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HISTÓRIA REGIONAL: FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA UMBANDA NO RIO DE JANEIRO

Breve recapitulação da história regional: um olhar para a formação e para o desenvolvimento da umbanda no Rio de Janeiro.

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HISTÓRIA REGIONAL: FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA UMBANDA NO RIO DE JANEIRO

Rafael Rocha Porciúncula Rodrigues[1]

Társis de Carvalho Santos[2]

Introdução

O Brasil está no topo de uma pesquisa realizada pelo instituto Ipsos, onde é avaliada a crença religiosa. Assim afirma uma reportagem publicada pela BBC News Brasil em maio de 2023: “Quase nove em cada dez brasileiros dizem, por exemplo, acreditar em Deus”.

Embora de grande maioria cristã (católica ou protestante), o brasileiro é reflexo de uma fé tão miscigenada quanto seu próprio sangue. De certa forma, ha uma crença diversificada no ethos brasileiro. Neste breve ensaio, tentaremos abordar a formação do culto de Umbanda no início do século XX, no Rio de Janeiro, com seus ritos e crenças.

Macumba x Umbanda

Já no final do século XIX, a palavra macumba era encontrada em alguns jornais. No entanto, sua conotação era meramente associada a um instrumento musical de origem “banto” similar a um “reco-reco”. Já no início do século XX, poucos anos depois, o termo sofre uma mudança em sua semântica e passa a denotar algo como “feitiço”, ou seja, prática sobrenatural e malévola.

O fato é que Macumba é o termo dado a uma prática religiosa que descende da Cabula. É um modelo de culto religioso que nasceu no interior do Estado do Espírito Santo, que mescla, sobretudo, crenças de nossos povos autóctones oriundas da África, trazidas pelos escravizados. Haja vista que essas crenças foram lidas sobre um contexto colonial, logo cristão.

De maneira breve, a prática envolve a incorporação de espíritos ancestrais denominados “Tatas” que interagem com os adeptos, supostamente os abençoando, curando ou simplesmente aconselhando. O que podemos notar é que essa pratica era de forma regular realizada em regiões ermas, principalmente, em clareiras no interior de matas fechadas.

Todavia, pelo fluxo de imigrantes para então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, a macumba se vê em um ambiente agora urbano, citadino. Em seguida, essa prática foi mais uma vez “relida”, dando origem as “Macumbas cariocas”, praticadas principalmente pelos negros recém libertos ou mesmo os já previamente alforriados, que viam na pratica algo que alternava entre uma festividade e um lazer com um fervor religioso.

As Macumbas eram catárticas, sempre acompanhadas de cantoria, danças, expressões corporais, comida e bebida. No entanto, foram vistas de maneira negativa pelas elites conservadoras da época, chegando ao ponto de serem criminalizadas. Promulgado em 11 de outubro de 1890, o primeiro código penal tipificava a prática de espiritismo como crime. Segundo o artigo 157 do Código Penal de 1890:

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública:

Penas – de prisão celular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.

§ 1º Si por influência, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:

Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.

§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. [i] (BRASIL, 1890).

A pratica foi regularizada em 1954 pelo governo Vargas. Contudo, antes da Macumba ser normatizada, os adeptos foram obrigados a caminhar por outros modos, por meio de um embranquecimento e cristianização da prática. É por esse caminho que chega a Umbanda, mediante o mito e fundador da religião, o jovem Zélio Fernandino de Moraes.

Orientado por uma entidade metafísica (Guia), que se autodenominou “Caboclo das Sete Encruzilhadas”, fundou a religião em 15 de novembro de 1908, em uma associação kardecista localizada em Niterói, transferindo no dia seguinte seu novo culto para sua casa, localizada em Neves, bairro também de Niterói. A instituição foi batizada de “Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade”, existindo até os dias atuais. Embora sua localização tenha sido alterada, hoje é dirigida pela neta de Zélio, Lygia Marinho da Cunha.

Prática da Umbanda

O que se observa, de maneira geral, na Umbanda fundada por Zélio, são linhas gerais similares ao visto na Cabula e nas Macumbas cariocas. Vale destacar a incorporação de entidades metafisicas para o atendimento de consulentes, que serão da mesma forma “abençoados, curados ou aconselhados” por estes seres que, dentro da prática, são chamados Guias”.

Entretanto, há uma substituição dos ancestrais africanos e indígenas por guias que dialogam diretamente com contexto recente da época, tais como: “pretos velhos” (espíritos de escravizados africanos que sobreviveram ao violento processo de escravização); “caboclos” (que remetem a miscigenação com os povos autóctones) e “orixás” (espíritos que estão diretamente ligados ao ancestral africano divinizado, porém agora atendendo a uma ética judaico-cristã).

