“A cultura é pública porque o significado o é”
Breve análise sobre o caráter público da cultura e sua relação com o significado na ótica de Geertz.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
“A cultura é pública porque o significado o é”. (Geertz, 1989)
Se fossemos fazer uma análise comparativa a partir das perspectivas de Geertz e Sahlins poderíamos falar que a cultura um fenômeno intrínseco à experiência humana e explorar as divergências desses autores, que oferecem insights valiosos sobre a complexidade cultural na análise antropológica. De um lado Geertz (1973), propõe uma compreensão da cultura como uma teia de significados. Para ele, os símbolos, rituais e práticas cotidianas são veículos através dos quais os grupos sociais comunicam valores, crenças e identidades. A interpretação simbólica está no centro de sua abordagem. Por outro lado, Sahlins, em suas contribuições críticas, questiona teorias globais do comportamento humano. Ele rejeita visões simplistas e materialistas da cultura, argumentando que ela não pode ser reduzida e defende a inventividade da tradição, nos lembrando que cada cultura é única e deve ser compreendida dentro de suas particularidades. Mas talvez essas análises falassem mais sobre os autores do que sobre cultura, suas diferentes noções e como podemos compara-las (nos podemos?). Dessa forma, optou-se (para responder essa pergunta) “contar um conto”, debruçando-se sobre esses e outros autores.
O conto é sobre como a noção de cultura permeou antropologia norte-americanas e a antropologia social britânica. A antropologia, como disciplina dedicada ao estudo das culturas humanas, muitas vezes se apresentou por diferentes abordagens e escolas de pensamento. Nesse contexto temos a antropologia norte-americana e a antropologia social britânica, cujas perspectivas divergem significativamente em relação à análise cultural, a noção de cultura.
A antropologia norte-americana, “especialmente a corrente influenciada por Franz Boas”, procurou concentra-se, durante seu curso, com a construção cultural da etnicidade e outras 'conversas culturológicas’. Essa perspectiva Boaseana também enfatizava a influência de múltiplas fontes nas tradições culturais rejeitando visões simplistas e acreditava que todas as culturas eram compostas por partes estrangeiras e elementos adaptados ao longo do tempo (hibrismo cultural). Isso quer dizer que, para os antropólogos americanos, cultura é simultaneamente um produto e um processo conforme podemos exemplificar através do relato de Linton (1937 apud Sahlins 1999, p.24) ao descrever uma manhã comum na vida de um norteamericano:
“o homem se senta após o café da manhã para fumar um charuto inventado no Brasil enquanto lê as notícias do dia em caracteres inventados pelos antigos semitas, impressos por um processo inventado na Alemanha, num material inventado na China; ao passar os olhos pelo editorial que alerta contra os possíveis resultados nocivos da adoção de ideias estrangeiras sobre nossas instituições, agradece a uma divindade hebraica, numa língua indo-europeia, por ser 100 por cento (sistema decimal inventado pelos antigos gregos) norteamericano (de Américo Vespúcio, geógrafo italiano)’.
Dizia Geertz (1973), que em antropologia, ou em antropologia social, o que os “praticantes fazem é etnografia”. Mais o fato é que, a depender da escola, a depender a perspectiva, todo panorama analítico da teoria pode mudar.
Essa valorização dos norte-americanos, da diversidade cultural e adotada de uma visão mais ampla e construtivista, em contraste, com a noção de cultura dos antropólogos britânicos, que chegaram a ser criticados por sua aparente falta de interesse pela cultura e por não examinarem seus processos de maneira aprofundada, fomentou muitos debates. Sahlins (1999) cita o antropólogo Murdock, que chegou à “desconcertante conclusão” de que os britânicos não são verdadeiramente antropólogos, mas sim sociólogos antiquados. Murdock sugere que eles não adotaram um conceito de cultura mais atualizado dizendo, “São sociólogos, disse ele, de um tipo antiquado, vintage, dos anos 1920, do tipo que ainda não foi resgatado por um conceito de cultura”. Dessa forma, a antropologia social britânica, com raízes em Durkheim e Malinowski, fez uma antropologia que priorizava questões estruturais e simbólicas. Enquanto os antropólogos americanos estavam muito preocupados em estudar a cultura, os britânicos, mal compreendidos ou não, estavam “presos” as estruturas sociais, em resumo, entre divergências acaloradas de ambos os lados, uma coisa era clara, “a antropologia cultural norte-americana é 'muito diferente do projeto de antropologia social que domina na Europa'”.
