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IDENTIDADE E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE A VERSÃO CINEMATOGRÁFICA TRADUZIDA DE O AUTO DA COMPADECIDA (2000)

Análise sobre as traduções dos marcadores culturais no filme "O Auto da Compadecida" (2000), de Guel Arraes, nas legendas em inglês do DVD.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

RESUMO

Este artigo analisa as traduções dos marcadores culturais no filme "O Auto da Compadecida" (2000), de Guel Arraes, nas legendas em inglês do DVD. O objetivo é compreender como a tradução afeta a preservação da identidade e características culturais, especialmente o tom humorístico. Utilizando técnicas de tradução direta e indireta, o trabalho explora a complexidade da tradução cinematográfica, destacando a necessidade de equilibrar humor e elementos culturais enquanto atende ao público estrangeiro. A pesquisa utiliza métodos qualitativos, incluindo a comparação direta das falas originais com as legendas traduzidas.

Palavras-chave: Tradução. Identidade. Cultura. Legenda.

INTRODUÇÃO

A prática da tradução implica em diversas etapas de execução que exigem tomadas de decisão precisas por parte do tradutor. Além disso, requer um profundo entendimento não apenas da gramática e da cultura do idioma de origem, mas também do idioma de destino, a fim de alcançar uma versão que, como afirmado por Plaza no contexto da tradução, envolve "repensar a configuração das escolhas do texto original, transformando-a em uma configuração seletiva e concisa" (PLAZA, 2003, p.40). A legendagem consiste em uma técnica de tradução que, apesar de ter existido desde os estágios iniciais do cinema, adquiriu maior alcance a partir dos anos 80 com a difusão do videocassete, que possibilita aos clientes assistirem a filmes em sua residência no horário de sua escolha, e posteriormente com a chegada da televisão paga (ou televisão a cabo) nos anos 90 as legendas ganharam cada vez mais espaço nos contextos das obras audiovisuais (NUNES, 2012, p. 20-21).

Como discutido em meu trabalho anterior(COSTA, 2023)A abordagem de Guel Arraes à obra de Ariano Suassuna despertou a atenção devido à construção dessa pesquisa devido à meticulosa consideração dada à variante linguística nordestina e ao impacto gerado pela obra. A Literatura Brasileira é rica em obras que refletem a cultura e a identidade nacional do povo brasileiro. Dentre essas, destaca-se O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, que é uma das mais importantes referências do teatro popular nordestino e um símbolo da cultura do Brasil. A referida obra já foi adaptada para diversos meios como o cinema e a televisão, obtendo grande aceitação do público e da crítica. Neste trabalho analisar-se-a, segundo a óptica da pesquisa analítica e bibliográfica que tem como fundamentação Lawrence Venuti (2008), Gerardo Vásquez-Ayora (1977), Vinay e Dalberner ([2000] 2004, p. 129); utilizando uma metodologia que engloba as áreas da crítica literária, das técnicas de tradução, da literatura comparada e ressaltando a cultura e a identidade, de modo que essas conexões entre os temas foram feitas por Costa (2023) e conduziram também a pesquisa desde artigo

A presente investigação justifica-se pela necessidade de observar se houve preservação da identidade linguística nordestina no processo de legendagem na obra O Auto da Compadecida (2000).  A legendagem de trabalhos cinematográficos é um tema bastante relevante e frequentemente discutido atualmente, que tem despertado o interesse de diversos estudiosos e pesquisadores. Além disso, a obra O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, é um marco da cultura nordestina e tem grande importância na literatura brasileira, pois é um clássico bastante conhecido. Sua adaptação para o cinema rendeu grande sucesso e premiações.

