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E essa tal laicidade?

Laicidade diz respeito àquilo que é comum aos povos, sem singularidades ou preferências, isto é, quando não há religiões, ideologias ou culturas que sejam defendidas, em detrimento das demais, pelo Estado.

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O termo laico tem a mesma origem que a palavra leigo [1]. Isso é bastante elucidativo quando se entende que o termo laico é uma expressão que se contrapõe aquilo que é considerado sagrado ou separado. A laicidade diz respeito àquilo que é comum aos povos, sem singularidades ou preferências, isto é, quando não há religiões, ideologias ou culturas que sejam defendidas, em detrimento das demais, pelo Estado.

O Estado laico é a consciência pública de respeito e oportunidade a todas as correntes de pensamento, sem distinção das demais. Esta postura requer do Estado a não-oficialização de determinadas filosofias ou religiões, para que não haja latente prejuízo às outras que sofram pela ausência de reconhecimento do Estado e de igualdade de condições dos membros das diferentes tribos. A laicidade é uma das principais características do Estado Democrático de Direito, permitindo que as diferentes culturas possam conviver pacificamente, sem a interferência ou coerção das de maior projeção ou mesmo do Estado.

Essa garantia constitucional [artigo 19, I e III, da Constituição Brasileira] apresenta dois lados que se complementam: aplicabilidade positiva e aplicabilidade negativa [2]. Fala-se em uma eficácia positiva, pois o Estado, para que seja concretamente laico, deve demonstrar respeito a todas etnias, culturas e religiões, de forma a garantir a igualdade material entre os povos [3]. Essa noção da laicidade indica que o Estado, por vezes, deverá tomar medidas que protejam religiões específicas, tidas como minoritárias, para que estas se encontrem em uma situação de isonomia perante outras de maior expressão social. Longe de prejudicar as religiões majoritárias, essas medidas visam permitir que as minorias religiosas não sejam prejudicadas por não pertencer à “normalidade” social. Isso se torna mais evidente quando a Administração toma medidas rotineiras ou de organização, que aparentam ser imparciais, mas que sofrem a influência direta das religiões dominantes do país. Exemplo disso é a escolha constante de reposição de aulas nos sábados e não nos domingos [dia sagrado para maioria dos religiosos brasileiros] quando há paralisação dos serviços das instituições de ensino, sem, por vezes, estabelecer condições alternativas para que estudantes pertencentes a minorias religiosas não sejam prejudicados por situações alheias às suas vontades, configurando-se um caso fortuito ou de força maior. Doutra banda, a eficácia negativa da laicidade é tão essencial quando a positiva, pois essa noção do laico impõe que o Estado se abstenha de práticas que fortaleçam grupos religiosos e que, como consequência, tragam prejuízos às demais religiões, independentemente se o grupo auxiliado seja de religiões minoritárias ou majoritárias. A questão central nessa vertente é que o Estado não deve participar ou contribuir para o desenvolvimento de qualquer religião ou cultura, mas se abster de tais atos. O dever do Estado é garantir o bem-estar social de forma a permitir que a população viva pacificamente, contribuindo para a igualdade material dos povos.

A aplicabilidade positiva e negativa da laicidade, aparentemente, são antagônicas, o que não é verdade. Ambas demonstram que a imparcialidade do Estado é um dever, mas que isso não significa a omissão, pois, em determinadas situações, o próprio ato de se omitir já é uma escolha. Por ser uma questão delicada, o Estado tem a obrigação de ser mais diligente e problematizador quando se trata de laicidade, não se eximindo de seu dever.

Baseando-se no estudo de Winfried Brugger [4], o Brasil, dentro desta perspectiva, enquanto Estado, manteve relações diversas com a Igreja. Seguindo a classificação de Brugger, no Brasil, houve, nos primórdios coloniais, uma relação de identificação entre Estado e Igreja, sendo o próprio “descobrimento” do Brasil e sua formação como Colônia de Portugal ocorridos devido à interferência e à influência da Igreja. Nos tempos atuais, há um reconhecimento de ambas instituições, podendo-se apontar uma cooperação e uma destacada influência mútua, por ser o Brasil fortemente religioso. E por ter essa religiosidade acentuada, a importância social desse ponto não pode ser ignorada e injustificadamente secularizada ao se estabelecer as bases do Estado perante a população, em todos os campos.

Nesse contexto, é importante esclarecer que a Constituição é fruto da sociedade, como também o Direito, e, portanto, não se deve excluir a própria sociedade ao se estabelecer qual será a relevância dada às religiões no Estado Democrático de Direito. A harmonização da laicidade do Estado, exige que esse seja organizado conforme a sociedade, o tempo, a época e a História, para se aproximar gradativamente do ideal de igualdade.

