O Espiritualismo Popular Afro-Brasileiro
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Divindades são energias. Humanas ou não. O trovão poder ser considerado uma divindade para aqueles que o cultuam como tal. Que acreditam em sua força como uma força que interfere e/ou influencia no cotidiano, no destino, na saúde, nas relações pessoais e sociais, na própria sorte. E é justamente esse fator que torna algo ou alguém uma divindade. Um animal pode ser considerado uma divindade. Um elemento da natureza, como uma rocha ou uma árvore. Tudo depende do significado, e da relação, que se atribui a tal objeto de culto.
Em muitas tradições religiosas do mundo a concepção de divinização se dá pela associação das divindades a três principais segmentos: os elementos da natureza, as relações humanas e a relação entre homem e natureza. Existem Deuses com forma humana que regem o trovão, a chuva, o fogo. Existem aqueles que regem a agricultura, a guerra, a saúde. Entre os gregos, os nórdicos, os egípcios, os romanos, os hindus, essa lógica se reproduz em diferentes formatos e linguagens, mas com concepções comuns. Ou seja, um ser humano pode ser uma divindade que rege uma força da natureza, ou uma força da natureza por si só pode ser cultuada como divindade. Há também as relações e representações sociais. Existe a guerra. Os homens fazem guerra para proteção, sobrevivência ou mesmo ambição. Desse modo um grande guerreiro pode ser divinizado como “Deus da Guerra”. Na mesma lógica a agricultura, a medicina (ou saúde). E todas essas dimensões são dimensões sociais. Provenientes das relações humanas.
No culto espiritualista que se constrói no Brasil, ao longo dos séculos de formação do povo brasileiro, muitas formas de contato mediúnico com o mundo espiritual surgem. Da mesma maneira muitas divindades, ou entidades, se configuram como resultado das heranças e inovações de um processo de constante inter-relação entre o espiritualismo africano (orixás, voduns, inkices, babaeguns), indígena (caboclos flecheiros, caciques morubixabas, pajés curadores), europeu (espiritismo kardecista que estabelece contato com pessoas recém falecidas como parentes e amigos, assim como mestres e guias espirituais que atuam através de médiuns). Dos diálogos entre essas matrizes nascem outras entidades que representam outros segmentos espirituais ligados à atividade humana, aos locais de habitação e atuação tais como:
- as pombo-giras (mulheres autônomas, donas do próprio destino e do próprio corpo que não tinham compromisso moral com os padrões sociais estabelecidos nem com o comportamento tradicional da sociedade vigente);
- os caboclos boiadeiros (mestiços ao cristianismo e integrados nas atividades de criação de gado comum em todo o Brasil),
- marinheiros (pessoas que trabalhavam em atividades de pesca e transporte marítimo ao longo de toda a formação do país),
- baianos (benzedeiros, catimbozeiros, rezadores comuns na região da Bahia, onde se concentrou e se misturou inúmeras tradições religiosas),
- mestres de Jurema (entidades especializadas no culto indígena que a Jurema, um planta, como principal referência em rezas, rituais, fórmulas, medicamentos),
- pretos-velhos (ex-escravos, ou escravos libertos, geralmente idosos que dominam práticas de curas, rezas, tratamentos de saúde. Geralmente trazem marcas de sofrimento pela idade avançada e pelos anos de trabalhos forçados).
- Exús (entidade ligada à decisões importantes relacionadas à dinheiro, intrigas, inimizades, entre outras coisas. Por ser bem próximo aos princípios do Orixás Exú, donos dos caminhos e das coisas impossíveis, foi-lhe atribuído o mesmo nome).
Em muitas regiões há entidades locais singulares àquela região. E o culto a essas entidades não segue um padrão definido, mas se assemelham em muitos aspectos, sempre dentro das influências matrizes citadas anteriormente, indígena, africana e kardecista.
