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Sobre o “Pai Nosso” nas escolas públicas: Pode ou não?

Breve análise sobre o "Pai Nosso" nas escolas públicas: Pode ou não?

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

RESUMO

O presente artigo jurídico deseja fazer uma reflexão se há ou não risco jurídico na conduta de compelir os alunos matriculados nas escolas públicas a orar coletivamente o Pai Nosso, visto que o Brasil é considerado um Estado Laico, devendo o Estado, a União e os Municípios não promoverem ou privilegiarem uma ou outra religião nos termos do artigo 19, inciso I da Constituição Federal de 1988.

PODE OU NÃO O PAI NOSSO SER IMPOSTO NAS ESCOLAS PÚBLICAS?

Como é sabido, no Brasil temos muitas escolas que fazem e obrigam a mencionada oração, tal afirmação pode ser facilmente demonstrada por meio da Ordem de Serviço 008/2017 – SME, art. 2º do Município de Barra Mansa/RJ, que diz o seguinte:

Art. 2º - Após (entoação do Hino Cívico) deverá ser feita a Oração do Pai Nosso, que por ser universal é aceita pela maioria das manifestações religiosas.

§ 1º- Os alunos que não desejarem fazer a oração, deverão declarar, por escrito, através de seus responsáveis.

§ 2º- No caso do parágrafo anterior, os alunos que apresentarem declaração, após o hino, seguirão para as respectivas salas de aula.

E o caso de Barra Mansa/RJ não é único, no passado o Ministério Público do Estado da Bahia se insurgiu em face da Lei Municipal n. Lei nº 3.589/2011, a mencionada obrigava os estudantes do Município de Ilhéus/BA a orarem o Pai Nosso antes das aulas regulares.

Sobre Ilhéus/BA, em 17/04/2012 foi publicada notícia no portal do Ministério Público do Estado da Balha ( https://www.mpba.mp.br/noticia/27240) relatando a suspensão da mencionada obrigatoriedade por intermédio de uma decisão Judicial.

A ADIN proposta pelo Ministério Público do Estado da Bahia contou com a participação do saudoso Promotor de Justiça Cristiano Chaves de Farias, jurista de renome e que deixou um grande vazio no meio jurídico com a sua partida em 06/11/2023.

Feitos os comentários acima, temos que o cerne da questão reside no fato de que o Brasil adotou o Estado Laico, ora da leitura do artigo 19, inciso I, da Carta Maior percebemos uma proibição clara e literal aos Estados, União e Municípios de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

No mesmo sentido, o Ministro já aposentado do Supremo, Marco Aurélio, ao apreciar a ADPF 54/DF destacou em seu voto que “a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais”, embora na ocasião analisou-se o aborto dos fetos anencéfalos, tal conclusão pode ser aplicável aos atos de coordenação, gestão e direção dos estabelecimentos escolares mantidos pelo Estado.

Deve ser compreendido igualmente que a Carta Magna assegurou que todo cidadão tem o direito à “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, inciso VI).

A supracitada liberdade nos é confirmada pelo Estatuto das Crianças e Adolescentes – ECA, em seu artigo 16, inciso III, logo, não há maiores dúvidas quanto ao direito à não imposição de uma religião aos alunos das escolas públicas do Estado ou do Município.

A liberdade religiosa, como qualquer outra liberdade, não é plena, visto que “O direito de liberdade não é absoluto, pois a ninguém é dada a faculdade de fazer tudo o que bem entender. Essa concepção de liberdade levaria à sujeição dos mais fracos pelos mais fortes” (PINHO, 2000, p. 76), por essa razão, não atende aos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade a imposição pela maioria à minoria de uma determinada religião, oração ou símbolo religioso.

Não devemos nos esquecer que as crianças estão em fase de formação, justamente por estarem em desenvolvimento não é justo que orações ou gestos religiosos lhes sejam impostos pela escola pública, caso contrário haverá um risco real de afronta à liberdade de escolha de uma religião ou crença, que é um direito assegurado a todos os brasileiros.

