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As linguagens no Ensino Superior

As linguagens no Ensino Superior, Língua Portuguesa. Ensino. Variações lingüísticas. Língua Brasileira. Responsabilidade do ensino, O ensino da Língua e os PCN, Ensino da Língua em faculdades e universidades.

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Numa época em que a discriminação em termos de raça, cor, religião ou sexo não é publicamente aceitável, o último baluarte da discriminação social explícita continuará a ser o uso que uma pessoa faz da língua.
James Milroy

Resumo

O estudo da Língua Portuguesa no Brasil, desde a publicação da lei que determinou as Novas Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (lei...) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para os ensinos fundamental e médio, não deve mais se realizar com foco apenas nas linguagens padrão e culta. Na realidade, o ensino da língua materna, agora, deve ser abrangente, viabilizando estudos acerca de todas as suas variações, no sentido de ampliar os conhecimentos do estudante para que alcance, de fato, sua condição cidadã. Devido a isso, o ensino da língua materna não pode ficar sob a responsabilidade exclusiva dos professores de Língua Portuguesa, mas deve ser da alçada de todos aqueles que a utilizam e, principalmente, daquelas que ministram aulas, independente da disciplina na qual se abrigam.

Palavras-chave

Língua Portuguesa. Ensino. Variações lingüísticas. Língua Brasileira. Responsabilidade do ensino.


Introdução

Nos meus já não poucos anos de magistério, sempre lecionando em disciplinas cujo objetivo básico é o ensino de Língua Portuguesa[I], tenho escutado questionamentos de colegas de outras áreas e, infelizmente, em algumas situações, até de profissionais que atuam na mesma área em que opero, quanto ao fato de muitos alunos não usarem de “correção” no uso de nosso idioma. Nas conversas, sempre informais, algumas perguntas revestidas de certo teor de ironia, como, por exemplo: Que é que você tá ensinando pros seus alunos?; E aí, não dá mais aula não?; Tá desensinando o que pros teus alunos?

Também já ouvi uma pergunta que de todas me parece a merecedora de maior reflexão, por considerá-la afastada da ironia e da informalidade, configurando-se, a meu ver, como uma questão intencionalmente bem dirigida: Escuta, o que você vai fazer para melhorar o português dos alunos?  Pasmo.
E em seguida me indago: Por que profissionais atuantes no ambiente da Educação e, mais ainda, com presença freqüente em sala de aula, “ensinando” diversos assuntos a seus alunos, conseguem elaborar tão descabidas perguntas? Como um “professor” pode “ensinar” seus alunos sem conhecer a própria língua de que se servirá para preparar suas aulas, elaborar notas de aula, atividades, exercícios, trabalhos, instrumentos avaliativos? Pasmo, ainda mais, quando as perguntas vêm de “professores” de Português. E agora já não me faço indagação nenhuma. É certo que estes não estão se atualizando quanto aos estudos sobre linguagem, imprescindíveis, desde que a Lingüística rompeu as portas das academias e galgou espaços nas sociedades, tornando-se conhecida, popular, ficando muito falada, até.

Concretamente, avalio que estou sendo posto em xeque nestas horas. Mas não estou sozinho na situação: as perguntas poderiam ser dirigidas a qualquer outro professor de Língua Portuguesa (e muitas vezes são, bem sei). Passo, por conseqüência, a considerar a situação que me é proposta por dois imediatos caminhos: o primeiro deles relativo ao fato de como se realiza o “ensino” de Língua Portuguesa hoje; o segundo, pertinente à convicção que tenho de que a responsabilidade na orientação sobre os fatos da língua não se pode restringir ao professor de português. E não estou aqui querendo “tirar o braço da seringa”.

Argumento. Hoje, não mais se pode (apenas) ensinar. Antes, havia “gestores” da palavra não somente em salas onde se implementava a educação formal, mas também nos ambientes de informalidade caseira. No primeiro espaço, o professor impunha regras comportamentais, discursivas e sociais a seus alunos; no segundo, principalmente imperava a voz, a fala, o discurso e as ideologias de um pai que se entendia como o detentor da verdade a ser ensinada aos filhos. Ambos ensinavam, pregavam, incutiam na mente de discípulos e descendentes o que muitas vezes já haviam recebido por herança. Nada se podia questionar; tudo se devia aprender. Para se saber executar e repassar no futuro.

O momento, hoje, entretanto, exige que se possibilite, muito mais do que antes, conhecer. E conhecer não apenas para saber (um saber que se tranca a não sei quantas chaves, possivelmente em diversos “compartimentos” no cérebro, os quais não se relacionam, não se (inter)penetram), mas, principalmente, para comparar, associar, negar, rebater, propor mudanças, criar, gerar novas expectativas, viabilizar novas maneiras de se viver.
Para isso, dispensável é o apenas falar, o indicar uma estrada já percorrida e, portanto, “segura”, porquanto já descobertos suas saliências, seus atalhos e seus rumos; indispensável é propor desafios através dos quais os caminhos ao conhecimento sejam trilhados (com a segurança do que já se sabe, sem dúvida) para a conquista da superação em prol do bem-estar coletivo, não para o armazenamento simplório e acomodativo “do que já é, porque sempre foi; do que já há, porque sempre houve”. Em outras palavras, educação, hoje, como quase nunca antes, faz-se, em qualquer nível, por meio do diálogo, através da proposição de questões, mas sempre se respeitando as limitações e diferenças de cada um. Também o ensino de Língua Portuguesa assim deve ser.

