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Religião, Território e Globalização

Clara visão geográfica da religião.

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Resumo: A temática da religião tem sido objeto de um pequeno interesse por parte dos geógrafos. Sendo assim, este artigo vem contribuir para preencher a lacuna na geografia brasileira, pois imprime uma clara visão geográfica da religião, bem como estabelece conexões entre espaço e sua relação com o meio, além de perceber a religião como ponto de ligação entre as culturas globais.

Palavras-chave: Religião. Geografia. Globalização. Território.

Atualmente, a ciência geográfica tem voltado seu olhar para os fenômenos que ocorrem no espaço geográfico de cunho cultural, com raiz nas expressões religiosas dos sujeitos e dos povos. A temática da religião tem sido objeto de um pequeno interesse, mas constante, por parte dos geógrafos, principalmente ao final dos anos de 1960, a qual era fortemente inspirada pela geografia cultural da Escola de Berkeley, influenciados por Carl Sauer, tendo David Sopher como o geógrafo mais intimamente ligado à questão. Ele está entre os primeiros que trataram da experiência religiosa na geografia cultural na referida década.

Dessa forma, a religião passa ser examinada no contexto geográfico relacionado à apropriação de determinados segmentos do espaço. Os espaços apropriados efetiva ou afetivamente são denominados territórios. Territorialidade, por sua vez, significa o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos, no sentido de controlar um dado território. É nesta poderosa estratégia geográfica de controle de pessoas e coisas, ampliando muitas vezes o controle sobre espaços, que a religião se estrutura enquanto instituição, criando territórios seus.

Mas, analisando o mundo globalizado atual, pode-se perceber que a religião não possui apenas um ou dois territórios ditos como seus, ou seja, não existem territórios específicos, nacionais, rígidos, imutáveis onde a religião ou a religiosidade é manifestada em sentido estrito. O mundo globalizado acaba por influenciar o fenômeno religioso, e este utiliza-se da globalização em seu benefício.

Tratemos rapidamente, antes de mais nada, de definir o termo globalização como um processo mundial de internacionalização econômica com forte impacto sociocultural. Em outras palavras, a globalização é vista como um processo objetivo de progressiva independência das diferentes sociedades humanas espalhadas pelo planeta, ou seja, há teorias que lêem esse processo como uma nova forma de dominação de umas sociedades sobre as outras.

Ao invés disso, se consideramos a globalização sobretudo como a afirmação de uma consciência global, planetária, nos indivíduos e nas sociedades do nosso tempo, portanto, como um processo subjetivo, poderíamos obter pontos de vista críticos que vêem este processo como uma ulterior forma de colonização moderna das consciências, homologadas pelos modelos das sociedades dominantes no mundo, assim como métodos que, ao contrário, assinalam, na consciência crescente que todos nós temos que fazer parte do mesmo globo e, portanto, temos que partilha totalmente de suas vicissitudes (ecológicas, históricas, políticas, econômicas, religiosas e éticas), o emergir de uma sociedade civil planetária (Pace, 1994), novo lugar da crítica e nova frente de libertação dos fartes poderes multinacionais e ordenamentos estatais que ainda pretendem ditar a lei no mundo (Zolberg, 1983).

A globalização como novo paradigma da geografia da religião

A discussão que há algum tempo se iniciou nas ciências sociais sobre a pertinência da noção de globalização para interpretar os processos que têm lugar no mundo contemporâneo terminou por atingir o objeto mesmo do saber geográfico e antropológico. Se falamos de globalização da sociedade – afirma Archer (1994) – isto significa que as sociedades já não constituem a unidade de análise primária da pesquisa sociológica. Se o mundo converte-se no macro sistema que tem que ser levado em consideração em primeiro lugar e só a partir dele, se pode estudar os vários subsistemas dos quais se compõe – cada sociedade parcial e independente – então a lógica requer que também os paradigmas teóricos devem sofrer uma profunda revisão: já não se pode falar só de necessidades no plural, apreendendo, portanto, suas diversidades, mas deve-se evocar com maior ênfase, de agora em diante, o sistema social global ou planetário no qual se desenvolvem relações de interpenetração (além das de interdependência) entre diferentes âmbitos ou esferas da vida econômica, cultural, política e comunicativa (seja nas formas tradicionais e passivas da comunicação de massa, seja nas novas redes informáticas de intercâmbio de informações ao alcance direto da livre e ativa iniciativa dos indivíduos) (Albrow and King, 1990;Giddens, 1990; Luhmann, 1982).