Ao longo da jornada e da evolução da religião, outros seres vão se juntando e sendo incorporados ao panteão do culto, tais como os “erês” (espíritos infantis herdados do candomblé); ciganos, marinheiros, dentre outros. Podemos aqui destacar a dita linha de esquerda (como é chamada pelos praticantes), que reúne espíritos extremamente urbanizados, chamados exus e pomba-giras, que remetem a figuras que oscilam da roupagem europeia (capas, cartolas, longos vestidos) aos excluídos da sociedade, como malandros da lapa, magos, feiticeiros, prostitutas entre outros.

Troca de Simbologias para Adentrar a Sociedade

Como vimos brevemente no capítulo anterior, a umbanda muda a roupagem da macumba carioca para fugir de perseguições e estereótipos, e assim ser aceita na sociedade fluminense do século XX. O primeiro a ser feito é assimilar-se ao “espiritismo Kardecista” fundado na França e que já tinha de certo modo ganhado a simpatia das elites brasileiras, justamente por ter virado moda na França, na Inglaterra e em outros países do velho continente.

As elites brasileiras dos séculos XIX e XX eram intensamente interessadas em tudo que remetia ao europeu e ao norte americano, com interesse especial na cultura e moda parisiense. Inclusive, logo no início do século XX, uma reforma foi realizada no Rio (1903- 1906) pelo então prefeito Pereira Passos. A reforma foi totalmente inspirada na reforma de Paris. Visto isso, devemos abordar um pouco do que foi modificado dentro dos cultos, para aproximar-se de um “modus”Kardecista, europeu, cristão e tão logo branco:

Uso de mesa: nas macumbas cariocas viam-se pequenos altares de pedra bruta com uso de velas, e seus praticantes arrumados em uma espécie de ciranda, em fervor religioso ao som da percussão de atabaques, macumbas, pandeiros e berimbaus. Zélio e seu mentor metafísico, o Caboclo das sete encruzilhadas, aderem a uma estética igual ao do Kardecismo; reunidos em uma mesa forrada de branco, faziam suas preces silenciosas a fim de incorporarem seus guias.

Ausência de música, instrumentos e palmas: as macumbas cariocas eram “embaladas” ao som de instrumentos. Havia a entoação de orações em forma de canções diversas em um ambiente totalmente similar a uma festividade. Também, havia danças e contato físico com um fervoroso barulho, do ponto de vista eurocêntrico como balburdia. Logo, a opção de Zélio foi um culto quase silencioso, com proibição de instrumentos, canções e até mesmo palmas.

Roupas contidas: enquanto nas macumbas cariocas as vestimentas eram informais e por vezes multicoloridas, dentro da umbanda foi adotado uso de roupas simples e contidas, sempre na cor branca.

Inserção de elementos cristãos: a umbanda se apropriou também de elementos cristãos, como uso de orações católicas, bem como o sincretismo dos orixás herdados do candomblé com os santos católicos, uso de cruzes e crucifixos. A imagem geral da liturgia lembrava muito a kardecista, porém com uma estética principalmente das imagens católicas.

Aceitação e Capilarização na Sociedade

Em 1918, dez anos após a criação do culto de Zélio, adeptos da religião sobre a supervisão do próprio Zélio fundaram mais sete tendas: Tenda Espírita Nossa Senhora da Guia, Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição, Tenda Espírita Santa Bárbara, Tenda Espírita São Pedro, Tenda Espírita Oxalá, Tenda Espírita São Jorge e Tenda Espírita São Gerônimo. É necessário ressaltar que neste período as macumbas cariocas continuam ativas, e de certo modo parecem ir se mesclando a umbanda recém criada.

Arthur Ramos em seu livro, O Negro Brasileiro, publicado em 1934, cita a existência de um “terreiro de macumba” situado em Neves, no alto de um morro de difícil acesso, dirigido por um sacerdote negro denominado Onorato de Ogum Megê. Tal terreiro, segundo Arthur, existia há 24 anos, ou seja, além de estar situado no mesmo distrito da Tenda de Zélio, era contemporâneo a mesma prática.

O fato é que, até a morte de Zélio em 1975, já haviam sido fundados mais de 10.000 terreiros.  Em 1941, foi realizado o I Congresso brasileiro de espiritismo de Umbanda, realizado em Itacuruçá, no Rio de Janeiro. O objetivo do evento era formar um corpo doutrinário que pudesse englobar as várias ramificações da religião, inclusive as que derivavam diretamente da Cabula e das macumbas cariocas, que agora se assemelhavam em diversos pontos com a linha que descendia da linha de Zélio.

Em 1961, foi realizado o segundo congresso, tendo como sede o “Maracanãzinho” que lotou. O evento ganhou certa notoriedade na impressa da época contando com presença de repórteres e políticos de vários estados.

