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A ambiguidade da história no pensamento de Nietzsche

Breve argumentação acerca da ambiguidade histórica no pensamento de Nietzsche.

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No século XIX, Friedrich Nietzsche (1844-1900), na sua Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida (2003), tece importantes considerações acerca da ambiguidade da história, tanto em seu valor positivo quanto na sua falta de valor, a partir de uma certa influência kantiana. Além de provocadoras, essas ponderações são consideradas intempestivas (isto é, algo fora de seu tempo e, igualmente, inoportunas) pelo próprio filósofo alemão por serem um empreendimento tanto crítico quanto pioneiro em/de seu próprio tempo. Partindo de um estilo literário, o mote da obra está centrado na exposição pública da natureza de um sentimento torturante que estava o atormentando: a experiência histórica de sua época estaria padecendo. Nessa direção, suas ponderações acerca da filosofia da história realizam uma epistemologia da própria história.

Já na primeira seção, as suas considerações apresentam o princípio de ambiguidade que estaria presente na história, de acordo com os pensamentos de Nietzsche (2003). Para o filósofo alemão, precisar-se-ia da história “para a vida e para a ação”, e não para um confortável abandono da vida ou para um embelezamento do egoísmo e da covardia. De acordo com suas metas, forças e necessidades, a história deveria servir à vida e não ao contrário. No entanto, o seu próprio tempo padecia, ainda de acordo com Nietzsche (2003, p. 6), de uma ardente “febre histórica” (historische Fieber). O sentido histórico do século XIX pareceria, assim, uma virtude hipertrofiada, em caminho para a degradação de todo um povo.

Nesse contexto, ao passo que seria preciso impulsionar a história à serviço da vida, o filósofo alemão, porém, afirma que, com o excesso de história e de historicidade enquanto uma erudição vazia, o homem perderia sua natureza e ousadia, bem como suas ações e características grandiosas. Seria necessário, assim, a presença de um equilíbrio entre historicidade e a-historicidade, rememoração e esquecimento. Além disso, seria com um excesso de história que a vida de um homem, de um povo e de uma cultura degenerar-se-ia e, assim, desmoronaria, o que, consequentemente, também afetaria as suas narrativas de suas próprias histórias (NIETZSCHE, 2003, p. 12-13,17). Em meio à ambiguidade da história no pensamento nietzscheano, seria necessário, assim, a aplicação de uma dosagem correta da própria história e de sua historicidade. 

Em suas críticas à metafísica tradicional, Nietzsche (2009), em Genealogia da Moral, reivindica a história como pilar fundamental de sua própria atividade filosófica e de seu método genealógico. Em oposição ao modelo metafísico, a proposta de sua ideia de genealogia seria capaz de, a partir de reflexões nas proveniências das crenças e valores, por exemplo, filosofar historicamente acerca da atestação de suas transitoriedades e de seus dinamismos históricos. Com a história, seria possível descontruir as ideias pré-concebidas de valores absolutos e universais, rompendo, assim, com a histórica estaticidade metafísica. “[...] Todo homem e todo povo precisa de um certo conhecimento do passado [...]” (NIETZSCHE, 2003, p. 31) e, por isso, a história ocuparia um lugar de importância em sua filosofia e em seu método genealógico. Não é à toa que, em sua formação primária em filologia clássica, Nietzsche (2003, p. 7) se considerava um pupilo dos tempos mais remotos, em especial dos gregos antigos

No entanto, Nietzsche (2003) teceu críticas a respeito da experiência histórica de sua própria época. Segundo o filósofo alemão, o século XIX seria marcado por um excesso de conhecimento histórico, uma “febre histórica” (historische Fieber), que acabaria inviabilizando o serviço e a conexão da própria história à vida humana. Nesse século, o processo de cientifização da história, bem como sua exigência de ser ciência, acabaria, assim, tornando-a autônoma, o que geraria um fim em si mesmo e não à sua utilidade para a humanidade. O mero saber cientificista ultra saturado retiraria o caráter de ação e transformação que seria inerente aos serviços que a história poderia prestar à vida. Quanto a isso, por dever estar à serviço da vida – um poder dito a-histórico – a história “[...] jamais, nesta hierarquia, poderá e deverá se tornar ciência pura, mais ou menos como o é a matemática” (NIETZSCHE, 2003, p. 17).

Além disso, essa “doença europeia” do século XIX também seria intensificada pela excessiva glorificação passadista e pela acumulação erudita da história pela própria modernidade, o que acabaria gerando uma produção compulsiva de conhecimento histórico, que, mais uma vez, estaria desconectada da sua própria realidade concreta e de sua utilidade social voltada à vida, em suas metas, forças e necessidades. Desse modo, segundo a análise nietzscheana, a historiografia oitocentista, em virtude de sua erudição vazia e meramente acumulativa, seria marcada pela ausência de problematizações, análises e reflexões críticas, o que teria retirado, portanto, sua função maior de estar à serviço da vida. Nesse contexto, a história estaria voltada exclusivamente à mera ampliação do conhecimento, e não ao domínio, à condução e às necessidades da vida.

Nessa direção, Nietzsche (2003) apresenta suas três concepções de história. Em suas interpretações, a história estaria triplamente ligada ao vivente, de acordo com os aspectos de agir e aspirar; preservar e venerar; sofrer e carecer de libertação. A essas ligações seria possível corresponder ainda a três espécies de história, a saber, a história monumental (monumentalische Historie), a história antiquária (antiquarische Historie) e a história crítica (kritische Historie). Para o filósofo alemão, enquanto introspectados pelos próprios viventes, os três paradigmas históricos seriam definidos, respectivamente, como a capacidade de criação de ídolos em virtude da sobrevivência de apenas o que foi grande e poderoso nos tempos passados; a veneração irrefutável do passado em base da tradição; e o julgamento e a condenação de acontecimentos em face da história.