Nesta perspectiva há alguma mudança também para quem se interessa por um objeto particular como a religião (Roff, 1991). Ao menos por três boas razões. Se assumimos, de fato, ou consideramos positivamente a opção teórica e empírica implícita na teoria da globalização, devemos estar conscientes de que nos encaminhamos por uma linha de pesquisa que apresenta, precisamente, três articulações teóricas de grande relevo para a ciência geográfica. Vejamos:

a) a necessidade de revisar criticamente a noção de sincretismo como um instrumento analítico útil para medir, por um lado, o processo de queda do nível de desconfiança ou hostilidade recíprocas entre religiões diversas e, por outro, a criação de “interstícios” entre as grandes religiões históricas onde se produzem fenômenos evidentes de mestiçagem (Berube, 1992; Hanners, 1987; Pieterse, 1994) entre universos simbólicos e práticas rituais provenientes de diferentes contextos religiosos;

b) a necessidade de levar em consideração cada vez mais seriamente a perspectiva comparativa que na geografia cultural tem sido utilizada até o momento muito timidamente, para poder compreender melhor os efeitos do desaparecimento de fronteiras territoriais simbólicas rígidas entre diferentes campos religiosos, entre campo religioso e campo mágico e esotérico, entre religião e novas crenças seculares ou para-religiosas. Os efeitos são diferentes e vão em árias direções: a crescente atenção recíproca entre grandes religiões mundiais (antes isto chamava-se ecumenismo); a tendência dos movimentos inter-religiosos que se constituem como novos sujeitos coletivos com vocação planetária, pequenas agrupações de uma sociedade civil planetária com um estatuto às vezes de órgãos internacionais não governamentais capazes de intervir com um profissionalismo próprio diplomático em um conflito armado, paralelo aos que conduzem os consulados oficiais (como no caso de uma micro realidade do mundo católico italiano – a comunidade de S. Egídio – que desenvolveu primeiro, com êxito, um trabalho de pacificação na guerra civil de Moçambique e logo, sem êxito, na dramática crise da Argélia); a acentuada tendência de muitas grandes religiões mundiais históricas e as novas religiões a apresentar sua mensagem em temos éticos (a paz no mundo, os direitos humanos, a defesa do ecossistema, etc) mais do que em termos teológicos ou escatológicos: indicadores todos de um fenômeno que poderíamos chamar, conforme Isambert (1975), de “secularização interna”, mais ou menos desejada e secundada pelos próprios responsáveis dessas religiões.

c) a necessidade de deslocar a atenção da análise da função de cada religião – na sua especificidade e com referência à diversidade das sociedades e dos territórios onde estas têm prosperado – para o modo como constituem sistemas de comunicação que permitem aos indivíduos reduzir a complexidade em que vivem aqui e agora e ao mesmo tempo imaginar “o mundo” unificado por problemas comuns que interessam a toda espécie humana, em suma, sistemas simbólicos capazes de pôr em relação a realidade local com a perspectiva global. Um “glocalismo” – para usar este horroroso neologismo que junta localismo e globalização – das religiões que impõem uma maior capacidade dos cientistas sociais de captar o que se oculta atrás do afastamento do indivíduo moderno das religiões institucionais, sejam as grandes igrejas históricas, sejam os sistemas de crença que desconhecem uma organização eclesiástica consolidada (Bird, 1993; Shils, 1995).

Neste sentido, a globalização pode favorecer “a perda da memória” e por conseguinte de identidade, pois a religião é, na realidade, muito visível seja na esfera pública, seja nas múltiplas formas que assume na biografia concreta de milhões de pessoas em busca de um sentido religioso fora, à margem ou dentro das religiões de origem.

Tendo como exemplo a organização político-religiosa da Igreja Católica Romana, sua hierarquização, percebe-se que a mesma dá muita importância às suas igrejas locais (as dioceses, administradas por um Bispo), e às suas teologias regionais, populares, sem negar com isso a primazia da comunhão, obediência e resignação, obviamente, com Roma (ao menos no discurso). Esta observação representa um bom exemplo do que vimos até agora: se inclusive em uma organização complexa e piramidal como a igreja católica abre caminho a idéia de que o pluralismo religioso é inevitável, porque nele se reflete o pluralismo das culturas e dos estilos de vida do mundo contemporâneo, quer dizer que a globalização, também no campo religioso mundial, produziu efeitos inesperados. Para alguns talvez também seja perverso.

