“CARÁTER EXPLOSIVO DE EMERGÊNCIA”: ENTENDENDO O POPULISMO À BRASILEIRA DO SÉCULO XX
Breve discussão acerca do populismo brasileiro no século XX.
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Decorrente do processo de crise oligárquica oriunda da Revolução de 1930, o populismo na política brasileira apresenta algumas interpretações historiográficas. Dentre elas duas foram destacadas por Francisco Weffort em sua obra O Populismo na Política Brasileira (1980): o seu caráter puramente governamental ou sua natureza estritamente ligada a uma política de massas. Sobre esse último, o autor destaca o seu intrínseco “caráter explosivo de emergência” (WEFFORT, 1978, p. 21-22). Assim sendo, compreender essa expressão é um importante passo para entender a história em torno da sua aplicação no contexto brasileiro.
Antes de adentrarmos efetivamente na análise do período populista no Brasil do século XX, é necessário que se entenda a conceituação utilizada como norte nesse trabalho, uma vez que a complexidade, a multifacetalidade e a ambiguidade do conceito podem gerar certas divergências entre os leitores. Para tal, o empregamos de acordo com a própria definição de Weffort:
[...] uma estrutura institucional de tipo autoritário e semi-corporativo, uma orientação política de tendência nacionalista, antiliberal e antioligárquica; uma orientação econômica de tendência nacionalista e industrial; e uma composição social policlassista que tem o apoio majoritário das classes populares (1978, p. 80).
Para entendermos a sua aplicação no contexto brasileiro, agora sim, é importante analisarmos as transformações pelas quais a sociedade brasileira passou a partir da década de 1940 que permitiram o seu desenvolvimento singular. Fazendo parte do capitalismo hipertardio (CHASIN, 1999) pela via neocolonial, o desenvolvimento do sistema capitalista no Brasil deu-se de forma periférica, dependente e subordinada ao imperialismo, sendo “um reflexo distorcido da expansão das economias avançadas” (ALVES, 1987, p. 20-22).
Sobre esse período, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o processo de industrialização marcou a sociedade brasileira e efetivamente iniciou a urbanização. Sobre sua origem, a interpretação utilizada por esse trabalho é a visão dos “choques adversos” mobilizada por Roberto Simonsen, em Evolução Industrial do Brasil e Outros Estudos (1973), que afirma que a crise no setor agroexportador, aliado a guerras e a instabilidade internacional, impôs dificuldades à importação e à exportação brasileiras, abrindo oportunidades para a produção industrial interna. Assim, no Brasil, seguindo essa interpretação, a ascensão incipiente da burguesia estaria ligada à rápida decadência e consequente estagnação das oligarquias no contexto nacional, gerando disputas pela legitimidade da liderança do processo de planejamento em virtude da reunião desses múltiplos interesses divergentes.
Nesse contexto de declínio oligárquico e crescimento burguês no Brasil, a ascensão de figuras carismáticas seria essencial para conseguir atender os interesses conflitantes e atenuar as crises internas entre tais grupos sociais, além de “sustentar as mudanças de uma revolução democrático-burguesa” (FERREIRA, 2018, p. 7) em “um País tradicionalmente agrário” (WEFFORT, 1980, p. 61). Dessa forma, a incapacidade dos setores industriais e das classes médias em substituir o sistema oligárquico do Estado brasileiro foi o fator principal da adoção consentida do populismo carismático no Brasil do século XX.
Não obstante, seria interessante, antes de adentrarmos na análise do carisma político na sociedade brasileira, entendê-lo em seu sentido original mais puro. Sobre o aspecto carismático, Max Weber (1864-1920), em Economia e sociedade, reconhece que ele é uma “grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação à tradição” (1991, p. 161), sendo construtora ou destruidora de hábitos em direção a novos rumos (BACH, 2011). Assim, partindo dessa teoria weberiana, no início do século XX, uma dominação carismática no Brasil foi implementada pelas classes dominantes em ascensão para que seus novos interesses fossem legitimados e assim garantidos, estabelecendo, por intermédio deles, alianças ocultas entre as massas exploradas e os setores detentores dos meios de produção (WEFFORT, 1980).
Reunindo uma tendência antioligárquica e uma orientação industrialista (WEFFORT, 1978, p. 80), Getúlio Vargas (1882-1954) foi a primeira personalidade escolhida para desempenhar esse papel vital. Tendo um caráter populista e consequentemente personificando-se na figura do Estado, seus dois governos (1930-1945/1951-1954) foram marcados por concessões de direitos básicos aos trabalhadores urbanos, com um duplo intuito de ter o apoio das classes populares, evitando pressões sobre o Estado e de promover uma segurança social, estimulando o consumo e criando uma base de acumulação capitalista (WEFFORT, 1978; PERES, 2009, p. 93). Assim, a política varguista tinha nas massas um importante pilar de sustentação do seu governo, assim como ocorre com a totalidade dos líderes populistas, posto que a confiança popular legitimaria suas atuações pessoais e posteriormente estatais (WEFFORT, 1980). Sobre essa característica de dependência do apoio popular, Francisco Weffort a interpreta como sendo “um modo determinado e concreto de manipulação das classes populares” (1978, p. 51) e reforça seu caráter de autoritarismo paternalista (FERREIRA, 2018, p. 7).
Enquanto fenômeno estritamente social e político, o início do populismo no Brasil alterou as relações políticas vigentes e instaurou novas formas de se pensar a administração política, fazendo com que os trabalhadores urbanos passassem a ter cada vez mais importância no cenário brasileiro (MATTOS, 2009, p. 76-77), em oposição à exclusão popular do campo político nos governos oligárquicos (WEFFORT, 1980). Assim, após 1945, mesmo com o fim da Era Vargas (1930-1945), essa classe social passou a se formar como uma nova força política do Brasil, o que deixou os liberais com tendências elitistas extremamente insatisfeitos e receosos.
