Diferente olhares sobre a deficiência: entre o biológico e o social
Análise sobre os conteúdos presentes nos documentários “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil” e “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”, a partir do texto “Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social”, escrito em 2013, pelo então doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra, Tiago Henrique França.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
“De perto ninguém é normal” (Caetano Veloso).
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise sobre os conteúdos presentes nos documentários “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil” e “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”, a partir do texto “Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social”, escrito em 2013, pelo então doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra, Tiago Henrique França.
Produzido pela Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, no ano de 2010, “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, como o título indica, retrata a situação das pessoas com deficiência em nosso país, desde o Período Imperial (mais precisamente durante o Segundo Reinado) aos dias atuais.
Até meados do século XX, a questão da pessoa com deficiência no Brasil estava a cargo daquilo que Foucault (2003) chama de “instituições normatizadoras”. Assim, estes indivíduos eram vistos apenas como “coitados”, alguém com um tipo de “doença” que deveria ser “tratado” por profissionais da saúde ou como público para instituições para pessoas com “necessidades educacionais especiais”.
Somente a partir do final dos anos 1970 surgem os movimentos organizados de pessoas com deficiência no Brasil. A partir de então, cadeirantes, cegos, surdos e autistas (entre outros) passaram, paulatinamente, a ter “voz própria”; ou seja, puderam divulgar suas reivindicações sem depender de terceiros. Outras importantes vitórias das pessoas com deficiência ocorridas nas últimas décadas, citadas no documentário, foram os eventos nacionais sobre deficiência (fazendo com que indivíduos até então dispersas pelo país pudessem se unir por uma causa em comum), a inclusão da temática “pessoa com deficiência” nas pautas da Organização das Nações Unidas (ONU) e a presença dos direitos da pessoa com deficiência na Constituição Brasileira de 1988.
No entanto, mesmo com todos esses avanços elencados no parágrafo anterior, muito ainda há de ser feito pelas pessoas com deficiência, não somente no Brasil, mas em todos o planeta.
Deficiência não é algo apenas pessoal e absoluto, mas também (e principalmente) social e relativo. O comprometimento de um cadeirante diminui consideravelmente se ele está num ambiente com rampas e calçadas adaptadas, por exemplo, entre outros componentes de acessibilidade. O surdo será “deficiente em demasia” se não tiver como contar com um intérprete de Libras. Uma pessoa cega terá outro tipo de contato com o mundo após a oportunidade de ler livros em braile.
Já a produção estadunidense “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” (com direção de James Lebrecht e Nicole Newnham) – lançada em 2020 e indicada ao Oscar de melhor documentário (longa-metragem) no ano seguinte – aborda a história de um acampamento de verão para adolescentes portadores de diferentes tipos de deficiência, que existiu entre 1951 a 1977, considerado como embrião da luta pelos direitos da pessoa com deficiência nos Estados Unidos.
Muito se fala sobre as revoluções iniciadas nos anos 60 e 70. Lutou-se pelos direitos civis dos negros, das mulheres e dos homossexuais [...] Mas ninguém tinha ainda contado que houve uma revolução liderada e apoiada por jovens portadores de deficiência por seus direitos básicos. Naquela época, eles eram privados de executar as mais simples tarefas do dia a dia com segurança e dignidade – escolas não aceitavam crianças deficientes, prédios não tinham rampas, calçadas não eram adaptadas, empregos não eram oferecidos.O documentário mostra a história de deficientes que finalmente podiam conviver com pessoas iguais a eles, cantar e fumar, ouvir a música que todo jovem daquele tempo ouvia, sem precisar lembrar o tempo todo que eram diferentes. Havia um clima de pertencimento. Finalmente conseguiam esquecer o sentimento de frustração por nunca conseguir “reparar” o defeito que os colocava no lugar de párias da sociedade. Cada um com seu tipo de limitação, ali sentiam-se livres (VIDIGAL, 2021).
Tal como em “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, também pudemos perceber em “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” como o ambiente é de suma importância para o bem-estar, desenvolvimento e autoestima da pessoa com deficiência. Locais pautados por valores como acessibilidade, aceitabilidade, alteridade e respeito, com certeza, serão positivos para autistas, cadeirantes, surdos e cegos. Em contrapartida, espaços onde pessoas com algum tipo de deficiência são estigmatizadas, rejeitadas, vistas como “exóticas”, “doentes”, ou mesmo tratadas com “coitadismo”, consequentemente, serão bastante nocivos.
