Teoria de Gênero e Antropologia em diálogo
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“Tendo em conta que o feminismo é um projeto politicamente prescritivo, ele requer a recomposição das sensibilidades e compromissos das mulheres cujas vidas contrastam com as visões emancipatórias feministas”. (Mahmood, 2005)
As teorias de gênero surgiram em um momento em que a antropologia desconfiava dos modelos estruturalistas. A virada reflexiva possibilitou que o tema gênero, que até então era abordado principalmente através de uma lente estruturalista, focando em como as diferenças entre os sexos eram expressas e mantidas dentro de diferentes culturas, ganharam nova configuração. Muitas dessas teorias anteriores sugeririam que sexo e gênero seriam dispositivos distintos, os estudos antropológicos sobre gênero eram influenciados por abordagens funcionalistas, que muitas vezes viam o gênero como uma categoria fixa e binária, ligada a papéis sociais e culturais pré-determinados e o sexo como natural, concreto, definitivo.
Claude Lévi-Strauss e Margaret Mead foram figuras proeminentes nesse período, analisando o gênero principalmente em termos de estruturas sociais e papéis dentro de diferentes culturas. Nessa perspectiva antropológica o foco ficava debruçado na separação de natureza e cultura, sendo o sistema sexo-gênero o binário normatizador dessa estrutura. “Mas, sobretudo, começamos a compreender que a distinção entre estado de natureza [...] O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social” (Strauss, 2003, p.43).
Pensadoras feministas teóricas de gênero criticaram essas abordagens anteriores em seus trabalhos, argumentando que elas não questionavam profundamente as bases do gênero e suas expressões culturais. Butler (2003) foi uma das pensadoras que moveram de lugar o debate de gênero desafiar a noção de que gênero é uma constante universal e biológica, propondo, em vez disso, que o gênero e sexo é uma construção social que é constantemente recriada através de nossas ações, comportamentos e convenções. Diz Butler (2003, p. 14,15):
Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado.
Mesmo não tendo criticado diretamente cada antropólogo individualmente, ela duvidou das explicações meramente estruturalistas sobre gênero, e ofereceu uma nova maneira de entendê-lo e ofereceu, através de novas abordagem pós-estruturalista, outros caminhos para uma compreensão mais dinâmica e fluida do gênero, que tem sido amplamente adotada e discutida em várias disciplinas acadêmicas desde então e que mudou a chave da antropologia contemporânea sobre os estudos de gênero.
A ideia universalizada do que é uma mulher, ideia que produziu o feminismo, não comtemplava mais a pluralidade do que é ser mulher. A caixa onde habitavam o a ideia de mulher até então discutida pelos feminismos de base estruturalista, excluiu e negou que, outras mulheres, que não se encaixavam no imaginário do que era ser mulher nesses termos. Essa universalidade criou suspeitas que levaram feministas contemporâneas a questionarem essa lógica. A identidade como núcleo universal, “diferente da diferença”, já não cabia mais nos anseios teóricos e nos apelos políticos.
A relação entre identidade e diferença é primordial para o pensamento contemporâneo sobre gênero. Para Butler (2023) por exemplo, a identidade e a diferença são partes constitutivas de um processo anterior, o processo de diferenciação, que se estabiliza como unidade de diferença constituída. Os processos de estabilidade então se apresentam como complexos processos constituídos de símbolos e signos agregados nos processos sócio-históricos.
Mas isso não ocorre de forma livre, ela está intimamente ligada a uma relação de poder (Foucault, 2011). Ou seja, poder enquanto positivo, ao contrário da afeição/idealização do ocidente sobre o poder, está interessado em produzir e não reprimir. Aqui a ideia de mulher aparece como uma estabilização do poder (que está produzindo coisas/verdade/estabilizações). Mais para que essas estabilidades aconteçam um esforço é necessário.
Com o poder produtivo, essa teoria de gênero observa como o ato de fala atua e participa da convenção e estabilização do que é uma mulher. O ato de fala, que não e constatativo, e depende de condições de felicidade para ser produzido, encontra na base social-histórica chão firme para caminhar. Nessa perspectiva podemos exemplificar que, ao nascer uma criança, no momento em que o médico diz, é uma mulher, o ato de fala encontra condição de felicidade para produz a mulher. Essa condição de felicidade, por sua vez, só é possível porque uma norma, uma convenção social, já está estabilizada e regrara a vida dessa menina. E o ato de poder, o que apoia a essa norma, é a matriz heterossexual compulsória.
A relação afetiva do ocidente com a matriz heterossexual é potente, e tem uma potência discursiva, que gera uma cadeia de repetições que garantem que a ideia do que é, como se comporta, quem ama e como vivi uma menina/mulher não vacile. O que isso quer dizer é que, por base, uma menina que está dentro da matriz da heterossexualidade tem todo o seu comportamento e viva pré-determinado e uma série de convenções linguísticas vão entrar em cena para garantir a manutenção disso. Essa estabilização de poder, para Butler e para a teoria de gênero encontra felicidade nas convenções ocidentais e marcam a norma de gênero.
A heterossexualidade vê em si valor atribuído em um processo de inclusão por exclusão. Em sentido sociológico poderíamos observar esse fenômeno em outros termos, a exemplo de que para existir o rico, precisa existir o pobre. Para a psicanálise. esse processo é chamado de foraclusão. Para a teoria de gênero e performática de Butler isso se chama abjeção. Aqui podemos ver, de forma clara, o poder positivo de Foucault produzindo algo, a mulher, e mantendo a heterossexualidade, ou seja, mesmo que isso tenha uma intenção de ser original, na verdade, é só a pretensão da heterossexualidade sobre ela mesmo, é um esquema de poder.