DESENVOLVIMENTO

O tópico que se discorre neste item concentra-se na investigação da transcrição das falas dos personagens no filme "O Auto da Compadecida" e em como essas falas são traduzidas para a língua inglesa, no âmbito das legendas. Para tanto, serão exploradas as definições das técnicas de Vinay e Dalberner ([2000] 2004, p. 129), a distinção entre tradução e versão, e as estratégias de Gerardo Vásquez-Ayora (1977), a fim de compreender em que medida o humor e as características regionais são preservados nesse processo de tradução, e como essas escolhas podem influenciar a experiência do público internacional.

Para abordar essa questão, é essencial considerar as técnicas de tradução utilizadas, particularmente aquelas propostas por Vinay e Dalberner ([2000] 2004, p. 129). O foco dessas técnicas é a diferenciação entre a tradução direta e a tradução oblíqua. A tradução direta busca manter a fidelidade ao texto original, preservando as características e nuances das falas dos personagens, incluindo o tom humorístico e regional. Por outro lado, a tradução oblíqua permite uma maior adaptação à língua de destino, mas pode resultar na perda de elementos culturais e de humor.

No âmbito da tradução direta, são identificados três métodos. Inicialmente, a técnica de empréstimo (borrowing) é empregada para atender uma carência, frequentemente de natureza metalinguística, por meio da adoção de um termo lexical originário da língua de origem. O segundo procedimento da tradução direta consiste na técnica de decalque, que de acordo com a abordagem de Vinay e Darbelnet ([2000] 2004, p. 129), caracteriza-se por ser um tipo específico de empréstimo linguístico, no qual a língua receptora replica a forma de expressão da língua de origem, efetuando uma tradução literal de cada um de seus componentes. O resultado pode se manifestar como um decalque lexical, que mantém a estrutura sintática da língua receptora ao mesmo tempo em que incorpora um novo modo de expressão, ou como um decalque estrutural, no qual é introduzida uma nova construção sintática na língua receptora.

O terceiro método de tradução direta, conforme indicado por Vinay e Darbelnet ([2000] 2004, p. 130), é a tradução literal (literal translation). Nesse processo, efetua-se a tradução palavra a palavra, isto é, "consiste na transposição direta de um texto na LF para um texto que seja tanto gramatical quanto idiomático na LA, restringindo-se o papel do tradutor a garantir a conformidade com os traços linguísticos da LA"3 (p. 130). Segundo os autores, essa abordagem de tradução é mais predominante entre idiomas pertencentes à mesma família linguística, e ainda mais comum em situações envolvendo nações que compartilham culturas análogas

É fundamental destacar a distinção entre tradução e versão nesse contexto. A tradução visa reproduzir fielmente o conteúdo e a forma das falas, enquanto a versão pode permitir uma interpretação mais livre e criativa. No entanto, ao analisar a transcrição das falas em um filme, o foco recai principalmente na tradução, uma vez que o objetivo é preservar o conteúdo e a intenção originais dos personagens.

Após uma compreensão sólida dessas definições e conceitos, pode-se entrar na fase de análise dos resultados da transcrição das falas dos personagens no filme "O Auto da Compadecida" e sua tradução para a língua inglesa nas legendas. Essa análise apresentada no capítulo quatro permitiu avaliar em que medida o humor e as características regionais foram mantidos ou adaptados na tradução e como isso pode impactar a experiência do público internacional.

A prática do versionamento desempenha um papel crucial na tornar o conteúdo audiovisual, como o filme "O Auto da Compadecida" (1955), acessível e envolvente para audiências globais. Ao preservar a cultura nordestina na legendagem para o inglês, mesmo contra a preferência de Ariano Suassuna pela língua portuguesa, contribuímos para a apreciação internacional da riqueza cultural do nordeste brasileiro. A tradução não apenas transcende barreiras linguísticas, mas também desafia estereótipos e promove o entendimento da complexidade e valor da cultura nordestina em escala global. A análise da legendagem revela-se vital para garantir a autenticidade cultural e combater preconceitos, permitindo que essa expressão única seja compreendida e apreciada internacionalmente.