Primeiramente, de acordo com Nietzsche (2003), o pensamento fundamental de uma história dita monumental (monumentalische) estaria centrado nos grandes momentos dos indivíduos, que, por sua vez, ligariam a espécie humana através dos séculos e, assim, permitiriam as suas próprias recordações ao longo das temporalidades. Nessa concepção, apenas o que seria considerado “grande” sobreviveria no tempo enquanto fatos adornados e singulares. O valor positivo dessa consideração seria a possibilidade da presença de um norte guiador por meio de experienciações históricas e atuais do passado. 

Todavia, a presença apenas de grandes feitos acabaria negligenciando e inviabilizando a rememoração de outros momentos históricos, por exemplo, o que prejudicaria o próprio passado em sua totalidade e historicidade. Por conseguinte, uma mera imitação de grandes experiências do passado poderia acabar resultando em uma ficção mítica, uma vez que, a partir de estímulos singulares de um único passado, visar-se-ia apenas a imitações, que, assim, se transformariam em distorções e ilusões nos tempos presente e futuro, em virtude de sua impossibilidade de aplicações semelhantes (NIETZSCHE, 2003, p. 19-20, 22).

Em seguida, pertencendo ao lugar de preservar e venerar, Nietzsche (2003) aponta que a história antiquária (antiquarische Historie) seria definida por um olhar passadista de amor e fidelidade. Servindo à vida, os dons e as virtudes do sentido histórico-antiquário seriam a conservação das condições de um passado, como uma tradição, uma crença e os bens de ancestrais, por exemplo. Com essa concepção, seria possível vislumbrar conexões geracionais entre populações, bem como de seus hábitos no passado e de suas origens. Assim, seria possível compreender o passado em seu sentido de herança. 

Entretanto, além de possuir um campo de visão restrito em um passado, o excesso do olhar antiquário acabaria recusando e hostilizando a novidade do presente, de acordo com Nietzsche (2003), uma vez que essa concepção compreenderia a vida apenas em sua conservação venerável e não em uma geração. “A história antiquária degenera-se justamente no instante em que a fresca vida do presente não a anima e entusiasma mais” (NIETZSCHE, 2003, p. 28). Ao apenas mumificar a vida passada, o enrijecimento erudito e egoísta do sentido histórico-antiquário retiraria a sua própria razão de ser, uma vez que não serviria mais à vida da humanidade, mas apenas a um passado. Assim, no limiar dessa ambiguidade, essa concepção seria danosa em seu excesso.

Por fim, aplicada de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a história crítica (kritische Historie), segundo Nietzsche (2003), teria, por intermédio da vida, efeitos julgadores, inquisitórios e condenatórios. Estaria à serviço da vida porque, como dito, seria a própria vida que anunciaria o veredicto final, a partir de seus desejos, que, por exemplo, podem ser obscuros, impulsionadores e inesgotáveis. Dessa forma, essa concepção consideraria o passado de forma crítica e ela seria útil por isso. 

No entanto, a interpretação nietzscheana entende esse processo, se ocorrido em excesso ou em desbalanço, como prejudicial à própria vida. Ao julgarem, condenarem e aniquilarem um passado, os sujeitos históricos no tempo presente podem acabar silenciando e apagando importantes ensinamentos e contribuições do pretérito ao seu tempo. Mesmo com a criticidade desse modelo e com inevitáveis mudanças, não seria possível libertar-se totalmente das influências do passado, de acordo com Nietzsche (2003). Assim, na dificuldade de se encontrar um limite na negação e no julgamento de acontecimentos, a própria utilidade do sentido histórico-crítico seria posta em questão.

Portanto, em meio à presença de uma ambiguidade da história em seu pensamento, Nietzsche (2003) aponta que haveria infortúnios que seriam causados pelo emprego excessivo ou desbalanceado das três concepções de história. O modelo monumental (monumentalische) poderia se degenerar em virtude da possibilidade futura de se destruir monumentos e ídolos, em vistas de forjar novos valores para uma nova sociedade em ascensão. Já a antiquária (antiquarische) poderia acabar restringindo novas formas e possibilidades de se fazer história em tempos presentes e futuros. Por fim, a concepção crítica (kritische) poderia vir a criar um forte desbalanço entre os tempos, o que poderia gerar uma sobrepujança do futuro em detrimento do presente e do passado. Assim, em suas excessos, haveria um desbalanço, fazendo com que a história não estivesse mais à serviço da vida.

Logo, em virtude de suas ambiguidades, o balanceamento ponderado entre essas formas seria o remédio da ardente “febre histórica” (historische Fieber) do século XIX, assim como a antítese das críticas nietzscheanas à experiência histórica de sua própria época. Isso porque, enquanto uma atmosfera única de uma névoa espessa, seria com a capacidade de se sentir de modo a-histórico que se poderia formar características retas, saudáveis, grandiosas e verdadeiramente humanas (NIETZSCHE, 2003, p. 12). Dessa forma, a solução para a “doença europeia” oitocentista seria a dosagem correta e adequada de história, seja ela monumental, antiquária ou crítica, que precisaria estar à serviço da vida, sendo assim, um pilar fundamental do método genealógico de Nietzsche (2009), em suas críticas à metafísica e à experiência histórica de sua época.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


Publicado por: Lucas Barroso

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