Ainda que se argumente que o Pai Nosso é uma oração universal, tal afirmação não é unânime, temos artigos acadêmicos listando opiniões de professores que atuam diretamente no ambiente escolar tecendo críticas à universalidade defendida por quem geralmente costuma apoiar a imposição coletiva do Pai Nosso nas escolas, cito:

Allan Santos é Professor Pós-graduado em História do Brasil e História das Relações Internacionais e professa a fé islâmica. Quando perguntado sobre a universalidade da oração do Pai Nosso no ambiente escolar, responde:

“Acho que não é válido. A prática dessa oração é de uma determinada religião. Isso é forçar as crianças a aprenderem sobre uma religião. É impor as práticas de uma religião sobre todas as pessoas não respeitando a crenças das outras crianças.”

Percebemos afinidade desta resposta com a promoção da educação laica que se apresenta legalmente. Nessa visão a prática religiosa de caráter cristão no ambiente escolar invalidaria a promoção da diversidade. Allan Santos nem cogita tal pratica religiosa de forma ecumência. (DOS SANTOS; DE CASTRO, 2020, p.82).

Diante das lições acima mencionadas, respeitamos a opinião do professor Allan Santos, não há como garantir a universalidade do Pai Nosso, inclusive muitos professores, conforme destacado em um outro artigo, se mostram incomodados com o excesso de imposição católica nas escolas públicas, vejamos:

Alguns docentes se mostraram incomodados, mas a maioria aparentemente atenuava essa mistura entre a coisa pública e religião. Além dos objetos tidos como sagrados, os (as) docentes também apontaram o incômodo com as festas de comemoração de feriados católicos na escola (Páscoa, a Festa Junina, o Natal).

A fala do grupo refere uma prática comum nas escolas (exceto nos colégios confessionais não cristãos): rezar o Pai Nosso, escrever versículos bíblicos no cabeçalho das lições, fazer orações antes das refeições e comemorar efemérides cristãs. Elementos da doutrina cristã como a ressurreição de Cristo na Páscoa, seu nascimento virginal no Natal, a Festa Junina em louvor aos santos católicos São João, Santo Antônio e São Pedro, estão tão arraigados na cultura escolar que não raramente usam-se discursos naturalizantes que justifiquem a imposição de dogmas religiosos aos estudantes, de forma a relativizar a exclusão de ateus, evangélicos, testemunhas de Jeová, judeus, budistas, mulçumanos etc.

A questão da prática é também complicada, porque quando você faz a festa junina, os alunos que não são católicos, eles não vêm. Até... falou assim “ah ele não vai dançar festa junina? Por quê? Ah, tadinho [...] não vai poder participar”. (Docente 1).

A docente apontou que o fato de um estudante não participar de uma comemoração católica na escola não é problematizado e a revisão deste tipo de prática não é realizada, como se nada pudesse ser feito a respeito: “Ah, tadinho”. E o direito dos estudantes à escola laica, reivindicado pelas famílias, na recusa a participar de tais atividades, é tratada como “encrenca”, implicância gratuita. (GOMES; DE AGUIAR; FERNANDES, 2021, p. 156).

Vimos no texto acima que alguns alunos ficam de fato segregados das atividades, ocorre que analisando as decisões judiciais pretéritas, temos que tal divisão é juridicamente contestável, assim nascendo um risco jurídico na prática de impor a oração do Pai Nosso em uma escola pública, visto que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já disse que a separação da turma configura constrangimento e intolerância religiosa anulando a Ordem de Serviço 008/2017 – SME do Município de Barra Mansa/RJ, cito:

APELAÇÃO. Educação. Determinação pelo Município de Barra Mansa de que seus alunos entoem a oração do pai nosso antes das aulas, determinando a separação em outra fila daqueles que não professarem religião que aceite a mencionada oração. Separação que coloca os alunos em constrangimento, sendo verdadeiro preconceito, configurando intolerância religiosa. Tutela antecipada que foi confirmada na sentença, determinando a anulação dos atos administrativos. Recurso autoral para majoração dos honorários advocatícios. Valor fixado que é irrisório. Aumento para R$500,00 que se mostra razoável. Provimento do recurso. (TJ-RJ, processo n. 0013080-15.2017.8.19.0007 - grifei).