Outra questão importante e a forma de entendimento sobre o que é o sexo. Para a autora sexo sempre foi gênero. Bulter explica que ao observar o sexo através de um oriente cultural, não há como dizer o que sexo é fora da linguagem. O anúncio do sexo é flexionado pela eficácia discursiva da norma de gênero e validado “por autoridades” (médicos, geneticistas e outros). A Subversão de gênero aparece nessa teoria como forma de liberdade. Aqui a citacionalidade ganha corpo na discussão.
Nas teorias de Ato de fala os aspectos discursivos são importantes. Na teoria da performatividade também. A citacionalidade é uma ferramenta discursava, que encontra abrigo no imaginário e nas convenções sociais ocidentais, para produzir estabilizações. Em suma, aborda Butler e um sistema de repetições que busca manutenção da norma, mas que em algum grau pode ser subvertida. Mas isso não acontece no campo individual, é preciso certo esforço e energia coletiva para que a subversão, de fato ocorra.
Aqui a vontade do sujeito é menor em relação as convenções sócios-culturais. Porém outras pensadoras não entendem assim e para elas o sujeito também se movimenta dentro dessas convenções. A acusação (se é que esse é é o melhor termo para se usar) a esse modelo se volta para como isso e apenas uma teoria discursiva, onde está a materialidade?
Essa perspectiva teórica de gênero, mesmo muito importante para os estudos feministas e estudos de gênero, é às vezes criticada por ser muito focada no contexto ocidental e não levar em conta suficientemente as diversas formas como o gênero é vivenciado e construído em diferentes culturas.
Outros conjuntos de teoria de gênero, entendem/criticam que a teoria da performatividade e a citacionalinada abandonou o sujeito e a materialidade de forma excessiva. Acusação e que essa teoria estaria mais interessada na subversão de gênero do que na rearrumação da norma. Isso para Saba Mahmood (2005), se tornou um ponto importante ao tempo que, em conversas com os feminismos, pensou que a própria ideia de liberdade que se debruça no termo de subversão parece equivocado para outros contextos sociais. Ao debater sobre as mulheres no Egito foi preciso olhar para essa “liberdade ocidental em um único termo” e faz críticas às suposições embutidas na teoria feminista e na política liberal secular. Nesse panorama o contexto sociocultural e o sujeito mulher reaparece na teoria de gênero.
Essa perspectiva em conversa com os feminismos argumenta que as abordagens Butleriana são insuficientes para explicar a participação das mulheres em movimentos de renovação religiosa. Nesse contexto temos uma antropologia sendo feita a partir dos movimentos de mesquitas urbanas no Cairo, Egito, que demonstra como as atividades das mulheres nesse contexto reconfiguram estruturas dominantes de maneiras significativas e como elas podem cultivar espaços de agência mesmo dentro de doutrinas iliberais. As mulheres desempenham papéis de liderança e participação, produzindo novas formas de sociabilidade e expressando interesses dentro da tradição islâmica.
Outras abordagens a teoria e estudos de gênero, que também olham para o cotidiano, estão movendo novas contribuições a antropologia. Diferente do contorno conceitual que privilegia o debate sobre o resultado da ação no modelo norma resistência. Desconfia que processos sócios históricos densos, produz violências múltiplas, mas que é preciso olhar para além da violência do evento, e olhar como essa violência se infiltra no cotidiano. Essa nova abordagem conversa com a forma com que a antropologia do cotidiano e a antropologia que conversa com os não humanos, de uma antropologia que também está preocupada em como as pessoas vivem em um mundo devastado. Nessa abordagem “olhar o fragmento” reconfigura a perspectiva de que se havia um todo, um universal. O habitar em um mundo devastado, o habitar a norma, no estudo de gênero que se debruça nessa perspectiva, busca dar conta de como as mulheres vivem dentro das estruturas (podemos pensar em patriarcado), ao contrário de subvertê-la. Aqui a atenção está no “retecer a vida” (Das, 2006).
A antropologia contemporânea habita, se desdobra, se recria e enriquece seus debates com as contribuições dos estudos e teorias de gênero, que lhe oferece insights valiosos e tira o véu da forma patriarcal de olhar as relações de gênero, de habitar o mundo, e de o que seria subversão, resistência e resiliência.
As teorias de gênero exploram desde como a violência sócio-históricas permeia o tecido social e afeta profundamente as vidas das mulheres, sendo uma violência se inscreve nos corpos, nas narrativas e nas práticas cotidianas, desafiando a ideia de que existe uma separação clara entre o extraordinário e o ordinário a complexos questionamentos sobre como normas e os padrões que moldam nossa compreensão do que é ser homem ou mulher que desafiam as estruturas tradicionais e abre espaço para uma análise mais crítica das relações de poder e das normas de gênero, enriquecem a antropologia contemporânea e nos ajudam a compreender melhor as dinâmicas sociais, as relações de gênero e as formas de resistência e resiliência.
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. 2003. “Sujeitos do sexo/ gênero / desejo”. In Problemas de gênero: Feminismos e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. Pp. 7-47.
DAS, Veena, 2020 (2006). Vida e palavras. A violência e a sua descida ao ordinário. São Paulo. Unifesp
FOCAULT, Michel. “A hipótese repressiva”, “ O dispositivo da sexualidade” e “Direito da morte e poder sobre a vida”. In: História da Sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Edição Graal, 2011.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. RJ: Vozes, 2003.
MAHMOOD, Saba. 2005. “The subject of freedom”. In Politicsof piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton/Oxford: Princeton University Press., pp 1-39.
Como citar esse artigo: MOURA, Ivana de Oliveira Eugenio de Souza. Teoria de Gênero e Antropologia em diálogo. Brasil Escola/Portal UOL, 2024. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br.
Publicado por: Ivana de Oliveira Eugênio de Souza Moura
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