"Sem dúvida, já que a antropologia norteamericana, preocupada com a construção cultural da etnicidade e outras 'conversas culturológicas', de fato não é uma ciência social. A 'antropologia cultural dos neo-boasianos é um projeto nas humanidades.' Vinho novo em garrafa velha." (Sahlins, 1999)
Essas diferenças de noção da cultura fizeram, por exemplo, antropologia norte americana observar o “hibrismo” cultural por uma forma de “troca” entre diferentes culturas, enquanto os britânicos observavam esse “hibrismos” como algo socialmente coercitivo.
Houve muitas discussões sobre noção de cultura e também há muitos caminhos e linhas pensamentos que se pode trilhar para falar das diferentes formas de se pensar cultura como teoria. Enquanto Wagner (1981) propunha que a cultura a cultura era produção humana, criada a partir de criatividade e símbolos, Geertz e Sahlins, por exemplo, buscavam salvar a antropologia culturas do reducionismo naturalista. Geertz (1973, p.23) chega a dizer que os “ataques generalizados às teorias de significado são parte integrante do pensamento moderno.”
A Cultura, como entendida como sistema de símbolos, estruturada por significado social estabelecido, pode teorizar se uma piscadela é apenas um tique, uma comunicação cifrada ou uma caricatura da mesma. Diferentes culturas observariam a piscadela por diferentes perspectivas a partir de seu horizonte cultural.
A cultura como forma civilizacional, encontrou abrigo na “antropologia evolucionista”. Aqui as nações/povos/sociedades que detém cultura são os “superiores”, está ligada a forma civilizacional, a cultura como um estágio da civilização humana. Assim como povos ocidentalizados poderiam ver costumes e culturas de povos não ocidentalizados como não-culturas, e vice e vessa. Aqui a noção de cultura como “civilização” conta um outro conto.
Nessa linha podemos pensar nas contribuições de Said (1989) e Trouillot (1991), que discorrem sobre o encontro colonial, onde os europeus, partindo de um conceito de cultura civilizatório e evolucionista, tomaram para si o direito de dominar outros povos que, na visão deles, não eram civilizados. Nesse contexto, nesse momento antropológico, teorizou-se cultura nesses termos. A antropologia contou com a pretensão da Europa em expandir seus recursos e territórios. Aliadas a igreja, encontraram nessa ideia de cultura uma forma de “levar progresso”, “cultura e civilização”, para os então “selvagens”. A antropologia, que surgiu nesse contexto histórico olhou cultura a partir dessas dinâmicas de poder. Mas não tardou para que descobre que essa ideia de que esses povos não tinham “suas próprias culturas” era um equívoco, ao ponto que se deparam com esquemas sofisticados de troca, relação de parentesco, casamento, religiões, mitologia, rituais... a ideia do selvagem, do não- humano, do sem cultura, se perdeu e provocou uma virada de chave na antropologia.