Devem ser acrescentadas ao presente artigo as brilhantes lições do Pós-Doutor em Educação Simão de Miranda, que também é professor e escritor, o autor corretamente nos leciona o seguinte:

O fato de sermos um país majoritariamente cristão, não nos autoriza a desrespeitarmos estudantes de famílias não-cristas, como as praticantes de credos de matrizes africanas, ateus ou agnósticos. Insistir nesta prática é uma via de acesso para o racismo religioso. Esta prática intimidatória, abusiva, ilegal e desrespeitosa, alimenta as exclusões tão duramente combatidas pela sociedade. Nenhum agente educativo pode impor sua fé pessoal, isso é vilipendiar a liberdade de credo dos demais.

Então, minha gente, embora a escola tenha herdado lá dos seus primórdios os princípios da fé cristã na chegada dos jesuítas e nos planos de estudos da Cia de Jesus, elaborados por santo Inácio de Loyola e, ainda mais, tendo Cabral mandado rezar logo uma missa assim que pisou nas nossas terras, passa da hora e faz tempo que passa da hora de honrarmos nossos compromissos por uma sociedade justa e verdadeiramente inclusiva.

Concordo plenamente com a professora Roseli Fischman, autora do livro Estado Laico, Educação, Tolerância e Cidadania (São Paulo: Factash, 2012), “A escola é o primeiro contato da criança com o Estado e precisa garantir acolhimento e respeito, sem impor conteúdo de fé, seja ele qual for”.

A laicidade do estado e, portanto, da escola é condição inegociável para a cidadania. A escola pública conta conosco, profissionais da educação. Sigamos esperançando. (DE MIRANDA, 2023).

As lições do professor são importantes, pois a escola pública pertence ao Estado, por óbvio, considerando o teor do artigo 19, I da Constituição, não há dúvidas de que “No nosso país existe um regime de absoluta separação” (PINHO, 2000, p. 83), portanto recomenda-se à direção da escola que não imponha o Pai Nosso aos alunos e funcionários.

A invocada separação entre Estado e Religião fica ainda mais visível com o julgamento recente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo envolvendo a leitura da bíblia na Câmara Municipal de Araraquara/SP, na ocasião, foi declarada inconstitucional a Resolução nº 399/2012 do Município de Araraquara com fulcro na neutralidade estatal imposta pelo artigo 19, inciso I da Carta Maior, cito o Acórdão:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Artigo nº 148 da Resolução nº 399/2012 do Município de Araraquara (Regimento Interno da Câmara Municipal) que trata da manutenção de exemplar da Bíblia no plenário da casa durante as sessões ordinárias e extraordinárias, assim como prevê a leitura de versículos, pelos vereadores, no início de cada sessão – Norma impugnada que viola o dever de neutralidade estatal imposto pelo artigo 19, inciso I, da Constituição Federal – Poder Público que deve se manter neutro em relação às diferentes denominações e crenças religiosas – Controle abstrato de normas municipais realizado com base na norma remissiva do artigo 144 da Constituição Estadual, posto envolver normas centrais da Constituição Federal e que incidem sobre a ordem local por força do princípio da simetria – Ademais, violação aos princípios constitucionais da isonomia e do interesse público aplicados à Administração Pública – Precedentes – AÇÃO PROCEDENTE. (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2013406-54.2023.8.26.0000; DJE 09/11/2023).

Outro cuidado que a direção deve ter é com a obrigatoriedade dos funcionários, servidores e professores a orarem o Pai Nosso, visto que há decisões no Poder Judiciário condenado empregadores a indenizar os seus empregados compelidos ao ato de rezar o Pai Nosso, o valor reparatório pode chegar a R$ 10.000,00 (dez mil reais), como noticiado pelo TRT-MG em seu site, mencionado o processo n. 0010821-11.2020.5.03.0016, julgado pelo juízo da 16ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.