As religiões globalizadas, ou as world-religion tendem, então, a deixar em segundo plano no cenário das comunicações de massa suas grandes construções filosóficas ou escatológicas, valorizando em primeiro lugar um discurso “humano” (humano demais, diria Nietzsche), seja no sentido de que tende a dirigir-se a um público mais amplo do que o dos crentes ou dos fiéis mais fiéis, seja dos conteúdos prediletos: os direitos humanos, a salvaguarda da criação para estar em sintonia com as questões escatológicas.

Podemos dizer que agindo desta forma as grandes religiões se globalizam da mesma forma que o espírito do capitalismo tornou-se mundial. As religiões, às vezes, tentam se opor a esse espírito; outras vezes, sem preconceitos em demasia, terminam por destilar seus humores mais puros e fortes para lançar-se com impulsiva determinação ao livre mercado das “fés”. Hoje em dia, as religiões tornaram-se capazes de sustentar e oferecer recursos simbólicos ao espírito empreendedor e desenvolvimentista próprio do capitalismo: países de tradição hindu, budista e inclusive islâmica (como no caso de alguns “tigres” do Extremo Oriente: Malásia e Indonésia) têm dado forma ao espírito do capitalismo, impondo-se um ritmo de racionalização da vida econômica e social, uma disciplina difusa que encontrou nas asceses praticadas nestas religiões um poderoso multiplicador de energias humanas. Há, em todos estes casos, uma mobilização religiosa no mercado que parece dar razão às análises apocalípticas de Hugo Assmann (1994).

Assim, um espírito mundial, certamente não santo, obriga grandes religiões a fazer pactos com o mundo. A globalização derruba barreiras, destrói territórios, e deste modo, termina por se tornar uma condição que favorece um efeito da secularização: a subjetivação dos sistemas de crença e a dificuldade, por parte das instituições que ostentam certo capital de autoridade e de tradição na história, para regular, dentro de limites interespaciais seguros estáveis, seus sistemas de crenças de repercução geográfica.

Referências Bibliográficas

ALBROW, M., KING, E. (Eds). Globalização, Conhecimento e Sociedade. Ed. Sage: Londres, 1990.

ARCHER, M. S. Sociologia para o mundo. Ed. Sociologia Internacional: Nova Yorque, 1991.

ASSMANN, H. Teologia da Libertação: olhando para frente. Revista Latinoamericana de Teologia, 1 1994.

BERUBE, M. Nascendo um novo Centro. Revista Afro-Americana, 4., 1992.

BIRD, J. Mapeando o Futuro. Ed. Routledge: Londres, 1993.

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. Edições Livros do Brasil: Lisboa, 1962.

GIDDENS, A. As Conseqüências da Modernidade. Ed. Stanford University: Stanford, 1990.

HANNERS, U. O Mundo em Colonização. Ed. África: Rio de Janeiro, 1987.

ISAMBERT, F. A Secularização Interna das Igrejas. Revista Francesa de Sociologia, 4., 1975.

LUHMANN, N. A Sociedade Mundial e os Sistemas Sociais. Jornal Internacional do Sistema Geral, 8., pp. 56-74, 1982.

PACE, E. O Estado nascente de uma sociedade civil planetária. In: Uma nova modalidade para um futuro de paz. Edição Cultural da Paz, Fiesole, 1994.

ROOF, W. C. Globalização, Conhecimento e Sociedade. Ed. Universidade de Nova Iorque: Albany, 1991.

ROSENDAHL, Z. Espaço e Religião: Uma Abordagem Geográfica. EdUERJ: Rio de Janeiro, 2002.

SHILS, E. A Cultura Local das Comunidades. Ed. Tomasi: Milano, 1995.

ZOLBERG, E. Geopolítica e Geocultura. Universidade de Cambridge: Cambridge, 1983.

Jones Godinho
Professor, Licenciado em Geografia


Publicado por: Jones Godinho

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