“Do ponto de vista dos nativos”, Strauss (1989) apresenta de forma engenhosa outras costuras sobre a noção de cultura. Ele observar observa que cada civilização tem a tendência de superestimar a orientação objetiva de seu pensamento. Isso significa que as culturas frequentemente acreditam que sua maneira de compreender o mundo é a mais lógica, racional e verdadeira, e aleta que essa presunção não está ausente em nenhuma civilização (Strauss (1989, p 16). Ele sugere que, quando consideramos os chamados “selvagens” (ou seja, culturas não ocidentais), cometemos um erro ao vê-los como governados exclusivamente por necessidades orgânicas ou econômicas. Essa perspectiva questiona nossas próprias certezas culturais e a reconhecer que todas as civilizações têm suas próprias formas de compreender o mundo. Para essas culturas, seu próprio desejo de conhecimento parece estar em equilíbrio com o nosso, desafiando uma suposta (e pretensiosa) superioridade ocidental.
Compreendendo o Conhecimento Objetivo em Diferentes Contextos Culturais e possível dizer que busca pelo conhecimento é uma característica intrínseca à humanidade, independentemente do contexto cultural. No entanto, como explorado até aqui, essa busca pode assumir diferentes formas e direções, variando conforme as particularidades de cada sociedade. Nas linguagens profissionais e na construção do conhecimento cultural, a proliferação conceitual desempenha um papel crucial. Ela envolve uma atenção minuciosa às propriedades do mundo real, com o objetivo de distinguir e introduzir conceitos específicos. Assim como um linguista explora nuances semânticas ou um cientista categoriza fenômenos naturais, os membros de uma cultura também se dedicam a criar e definir conceitos que moldam sua compreensão do mundo (Strauss, 1989, p.16). Embora a ciência moderna tenha suas próprias metodologias rigorosas, outras culturas também demonstram um desejo intrínseco de compreender o universo. Mesmo quando direcionado a realidades diferentes daquelas exploradas pela ciência ocidental, esse anseio por conhecimento implica diligência intelectual e observação atenta. Seja na observação das estrelas pelos povos indígenas ou na interpretação simbólica dos mitos, a busca por compreender o mundo é uma constante. Dessa forma podemos olhar para uma realidade onde, por exemplo, tanto para culturas “primitivas” quanto a ciência moderna, o universo é objeto de reflexão. Essa busca por significado e compreensão visa, em última instância, satisfazer necessidades humanas. Seja para explicar fenômenos naturais, entender a origem da vida ou encontrar um propósito existencial, o pensamento humano se volta para o universo como um todo. Todas essas formas de entender e teorizar o que cultura fizeram e fazem parte da pretensão antropológica em entender o humano em sua mais pura essência.
Referências bibliográficas
GEERTZ, Clifford 1974. ‘From the Native‘s Point of View‘: on the Nature of Anthropological Understanding. In: Local Knowledge. Further Essays in Interpretive Anthropology.New York: Basic Books, 1983. [pp. 55-70].
GEERTZ, Clifford. 1973. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Editora Guanabara. Cap. 1 Uma descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. pp. 13-41
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad: Pellegrini, Tânia. São Paulo: Papirus, 1989. (Cap1)
SAHLINS, Marshall. Duas ou três coisas que sei sobre cultura. [Huxley Lecture, 1988. In: The Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol. 5, No. 3, 1999]. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés, 2021, pp. 1-36.
SAID, Edward W. 1989. "Representing the colonized: Anthropology's interlocutors." Critical Inquiry. 15.2 (1989): 205-225
TROUILLOT, Michel-Rolph. 1991. “Anthropology and the Savage Slot: The Poetics and Politics of Otherness.” In Recapturing Anthropology: Working in the Present, edited by Richard G. Fox, 17–44. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press.
WAGNER, Roy. 1981. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify. Cap. 1 "A presunção da cultura", Cap. 2 "A cultura como criatividade" ", pp. 27- 119. Pensadores: 193-206. Ed. Abril, São Paulo, 1980.
Como citar esse artigo: MOURA, Ivana de Oliveira Eugenio de Souza. A cultura é pública porque o significado o é. Brasil Escola/Portal UOL, 2024. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br
Publicado por: Ivana de Oliveira Eugênio de Souza Moura
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