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A Maldade é Fruto da Paixão, segundo St. Agostinho

Pensamentos acerca da maldade humana, Agostinho trata do livre arbítrio humano, seu porquê e suas consequências.

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Você já se perguntou, por que agimos mal? Isto é, já teceu pensamentos acerca da causa da maldade humana? Santo Agostinho, em sua obra De Libero Arbitrio (Livro I, Primeira Parte, Cap. 3), é indagado por Evódio, seu perspicaz interlocutor, acerca da causa de procedermos mal, isto é, da maldade como classificação possível para a ação do humano.

Sempre muito atento ao caminhar de seu filosofar, Agostinho dá um passo atrás no desenvolvimento do diálogo, explicando a Evódio que tal questão (a causa de procedermos mal) não pode ser trabalhada sem que antes se esclareça uma questão interna a ela, pois não é possível alocar o “proceder Mal” como efeito, no objetivo de encontrar sua causa, sem que antes seja esclarecido o que é, qual o conceito e a qual dimensão do Mal em questão.

Primeiramente, faz-se necessário compreender, então, em qual dimensão estão, Agostinho e Evódio, tratando o conceito de Mal. A vasta obra de Agostinho investiga o Mal em diversos níveis, desde o Ontológico, no que tange ao debate da substancialidade do Mal (apresentado em sua obra Confissões – Livro VII, cap. 12), até o nível moral, mais pragmático, isto é, da valoração do agir humano enquanto ser racional. O diálogo aqui abordado, como já explicitado, insere-se na obra De Libero Arbitrio, onde Agostinho trata do livre arbítrio humano, seu porquê e suas consequências. Assim, é pré-entendido, entre Agostinho e Evódio, que estão a tratar da dimensão moral do Mal.

Segundamente, estando estabelecida por evidente – dado o momento na estrutura da obra em que se encontra a questão – a dimensão em que o Mal está sendo investigado, falta alcançar uma clareza acerca do conceito de maldade, ou seja, o que é agir/proceder Mal. Desta forma, Agostinho solicita que Evódio exemplifique o “mal proceder” por ações que, especialmente, poderiam ser classificadas nesta categoria.

              “Os adultérios, os homicídios e os sacrilégios [...] Quem não considera aquelas ações como más?” é o que responde Evódio sobre ações especialmente más, para exemplificar a categoria dos maus procedimentos. Observe que no exemplo de Evódio é apresentada, respectivamente, uma ação contra um terceiro – o adultério (aquele que sofre tal mal não está envolvido na ação); uma ação contra o próximo – o homicídio; e, por fim, uma contra Deus. O único esclarecimento inicial prestado por Evódio, para embasar sua classificação de tais procedimentos, como maus, é uma apelação ao valor que elas tem no senso comum (“quem não considera aquelas ações como más?”).

Obviamente, para Agostinho e seu imenso apreço pela razão, justificar que determinados procedimentos são maus pela simples constatação de que são abominados pela opinião pública é retoricamente insuficiente. Sabiamente, Agostinho seleciona – para problematização – aquele, dentre os 3 exemplos, que seria o mais duvidável no sentido de sua classificação como uma ação essencialmente má: o Adultério; questionando Evódio se tal ação não seria dada por moralmente negativa pelo simples fato de ser proibida pela lei. Aqui é importante ressaltar que ainda não foi realizado no diálogo a distinção entre Lei Eterna (Divina) e Lei Temporal (Lei das Sociedades Humanas).

[Observação: Daqui em diante, por todo o diálogo aqui analisado, o adultério servirá de exemplo, específico, para a má ação, universal.]

Para Evódio, porém, em sua argumentação certas vezes de cunho legalista, o Adultério não é mau porque a Lei o proíbe, mas, pelo contrário, é proibido pela Lei por ser mau. Note que a argumentação legalista de Evódio se tornou cíclica, redundante, e insuficiente, isto pois não foi esclarecido como é possível julgar que determinada ação é má, somente foi dito que ela é, assim, pela lei, julgada.

Agostinho insiste com Evódio que, apesar de também crer no adultério como um mal procedimento, é necessário que ele se esforce para explicar racionalmente, não pela fé ou pelo simples postular da lei, o porquê de ser, o Adultério, uma má ação. Evódio recorre, assim, ao que pode parecer uma compreensão anacrônica, ou simplista, de Mateus 7:12 (“Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas”), respondendo, no caso específico, que sabe que é um mal (o Adultério) pois não gostaria de ser vítima de tal ação, universalizando então para: quem quer que faça um mal o qual não quer que lhe façam, procede mal. Ou seja, Evódio quer ter a Empatia como saída para determinar o que é bom e o que é mal na prática social, moral.

A objeção que Agostinho apresentará é demasiadamente interessante para nossa sociedade corrente, visto que diversas vezes reduzimos Ética a Empatia, ou, mais precisamente, ao pensamento apresentado por Evódio: não fazer ao próximo aquilo que não quer que ele faça a você. A objeção de Agostinho é apresentada como uma questão retórica, perguntado se caso alguém, por paixão, entregasse sua esposa para ser vitimada por outro homem, desejando ele poder também vitimar a mulher deste próximo, se isso não seria um mal.

