O valor do “dane-se!”
O valor do “dane-se!”, os ciclos ao longo da vida, a insensibilidade e brutalidade humana, equilíbrio ou serenidade (ataraxia), corpo: a âncora da existência, tetrapharmakon epicurista.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Passamos por ciclos ao longo da vida e, muitas vezes, sequer sabemos porque os adentramos. Nem temos certeza se o modo como estamos nos conduzindo em meio a eles é o mais correto. E ficamos torcendo para que se fechem logo, para iniciarmos outros ciclos, de preferência com menos dor de cabeça e alguma tranqüilidade.
Esses processos não dão trégua: é a religião cuja prática evidencia não ser suficiente, a relação amorosa cuja vivência se torna um tormento, o trabalho que vai fazendo com que botemos os pés no chão, a insensibilidade e brutalidade humana que nos destroçam...
Certo equilíbrio é importante em meio a tudo isso. E quem deu boa contribuição sobre o equilíbrio ou serenidade (ataraxia) foi Epicuro (341-270 a.C.). Nascido em Samos, antiga Grécia, esse filósofo passou para a história da filosofia como figura de destaque do período helenístico. Sua escola tinha o nome de Jardim, por funcionar no quintal de sua casa. Tratava-se de uma escola que aceitava homens, mulheres e crianças, característica importante em um tempo em que a tradição legitimava apenas a presença masculina nesse tipo de espaço social.
Epicuro vê no corpo a âncora da existência e assegura que a felicidade humana é possível pela via do prazer. Não qualquer prazer. Segundo ele:
“Quando dizemos que o fim último [da vida humana] é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma” (Carta sobre a felicidade - CSF, p. 41)**.
Veja: o prazer consiste em evitar a dor e buscar a moderação dos desejos. Valem, pois, os prazeres naturais e necessários, qualificados pela serenidade, a ataraxia:
"... todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem toda dor deve ser evitada. Convém avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos" (CSF, p. 38-39)**.
Como o ser humano pode alcançar tal estado de imperturbabilidade? Segundo Epicuro, fazendo uso de Quatro Remédios (tetrapharmakon), comentados na Carta sobre a felicidade citada acima, quais sejam:
1 - Não é preciso temer os deuses.
"Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons" (CSF, p. 25)**.
2 - Não é preciso se preocupar com a morte.
"Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade" (CSF, p. 27)**.
3 - É fácil alcançar o bem.
"...em razão dele [o prazer] praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor" (CSF, p. 35)**.
4 - É fácil suportar o que nos amedronta.
“Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens” (CSF, p. 51)**.
Outro dia me lembrei do tetrapharmakon epicurista ao ler li algo que dizia que a saúde mental de uma pessoa está diretamente ligada à quantidade de “dane-se!” que ela é capaz de dizer em meio a ciclos e processos que, de outra forma, poderiam causar preocupação e todo tipo de desgaste pessoal. Não se trata de irresponsabilidade, mas de certa maturidade.
Penso que esse "dane-se" é o outro nome da serenidade ataráxica de que fala Epicuro. Se assim é, em nome do prazer natural possível que aplaca os desejos e dá felicidade, o melhor mesmo é “não estar nem aí" para certas coisas, fatos e pessoas, sobretudo para os seres humanos que teimam em não agir como gente digna de si mesmos e daqueles que os cercam. Então, que se danem, juntamente com aqueles que insistem em não querer entender o que Epicuro quis dizer.
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* Wilson Correia. Desenvolve pesquisa de doutoramento na UNICAMP. É mestre em Educação pela UFU. Cursou especialização em Psicopedagogia pela UFG. Graduou-se em Filosofia pela UCG. É professor universitário. É autor de Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.
**EPICURO. Carta sobre a felicidade –a Meneceu. Trad. Á. Lorencini e E. D. Carratore. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997.
Publicado por: Wilson Correia
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