A laicidade não tem a ver com exclusão, mas com cooperação e equilíbrio. O Estado tem uma face de instituição, que deve ser velada e protegida, mas também é movido por pessoas, interna e externamente. Tais pessoas não podem ser neutralizadas, tendo em vista que são seres culturais.

A vida, do ponto de vista sociológico, contém um sentido cultural e histórico, envolvendo diversas ramificações. De tais ramificações, a sociedade se estrutura sobre um suporte plural e, ao mesmo tempo, harmônico, conduzindo as populações, de diferentes épocas, em um sentido correspondente.

Bauman [5] explica que a maneira como agimos e pensamos são conformadas pela expectativa do grupo a que pertencemos, podendo se manifestar de várias formas. Tais formas são a maneira que os grupos buscam identificar-se, refletidas nos fins que alcançamos, nos meios que utilizamos e no modo como distinguimos quem pode e quem não pode colaborar nesse processo.

A cultura, nesse sentido, é o resultado desse processo de identificação da sociedade e esta, por sua vez, é o espaço de realização do indivíduo enquanto ser cultural. Essa relação de um para com o outro leva a concluir que a variedade de manifestações de cultura são formas variadas de identificação do ser humano. Entre essas formas, temos a religião, que alça importante posição no meio social.

Cumpre observar que o estudo e a proteção da cultura [6] evoluíram e que, atualmente, a sua conceituação não se restringe à instrução e à educação, mas importa na consideração das diferentes manifestações de ser e de viver de cada indivíduo e dos diferentes grupos sociais existentes. Assim, as minorias, entendidas como não apenas os numericamente menores, mas os com pouca expressividade no meio político e social, devem ser estimadas na análise das questões decisivas da vida social.

A religião, no meio social, tem um papel fundante, sobretudo no que diz respeito a formação da personalidade e da função a desempenhar no meio coletivo, estas que são os principais motivos da existência da sociedade. E essa influência da religião pode ser percebida em diferentes setores, tais como no compromisso do indivíduo com seu labor, no seio familiar, nas hierarquias simbólicas e institucionais e em sua cosmovisão, que repercute na realidade e no conhecimento.

A religião está tão intrínseca à sociedade tanto quanto o próprio sentido de ser humano. E, de fato, só houve uma ruptura mais drástica com a chegada do Iluminismo, tendo como apogeu o século XIX, época em que a sociedade começa a ser analisada sob um ponto de vista mais técnico e menos valorativo. No entanto, ainda assim, para se compreender a sociedade, sempre houve e haverá a necessidade de reconhecer e entender o papel da religião na relação do ser humano consigo mesmo e com os outros.

Fonte:

[1] ORIGEM DA PALAVRA: Site de Etimologia. Origem da Palavra Religião. Publicado em: 9 mar. 2011. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2016.

[2] Cf. LELLIS, Lélio Maximino; HEES, Carlos Alexandre. (Orgs.). A liberdade religiosa na Constituição Federal de 1988: Natureza jurídica e eficácia da liberdade religiosa. In: _________________. (Orgs.). Manual de Liberdade Religiosa. 1. Ed. Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS – Imprensa Universitária Adventista; Ideal Editora, 2013. p. 73/74. Disponível em: Acesso em: 26 ago. 2016.

[3] Cf. MAIA, Luciano Mariz; ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. A proteção das Minorias no Direito Brasileiro. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL: AS MINORIAS E O DIREITO, 2001, Brasília. Série Cadernos do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), v. 24. Brasília/DF: Conselho Federal de Justiça (CJF); Centro de Estudos Judiciários (CEJ); AJUFE; Fundação Pedro Jorge de Mello e Silva; The Britsh Council; 2003. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2016. p. 60-84.

[4] BRUGGER, Winfried. Da Hostilidade passando pelo Reconhecimento até a Identificação: modelos de Estado e Igreja e sua relação com a liberdade religiosa. Disponível em: Acesso em: 06 mai. 2016.

[5] BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Ação, identidade e entendimento na vida cotidiana. In: ___________. Aprendendo a pensar com a Sociologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 38-40. Tradução de Alexandre Werneck.

[6] Cf. LOPES. Ana Maria D’Ávila. Proteção constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a perspectiva do multiculturalismo. Revista de informação legislativa, v. 45, n. 177, p. 19-29, jan./mar. 2008. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2016.

 

Publicado por: LORENA FERREIRA DE ARAÚJO

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