Um dos princípios em comum, que rege esse sistema de culto à divindades diversas, é o principio da ancestralidade. Os índios brasileiros, assim como os africanos, mantinham contato com o mundo espiritual para receberem orientações em como agir, tomar determinadas decisões, solucionar problemas. A confiança em tais “espíritos desencarnados” baseia-se na experiência acumulada, enquanto vivos, no contato direto como forças maiores que influenciam os destinos, como os Orixás, e em seu próprio poder de influência no mundo material. Esse poder é de influência, repito. Não é determinante. Se as divindades tivessem poderes determinantes sobre os destinos e acontecimentos, as pessoas protegidas por elas não teriam nenhum tipo de problema. Da tradição kardecista, o princípio não é tão diferente. Tal tradição estabelece, fortalece e mantém o contato do mundo material com o mundo espiritual. E a função desse contato é justamente orientar. Confortar parentes em casos de mortes misteriosas por exemplo. Ou mesmo atuar com questões mais complexas, no campo da medicina espiritual, da filosofia e até da política.
Existe ainda certa hierarquia dentro do culto às divindades, ou entidades. Dentro de uma perspectiva de poder espiritual. Ou poder enquanto energia mais ou menos forte. Mais ou menos atuante, as divindades adquirem mais força de acordo a intensidade do culto direcionado a ela. Partindo de uma análise puramente racional e física. Quanto mais energia eu direcionar à um ponto, mais energizado esse ponto ficará. Uma entidade é uma energia específica. Humana ou não. Nossa fé é uma emanação de nossas energias. Quando peço o bem de alguém estou direcionando energia positiva à essa pessoa. Quando desejo o mal direciono energia negativa. A partir do momento que eu considero uma pessoa, ou ou elemento da natureza, algo importante, com poder de influenciar em minha sorte ou destino, estou automaticamente potencializando a energia dessa outra pessoa. Um exemplo simplório. Se minha avó morrer, e eu a partir dali dedicar orações, pedidos, fé ao seu espírito, estou estabelecendo uma relação de devoção com ela. Se isso for expandido, e outras pessoas passarem a fazer o mesmo, seu poder espiritual se potencializa. Há também teorias que defendem a ideia de que Deus, ou os Orixás, determinam quem deve se tornar uma entidade. Isso é escolhido de acordo com o grau de evolução espiritual de cada um.
Mas essa lógica de potencialização pela fé é claramente perceptível, na constituição do Xirê dos Candomblés. Ogum, é sem dúvida, uma das divindades mais cultuadas no Brasil. E seu culto se deve justamente à sua regência. A guerra. Em um contexto escravista, de luta, fuga, resistência, violência, as regências de Ogum eram as mais necessárias aos devotos dos Orixás. Ogum é o Orixá mais cultuado no Brasil por uma questão de contexto histórico social. Quando os africanos eram oprimidos, castigados, submetidos às crueldades, pediam força a Ogum. Quando fugiam e formavam seus quilombos pediam força à Ogum para resistirem aos capatazes, capitães do mato e até aos pequenos exércitos que atacavam os quilombos. E à medida que se dedica um culto mais intenso à determinada entidade sua força, seu poder de influência sobre a sorte e o destino das pessoas aumenta. Dentro da hierarquia das divindades, existem as primordiais, as mais antigas e cultuadas em tempo e espaço. Entidades como Maria Padilha, Sete Encruzilhadas, Tranca Rua, Caboclo Sete Estrelas, Caboclo Sete Flechas são exemplos disso. Dentro da tradição umbandista, salvo as exceções e particularidades, tais entidades são cultuadas no mesmo patamar dos Orixás. Isso nos remete a uma questão importante. A hierarquia entre as divindades não é algo imóvel e determinado. Ela se dá de acordo com o espaço, tempo e princípio de realização dos cultos. E o contato entre o mundo material e espiritual tem como ponto fundamental a prática, o exercício. A fé é um exercício que fortalece a mediunidade. E a mediunidade é a capacidade de manter contato com esse mundo espiritual. Independente da entidade ou divindade que se cultua.
Publicado por: Alan Carvalho
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