Assim, essa solenidade confirmou a vitória da Umbanda, agora embranquecida, cristianizada e muito similar ao kardecismo, inclusive ostentando o nome de “Espiritismo Brasileiro de Umbanda”. Na década de 70, a religião já havia feito adeptos por todo Brasil, sendo citada em algumas reportagens da época como importante organização filantrópica.

Inimigos Declarados: Batalha Espiritual

Até a década de 1980, a Umbanda era mais associada ao kardecismo e ao misticismo eurocêntrico relido pelo povo brasileiro, mas não podia se desvencilhar de suas origens africanas e autóctones. É justamente nesta época que o fenômeno “Neopentecostal”, liderado por igrejas como a Universal do Reino de Deus, a Nova Vida, A Igreja Mundial da fé, entre outras, começam um forte trabalho de demonização das religiões de matrizes africanas.

Na década 60, o pastor canadense Robert McAlister publicou um livro chamado “Mãe de Santo”. Ele narrava de maneira apologética a história de Georgina Aragão dos Santos Franco, uma sacerdotisa de candomblé recém convertida ao cristianismo Neopentecostal. Mcalister é fundador da instituição “Cruzada Nova Vida” e, segundo alguns especialistas em teologia, foi o percursor da doutrina de “batalha espiritual” aqui no Brasil.

Mcalister ficou conhecido também por ser o primeiro a adotar no Brasil um estilo de “pregação” midiática e, dentro desta prática, a demonização das religiões autóctones e sobre tudo as religiões de matriz africana. Em seu livro “mãe de santo”, associava cada página as práticas das religiões “afro” a entidade maligna cristã, “Satanás”.

O pastor canadense foi seguido pelo “Bispo” Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do reino de Deus “IURD”. Este, lançou em 1995, no auge de sua igreja, o livro: Orixás, Caboclos e guias: deuses ou demônios?

O livro seguia a mesma linha retórica de McAlister, demonizando e comparando a cada pagina as entidades das religiões de matrizes africanas a demônios da Bíblia, livro sagrado para os cristãos. Edir Macedo usaria o poder financeiro de sua instituição para impulsionar o livro e também sua narrativa, usando mídias como rádio, jornais e até emissoras de televisão para criar um clima de perseguição religiosa com as práticas afro-brasileiras, o que de certa forma conteve o avanço da umbanda, pelo menos até a virada para o século XXI.

Considerações Finais

O que podemos brevemente observar é que a Umbanda foi uma importante expressão cultural ao longo de todo século XX no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. A prática religiosa misturou-se e ainda vibra nas manifestações populares do Rio.

Tais manifestações estão inseridas em expressões como: “Meu santo não bateu com o dele”. Seja em terreiros onde o samba se mistura com fé, seja em personagens tão presentes no Rio como os malandros da lapa ao estilo “Zé Pelintra”. Seja na diversidade de fé que ostentam os cariocas e fluminenses, onde o sujeito pode ao mesmo tempo carregar um crucifixo, dizer aleluia e andar com uma figa de guiné.

A umbanda nos parece um registro vivo de nossa raiz africana e indígena, sufocada por conceitos eurocêntricos. Entretanto, vemos o fruto de um povo que foi formado e alicerçado em miscigenação e mistura, isto é, em ser vários em um.

Referências Bibliográficas

AMORIM, M. Macumba no imaginário brasileiro: A construção de uma palavra. Artigo apresentado no II Simpósio de Pesquisa da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Fundação escola de Sociologia e Política, 2013.

COSTA, V. C. Cabula e Macumba. Revista síntese n 41, 1987, p. 65-85.

CUMINO, A. História da Umbanda, uma religião brasileira. CUMINO, São Paulo, Madras, 2011.

FILHO, M. Macumba: A mãe da Umbanda, youtube, 2021. Disponível em: https://youtu.be/zV0W7YD5xW4?si=7mX-A0leQE0jrJ6d. Acesso em: 02 set. 2023.

ISAIA, A. C.; SILVA, E. A história de uma Ialorixá sob a ótica de um pastor canadense: Robert McAlister e as Religiões Afro-Brasileiras. Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 19, n. 3, 2019, p. 104-124.

Por que Brasil está no topo de ranking de países onde mais se acredita em Deus. BBC News Brasil, 2023. Disponível em:  https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o, 2023. Acesso em 02 ago. 2023.

SIMAS, L. A.; RUFINO, L. Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro, Mórula, 2018.

SOUZA, J. Candomblé: Repressão através dos jornais no século XX. História da Bahia, 2010.

[1] Aluno do Curso de Licenciatura em História da Universidade Veiga de Almeida

[2] Professor Tutor do Curso de Licenciatura em História da Universidade Veiga de Almeida


Publicado por: Rafael Rocha Porciuncula Rodrigues

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