Diante do exposto, destaca-se a importância da análise da legendagem da obra "O Auto da Compadecida" (2000) para o inglês, não apenas como meio de difundir a cultura nordestina internacionalmente, mas também para valorizar a obra de Ariano Suassuna e seus elementos culturais.Como discutido anteriormente (Costa, 2023), explorei a relevância da teoria de Venuti (1995) para o versionamento sensível à cultura, o versionamento requer cuidado, especialmente na preservação dos aspectos culturais da obra original. A tradução não se limita à transposição de palavras, exigindo sensibilidade para transmitir significados e valores de maneira adequada ao público-alvo, considerando tanto a língua quanto a cultura.

ANÁLISES

Os resultados do meu estudo indicam que a legendagem para inglês pode apresentar desafios significativos, especialmente devido às características culturais específicas do Nordeste

CENA 02 - Quando o Major Antonio Moraes vai até a cidade de Taperoá, ele encontra-se com o padeiro - Eurico. Na ocasião os dois tem um pequeno diálogo sobre a ida repentina do Major à cidade. O trecho a seguir, apresenta a legenda em inglês contida no filme deste encontro dos personagens, e logo abaixo a sua respectiva tradução literal.

**legenda do filme

  • Eurico, you sissy... still cheating your customers? (ANTONIO MORAES)

  • Major Antonio Moraes! I haven't seen you in town in so long! (EURICO)

  • This town stinks like cat shit! I only came because i had to. (ANTONIO MORAES)

**tradução literal

  • Eurico, seu maricas... ainda engana seus clientes? (ANTONIO MORAES)

  • Major Antonio Moraes! Faz muito tempo que não vejo você na cidade! (EURICO)

  • Esta cidade fede a merda de gato! Só vim porque tive que vir. (ANTONIO MORAES)

Observe que na fala de Antonio Moraes foi utilizado as reticências, indicando que algo foi dito naquele ponto da fala, porém não foi traduzido. Na fala original do filme, ao encontrar o padeiro, Antonio Moraes, fala: Eurico, engole cobra, cabra frouxo, anda enganando muito a sua freguesia?

A expressão nordestina - engole cobra, cabra frouxo - não foi traduzida e nem substituída, o legendista optou apenas por colocar reticências, uma vez que este trecho da fala não iria implicar em alteração de sentido para com o diálogo construído, porém é válido destacar que sua ausência culmina com a perda acentuada do humor contido na fala original. Observa-se que, em "O Auto da Compadecida", os aspectos regionais da oralidade dos personagens poderiam ser refletidos nas legendas, não como uma marcação pejorativa de "defeito", mas como uma forma de caracterizar esses personagens.

CENA 03 - O cangaceiro vai até a cidade de Taperoá, disfarçado de mendigo, para conhecer a cidade e analisar se há uma grande quantidade de equipes policiais, pois ele juntamente com o seu bando irão invadir e saquear a cidade. Ele cruza com vários personagens, um deles é Major Antonio Moraes, com quem tem o seguinte diálogo:

**legenda do filme

  • Can you spare some change? (CANGACEIRO - disfarçado de mendigo)

  • Get yourself a job? (ANTONIO MORAES)

  • I can't work, sir. I only have one eye.  (CANGACEIRO - disfarçado de mendigo)

  • Poke other one out and sing at the fair! (ANTONIO MORAES)

**tradução literal

  • Você pode poupar algum troco? (CANGACEIRO - disfarçado de mendigo)

  • Arranjar um emprego? (ANTONIO MORAES)

  • Não posso trabalhar, senhor. Eu só tenho um olho. (CANGACEIRO - disfarçado de mendigo)

  • Tire outro e cante na feira! (ANTONIO MORAES)

Na fala original da obra de Ariano Suassuna adaptada ao cinema, o cangaceiro ao pedir a esmola a Antonio Moraes, profere as seguintes palavras: Uma esmolinha por caridade, pode-se observar que a traduz não corrobora um pesar e tom de pobreza e necessidade expressados no áudio do filme. Ao responder ao cangaceiro o Major Antonio Moraes, diz: Vá arrumar serviço pra fazer, diferentemente da tradução literal que refere-se a emprego apresentando uma fala mais formal, enquanto que no filme, as falas são realizadas no formato coloquial repletas de regionalismos. Outro ponto interessante neste trecho é a utilização do verbo “arrumar” no sentido de procurar, substituição bastante utilizada pelos nordestinos na linguagem coloquial.

