; ARAÚJO, Maria Paula (Orgs.). 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. “Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?” In: FICO, Carlos; ARAÚJO, Maria Paula (Orgs.). 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 26-35.
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
Publicado por: Lucas Barroso

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