Evódio sabe que, evidentemente, a ação descrita por Agostinho, como questão retórica, seria, sim, uma má ação. Assim, Agostinho fecha tal questão concluindo que, dentro da regra proposta por Evódio, da Empatia (de não fazer ao próximo aquilo que não quer sofrer dele), a ação descrita (do homem que, por paixão, de bom grado entrega sua mulher na esperança de também poder receber a mulher alheia) seria uma boa ação, visto que o homem do caso não faz ao outro aquilo que não gostaria de vivenciar.

Ou seja, para Agostinho, a regra de não fazer ao próximo aquilo que não quer que ele faça a você é racionalmente insuficiente, uma vez que, o indivíduo que desejasse sofrer, em si ou, no caso do exemplo, na figura de sua mulher, estaria devidamente aprontado, segundo a regra ética estabelecida pela empatia, para fazer o outro sofrer também.

Evódio então, aceitando a contraposição agostiniana, volta para sua posição legalista e argumenta que parece ser, o adultério (ainda como exemplo de todos os atos de maldade), um procedimento mau, pois diversos homens eram condenados (pela Lei Temporal, Civil) por agirem de tal maneira. Agostinho será implacável em sua resposta, refutação, como cristão, lembrando seu interlocutor que os Apóstolos, e o próprio Cristo, foram condenados por determinada Lei Temporal dos homens. Assim, tal regra de Evódio para averiguar se uma ação é boa ou má, se dada como válida, estaria, por conseguinte, julgando como más as ações dos apóstolos e do próprio Cristo, que foram perseguidos e condenados por Lei, o que, na cosmovisão cristão, na qual se desenrola o diálogo, é absurdo.

Ou seja, não foi possível justificar porque determinada ação é má com base em Empatia, ou melhor, na falta de empatia, também não foi possível pelo legalismo encontrar uma justificativa universal para a classificação moral dos atos. A Empatia como regra ética é insuficiente, pois, como visto, pode cair na contradição de permitir, ao invés de negar, atos de crueldade. O legalismo de Evódio, por sua vez, também não alcança qualquer conclusão racional, pois cai, como vimos, na redundância.

Note que ambas as possibilidades refutadas são oriundas de investigações externas ao indivíduo humano, isto é, encontram-se em sua ação no mundo, frente a outros conviventes, e não confrontado com ele mesmo. Assim sendo, Agostinho declara que existe um impasse sempre que se tenta encontrar, no mundo, nas ações dos homens propriamente ditas o valor moral de tais ações, a bondade ou a maldade que elas carregam.

Agostinho argumenta, partindo daí, que a maldade não se encontra na ação, no proceder em si, inclusive, uma mesma ação pode ser boa, má ou até mesmo, de certa forma, neutra, dependendo do porquê e do como foi realizada, isto é, da motivação e da condição do sujeito da ação (conforme explicita nos capítulos seguintes – 4 e 5).

Como alternativa ao impasse que existe na tentativa de encontrar a maldade completamente no ato exterior (ação), Agostinho propõe que esta seja encontrada na internalidade do indivíduo. Aquilo que é interno ao indivíduo e que o atiça, por desejo, a agir sobre o mundo e seus conviventes, é a Paixão. Assim, diz Agostinho:

“Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visível, caíste em impasse. Para te fazer compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito (Mt 5,28)”.

(De Libero Arbitrio, L. I, 1ª P., Cap. 3)

A Paixão (acometimento interno) induz o desejo (ato interno), o desejo, quando não controlado (pela razão), leva ao ato exterior, chamado de ação. Como uma mesma ação pode ser boa ou má, dependendo de sua motivação e condição, a malícia não está na ação, mas, na verdade, na motivação da ação, isto é, em princípio, na paixão. Conclui-se que a maldade é efeito da paixão descontrolada (a maneira de controla-la seria submetendo-a a Razão, mas isso já é outro assunto...) e que a maldade não necessita de ser consumada em ato externo, já agindo mal aquele que tem intenção maliciosa. Por fim, conclui Evódio:

“Nada é tão evidente [quanto ser a paixão a detentora da malícia no adultério]. Vejo já não ser mais preciso longos discursos para me convenceres do mesmo [de que é na paixão que se encontra a maldade] a respeito do homicídio, do sacrilégio e, enfim, de todos os outros pecados. Com efeito, é claro que em todas as espécies de ações más é a paixão que domina.”

(De Libero Arbitrio, L. I, 1ª P., Cap. 3)

Bibliografia

AGOSTINHO, Santo. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995

MARCONDES, D. Textos Básicos de Ética: de Platão a Foucault (Cap.: 3 - Santo Agostinho). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MARCONDES, D. Textos Básicos de Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein (Cap.: 4 - Santo Agostinho). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Por Rafael Ferreira Martins


Publicado por: Rafael Ferreira Martins

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