Fato disso aconteceu na eleição presidencial de 1945, em que a esmagadora vitória de Eurico Gaspar Dutra (PSD) foi atribuída ao apoio de Getúlio Vargas e a consequente reunião das massas em prol da sua campanha. Sobre isso, nos principais veículos midiáticos do Brasil, o fracasso de Eduardo Gomes (UDN) ecoou como uma consequência da manipulação varguista das classes populares. O exemplo disso está presente no artigo de Plínio Barreto (1882-1958) publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 26 de janeiro de 1947. Nele, o jornalista, que era filiado a UDN (União Democrática Nacional), expõe seu descontentamento com o resultado das eleições e se propõe a apresentar conselhos para quem quer ter êxito na política brasileira, entre eles: evitar fazer as massas pensarem; fazer promessas ao povo, mesmo que não as cumpre; e sempre dar razão à nação (apud WEFFORT, 1978, p. 24). Assim, mesmo Vargas cumprindo um importante papel para as classes dominantes, o seu populismo também foi duramente criticado pelo seu caráter intrinsecamente manipulatório.
Outro exemplo disso ocorreu futuramente com as eleições presidenciais de 1950, em que o próprio Vargas foi o protagonista da situação. Novamente derrotando Eduardo Gomes (UDN), a ascensão democrática de Getúlio ao posto de presidente do Brasil - mais uma vez - deixou os setores liberais de classe média insatisfeitos. Sobre isso, falando de um “caráter explosivo da emergência política das massas”, Francisco Weffort, em O Populismo na Política Brasileira, usa como exemplo o editorial da revista Anhembi (São Paulo), de dezembro de 1950. Nele, os liberais componentes do periódico expuseram toda a sua amarga perplexidade chamando os eleitores de “[...] miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos, espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados, pelo abandono, homens boçais, maus e vingativos [...]” (apud WEFFORT, 1978, p. 21-22). Dessa forma, esse tratamento pejorativo direcionado às massas reforça o posicionamento demofóbico presente nas análises elitistas dos setores liberais da sociedade brasileira do século XX.
Após entendermos as repercussões negativas do populismo brasileiro no campo jornalístico, agora, é necessário compreender o que Francisco Weffort quis dizer com a expressão “emergência política das massas” (1978, p. 22). Para tal, o primeiro passo é entender a delimitação social utilizada pelo cientista político. Quanto à abrangência do termo “massas”, segundo o autor, ele caracteriza todos os “setores sociais-urbanos ou rurais, assalariados, semi-assalariados ou não-assalariados, cujos níveis de consumo estão próximos aos mínimos socialmente necessários para a subsistência” (WEFFORT, 1972; FERREIRA, 2018, p. 4). Ademais, de acordo com Weffort (1980, p. 72), mesmo que podendo causar imprecisões conceituais, as expressões “massas populares” e “classes populares” são utilizadas de forma útil pelo autor com o intuito de captar uma certa homogeneidade na extensa heterogeneidade presente nas diversas áreas inferiores do capitalismo vigente no Brasil.
Sendo consequência direta da emergência das massas à vida urbana, em decorrência do início efetivo do processo de industrialização, a incorporação emergencial das massas à política deu-se “num ambiente de falta de experiência política e comprovada incapacidade de as principais classes sociais dirigirem o Estado” (FERREIRA, 2018, p. 6-7). Em meio a efervescência social e a translucidez dos papéis sociais depois da queda da República Velha em 1930, as massas urbanas emergiram como um novo personagem político de “parceiros-fantasmas” das “elites” (WEFFORT, 2003, p. 13), sendo, segundo o Weffort, “a única fonte de legitimação possível ao novo Estado brasileiro” (1978, p. 50), uma vez que absorveria os prejuízos decorrentes da crise econômica e social da decadência oligárquica (FERREIRA, 2018, p. 8). Assim, em virtude “das debilidades políticas dos grupos dominantes urbanos” (WEFFORT, 1980, p. 61), seu uso político no cenário brasileiro da primeira metade do século XX surgiu estando atrelado intrinsecamente ao caráter manipulatório do populismo varguista, sendo um empreendimento direto desse setor e não dos grupos dominantes (WEFFORT, 1980, p. 68).
Seja como estilo de governo ou como política de massas, o populismo no contexto brasileiro apresentou particularidades específicas e é passível de algumas interpretações historiográficas. Dentre elas, cumprindo um papel essencial após a crise oligárquica, os líderes populistas do Brasil foram o fim inicial do processo industrial no país, sendo responsáveis por convergir e atenuar interesses dominantes sob a figura dos trabalhadores urbanos. Sobre isso, em meio ao processo de rápida urbanização, a sua “emergência” era essencial e urgente, mesmo que isso se configurasse como um “caráter explosivo”, como Weffort assim salientou (1978, p. 21-22). Dessa forma, mesmo que não sendo absoluta, a primeira incorporação forçada e condicionada das massas ao jogo político se deu na forma de manipulação populista de suas aspirações e de controle estatal de seus interesses (WEFFORT, 1980). Alinhando a personalização do poder a uma necessidade mística de participação popular, o populismo à brasileira do século XX inaugurou o “Estado de Massas” no Brasil (WEFFORT, 1980), expressão que representa uma modalidade política que repercute no imaginário da sociedade brasileira até os dias de hoje.
REFERÊNCIAS
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Publicado por: Lucas Barroso

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