Em razão dos fundamentos ora invocados, temos que a direção das escolas públicas deve ter uma cautela quanto à imposição do Pai Nosso aos alunos e servidores, pois eventual ato pode trazer consequências negativas no âmbito jurídico.

CONCLUSÃO

Portanto, em que pese o Brasil ter uma parcela considerável da sociedade aderente ao catolicismo, tal qual verificado na citação do texto do professor Simão de Miranda, não negamos que há de fato um risco jurídico na conduta do gestor ou diretor que optar por impor aos alunos de uma escola pública a oração do Pai Nosso.

Igualmente perigoso e não indicado é segregar ou dividir a turma, podendo gerar condenações e anulações dos atos administrativos, como ocorrido com a Ordem de Serviço 008/2017 do Município de Barra Mansa/RJ, na ocasião o Tribunal entendeu que a separação “coloca os alunos em constrangimento, sendo verdadeiro preconceito, configurando intolerância religiosa” (TJ-RJ, processo n. 0013080-15.2017.8.19.0007).

Por fim, não menos importante, deve se atentar a direção em não obrigar os seus funcionários a orar, porque na Justiça temos condenações de empregadores em danos morais por compelirem os seus colaboradores a rezar o Pai Nosso.

O ideal é evitar imposições, pois a obrigação pode gerar problemas para a direção de uma escola pública, que deve respeitar o direito à liberdade religiosa de cada pessoa, jamais impondo ou promovendo uma religião específica em detrimento das demais.

Assim sendo, conclui o presente artigo que a imposição do Pai Nosso em qualquer escola que conte com a gerência do Estado (escola pública), fere o artigo 19, I da Constituição Federal, tendo o Ministério Público legitimidade para o manuseio da medida judicial cabível a fim de tornar os efeitos do ato que impõe o Pai Nosso nulos por serem inconstitucionais e desrespeitarem o direito à liberdade de religião ou crença.

De mais a mais há razoável dúvida na seara acadêmica a respeito do caráter universal da oração Pai Nosso, pois de fato há religiões que não aderiram a tal prece, como mencionado pelo professor Allan Santos, que foi entrevistado no artigo de autoria de Carlos Alberto Ivanir dos Santos e Lavini Beatriz Vieira de Castro.

Por isso encerro aconselhando aos diretores que evitem impor uma religião no ambiente escolar, seja por meio de orações, símbolos ou livros religiosos, devendo respeitar cada crença individual dos seus alunos e servidores. Também deve ser evitado qualquer tipo de segregação ou preconceito com outra religião ou a sua falta.

REFERÊNCIAS

BRASIL. TJRJ – Apelação n. 0013080-15.2017.8.19.0007, Relator: Ferdinaldo do Nascimento, Data de Julgamento: 25/02/2021, T19 - DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL.

BRASIL. TJSP - Direta de Inconstitucionalidade 2013406-54.2023.8.26.0000; Relator: Luis Fernando Nishi; Data do Julgamento: 01/11/2023; Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Data de Registro: 09/11/2023.

DE MIRANDA, SIMÃO. O Pai-Nosso na Escola Pública: Pode ou não Pode?. SINPRO-DF, 15 jun. 2023. Disponível em: https://www.sinprodf.org.br/o-pai-nosso-na-escola-publica-pode-ou-nao-pode/. Acesso em: 7 mar. 2024.

DOS SANTOS, Carlos Alberto Ivanir, DE CASTRO, Lavini Beatriz Vieira. Em nome do pai, do filho e de quem mais? Abordagem sobre a universalidade a oração do Pai Nosso. Revista de Estudos sobre o Jesus Histórico e sua Recepção RJHR, XIII, 2020.

GOMES, Fábio Alves; DE AGUIAR, Wanda Maria Junqueira, FERNANDES, Elaine Pinheiro. Direitos Humanos, Laicidade E Educação Escolar: “eu sempre rezei o pai nosso na escola”. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 22, n. especial, p.149-162, out. 2021.

PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. 17º V. São Paulo: Saraiva, 2000.


Publicado por: João Vitor Rossi

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