CENA 05 - Rosinha chega em Taperoá, no dia da quermesse e encontra três personagens importantes para o enredo da obra, na praça central que fica próxima a igreja e, todos demonstram encantamento pela beleza da jovem menina que agora mora na capital com sua mãe e foi apenas passar alguns dias na fazenda. Ao vê-la o padeiro Eurico, exclama: My, how you've grown, Rosinha! You're so pretty, so well-built…

A tradução literal da fala do padeiro diverge da fala original do filme. O trecho traduzido consiste em: Nossa, como você cresceu, Rosinha! Você é tão linda, tão bem constituída[…], novamente fazendo uso das reticências. Na fala retratada no filme o ator também faz uso das reticências na entonação da sua fala, porém a mesma é dita de forma diferente, trazendo uma expressão bastante singular das regiões interioranas do nordeste.

Na obra retratada no cinema, o ator fala: “Rosinha como você cresceu, embunitou, ficou mais apanhada, e…” (a fala é interrompida com o olhar repreensivo da sua esposa). Observa-se na construção desta oração que a palavra embunitou, assim como a expressão ficou mais apanhada, tratam-se da reformulação da palavra embelezou-se e ficou mais bonita, respectivamente, expressões ainda utilizadas no interior do nordeste.

CONCLUSÃO

Conforme abordado em meu trabalho de conclusão de curso(COSTA, 2023), investigamos a preservação da cultura nordestina através da análise da versão cinematográfica traduzida de "O Auto da Compadecida" (2000) de Ariano Suassuna. Foi destacamos a importância do versionamento e legendagem para a difusão cultural internacional, ressaltando os desafios culturais na legendagem para inglês, exigindo sensibilidade dos tradutores. Foi apresentado a relevância da preservação da cultura nordestina na legendagem para manter a autenticidade e valorizar a obra globalmente. A terceira, de moda a sublinhar a necessidade de considerar aspectos culturais, linguísticos e literários no processo de versionamento. Essas conclusões enfatizam o papel crucial do versionamento cinematográfico na promoção e preservação da cultura nordestina internacionalmente, apontando para a importância da formação intercultural para tradutores. Este estudo abre caminho para pesquisas futuras sobre versionamento cinematográfico e preservação cultural, contribuindo para a compreensão das complexidades envolvidas na adaptação de obras com identidades culturais distintas. O objetivo final é celebrar e preservar o legado cultural nordestino globalmente.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUTO da Compadecida, O. Direção: Guel Arraes. Produções Globo Filmes. São Paulo – SP, 2000.

COSTA, Maria Clara Barroso. IDENTIDADE E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE A VERSÃO CINEMATOGRÁFICA TRADUZIDA DE O AUTO DA COMPADECIDA (2000). 2023

NUNES, Elaine Alves Trindade. Técnicas de tradução para legendagem. s.n.t. 5 p.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003

VENUTI, Lawrence. Translation Changes Everything: Theory and Practice. Nova York: Routledge, 2013.

VENUTI, Lawrence. The translator´s invisibility. 2nd ed. New York: Routledge, 2008.

VINAY, J. P. DARBELNET, J. (2000) A methodology for translation. Traduzido do francês por Juan C. Sager e M. J. Hamel. In: VENUTI, L. (Ed.). The translation studies reader Londres e Nova Iorque: Routledge, 2004.

POR MARIA CLARA BARROSO COSTA     


Publicado por: Maria Clara Barroso

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