Por outro lado, conforme ressaltado no início deste texto, consideramos que ambos os documentários podem ser melhor compreendidos a partir da leitura do texto de França (2013). Tanto em “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil” quanto em “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”, constatamos os antagonismos entre duas visões sobre a deficiência. A primeira visão – presente no chamado “Modelo Médico (ou Biomédico) da Deficiência” – interpreta a deficiência como um fenômeno estritamente biológico, a despeito de toda a complexidade que envolve essa questão. A segunda concepção - apresentada no “Modelo Social da Deficiência”, no “Modelo Social da Lesão” e na “abordagem culturalista'' - entende a deficiência também como construção social.
Os jovens do acampamento “Crip Camp”, quando estavam em suas casas, eram vistos e considerados como “diferentes” e “fora do normal”. Porém, quando se reuniam no acampamento eram apenas jovens, longe de suas famílias, vivendo aventuras e, muitas vezes, descobrindo seu próprio corpo, sempre rodeados de amigos (DOUGLAS, 2020).
Desse modo, em seus convívios familiares e comunitários, os comprometimentos físicos e mentais desses jovens eram percebidos de acordo com o “Modelo Médico (ou Biomédico) da Deficiência”, em que a deficiência é vista como “consequência lógica e natural do corpo com lesão, adquirida inicialmente por meio de uma doença, sendo uma como consequência desta” (FRANÇA, 2013, p. 60).
A partir dessa percepção, uma vez sendo identificada como orgânica, para se sanar uma determinada deficiência, dever-se-ia fazer uma ou mais intervenções sobre o corpo, para assim promover seu melhor funcionamento (quando possível) e reduzir as desvantagens sociais a serem vividas.
Este tipo de intervenção era bastante utilizada no tratamento de pessoas com deficiência no Brasil durante grande parte do século XX, conforme pudemos assistir em “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”.
Aliás, o documentário faz contundentes críticas a esse modelo, alinhando-se ao que França (2013) apresenta como “Modelo Social da Deficiência” que compreende a deficiência como construção social:
Advindo do movimento social das pessoas com deficiência na Inglaterra, essa concepção de deficiência tem por objetivo fomentar a emancipação das pessoas com deficiência para que percebam criticamente qual o lugar que ocupam na sociedade. [...] O Modelo Social origina-se da necessidade de crítica ao entendimento majoritário sobre a deficiência, o Modelo Médico, que se entende como universal e neutro, sendo assim também percebido socialmente devido à sua proximidade com o senso (FRANÇA, 2013, p. 60).
Após o contato com as três obras aqui apresentadas, acreditamos que considerar a deficiência como algo biológico é condição necessária, porém não suficiente para se entender de maneira satisfatória toda a complexidade que envolve essa questão.
Lembrando o “Modelo Social da Lesão”, decerto, algumas restrições do corpo desencadeiam diretamente restrições sociais, como a capacidade de comunicar visualmente (as pessoas cegas, por exemplo). Todavia, mesmo nesses casos, é plausível afirmar que há espaço para restrições advindas das relações sociais, haja vista que “a sociedade constrói suas próprias representações da lesão, cujo significado transcende o âmbito da biologia, como a difundida ideia de tragédia pessoal” (FRANÇA, 2013, p. 64).
Portanto, conforme denunciado pela “abordagem culturalista”, para além de suas características físicas ou mentais, as pessoas com deficiência são alvo de preconceito, sobretudo, por não se encaixarem nos padrões iluministas de “homem ideal” e por não gerarem lucros suficientes para o sistema econômico capitalista.
Referências bibliográficas
CRIP CAMP: REVOLUÇÃO PELA INCLUSÃO. Direção: James Lebrecht e Nicole Newnham. Estados Unidos, 2020.
DOUGLAS, Carla. Documentário Crip Camp - Revolução pela Inclusão. O Carlotas, Referências, 29 de abril de 2020. Disponível em: . Acesso em: 17 dez. 2023.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
FRANÇA, Tiago Henrique. Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social. Lutas Sociais, São Paulo, vol.17, n.31, p.59-73, jul./dez. 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2023.
História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Brasil, 2010.
VIDIGAL, Suzana. Crip Camp: a revolução que aconteceu num campo de férias. Vida Simples, 12 de março de 2021. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2022.
Publicado por: Francisco Fernandes Ladeira
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