Ferdinand de Saussure, considerado o pai da Lingüística moderna, no início do século XX, em seu Cours de linguistique gênêrale[2], expõe, no capítulo II, que a matéria da Lingüística são as manifestações da linguagem humana (...), considerando-se em cada período não só a linguagem correta e a ‘bela linguagem’, mas todas as formas de expressão. Mas isso já faz muito tempo, e o próprio Saussure, na realidade, não teve o tempo de vida necessário para organizar e divulgar, explicitar todas as suas preocupações sobre a língua e a(s) linguagem(ens), porém deixou um legado importantíssimo, levado à esfera pública por discípulos, os quais deixaram entrever, nessas palavras do mestre genebrino, que a língua deve ser analisada em todas as suas instâncias de expressão, em todos os seus veios de uso. Dele, ficou a lição, ainda hoje não aceita por muitos.

Por isso nossos ouvidos escutam perguntas tais quais Que é que você tá ensinando pros seus alunos?; E aí, não dá mais aula não?; Tá desensinando o que pros teus alunos? que não se assustam nem nos causam arrepios, a não ser pela ideologia e pelo preconceito escondidos por trás de cada uma delas, que na verdade foram construídas a partir de frases bem elaboradas, do ponto de vista lingüístico, considerando-se a informalidade predominante no discurso oral dos usuários da língua. Os estudos de Saussure abriram novos caminhos para a análise lingüística, e muitos outros lingüistas, seguindo diretamente seus passos ou não, passaram a buscar entender a língua sob outros prismas. Entre eles, o russo Mikhail Bakhtin, que desenvolveu estudos sobre os gêneros discursivos, a partir dos quais propôs que os usuários de uma língua usam-na na perspectiva comunicativa, desenvolvendo textos específicos a seus propósitos, textos estes que atenderão às exigências de gêneros também específicos. Eu provoco: há problemas nas perguntas elaboradas e expostas no primeiro parágrafo dessa introdução e repetidas no início desse nono parágrafo?


O ensino da Língua e os PCN

O que dissemos acima se configura como discurso de muita abrangência, pois certamente nele se percebem relações de alcance político, social, econômico, entre tantos outros que poderíamos aqui citar. É certo que, exatamente por sua amplitude, o discurso que desenvolvemos vai resgatar, também, o processo comunicativo humano e, por conseguinte, a utilização que é feita das linguagens criadas pelo homem, e por ele mesmo postas à disposição para tantos momentos especiais.
Não foi à toa, portanto, que Ruy Leite Berger Filho, Secretário de Educação Média e Tecnológica na gestão do ministro Paulo Renato Souza, expressou em seu texto de apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio que

O Ensino Médio no Brasil está mudando. A consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudanças na produção de bens, serviços e conhecimentos exigem que a escola possibilite aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho. (PCN, Bases legais. p. 5)

Abrindo com essas palavras texto que compõe as Bases Legais que justificam os PCN, Ruy Leite Berger Filho assinala que não há mais explicações sustentáveis para se ter no Brasil ensino não condutor dos estudantes a se inserirem como cidadãos na sociedade; ao contrário, destaca a necessidade de promovê-los socialmente, repletos de conhecimentos amplos, conscientes de suas aptidões, obrigações e direitos, munidos não somente de conhecimentos escolares (ou acadêmicos).
Tornar cidadão um estudante de Ensino Médio, então, implica necessariamente a adoção de prática educacional não limitadora, portanto o mais abrangente possível, na qual se contemplem estudos associados, interdisciplinares, trans-disciplinares a ponto de encaminhar o estudante à reflexão possibilitadora de compreensão eficaz sobre a sociedade onde deverá agir, atuar.

Nenhum estudo nesse sentido pode prescindir de conhecimentos lingüísticos. Os PCN reconhecem a necessidade de desenvolverem-se estudos lingüísticos amplos, integradores, inclusivos do jovem na sociedade em perspectiva cidadã, quando evidenciam, entre outras vertentes, a que propõe ser imprescindível ao aluno do Ensino Médio Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação. (PCN, Parte II. p. 6). E mais ainda, quando adiante destaca que o estudante do Ensino Médio deve ser bem conduzido nos estudos para saber

Utilizar-se das linguagens como meio de expressão, informação e comunicação em situações intersubjetivas, que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre os contextos e estatutos de interlocutores; e saber colocar-se como protagonista no processo de produção/recepção. (PCN, Parte II, p. 10).

Certamente foram, os PCN, influenciados, em sua composição, pelas pesquisas do estudioso russo (que se preocupou em investigar os gêneros discursivos produzidos na sociedade), além dos estudos realizados pela Sociolingüística. Essas investigações encaminham qualquer inquirição sobre a língua para uma perspectiva mais ampla, não restrita aos limites da norma gramatical, contudo viabilizando focos vários, incluído o que tem por objeto os textos, superando-se, assim, o nível limitado das frases, e alcançando as produções cotidianas, orientadas por contextos específicos gerados por necessidades de comunicação.
É nesta ampla perspectiva que entendemos não ser possível aceitar a idéia de que somente o “professor de Português” seja o responsável pelo ensino de nossa língua materna. Entendemos que a responsabilidade do ensino de Língua Portuguesa (estamos no Brasil e ela ainda é a língua oficial por estas paragens)[II] é de todos seus usuários, mas, principalmente, de todos aqueles que trabalham em educação, inquestionavelmente, daqueles que atuam em salas de aula, mantendo, portanto, contato direto com seus alunos.

Minha proposição não visa a nenhum lampejo de agressividade; antes, intenta propiciar alguma reflexão acerca do assunto. É indiscutível que nesta sociedade inventada no final do século XIX, tornada robusta no século XX e, agora, cada vez mais implementada neste começo do XXI, nenhum conhecimento se dá de forma compartimentada, desmembrada, isolada, sem nenhuma relação com qualquer outra área em que ele se faça presente. E provocamos novamente: faz-se algo, qualquer que este seja, sem se ter conhecimento? Adquire-se o conhecimento por algum meio que despreze, que ignore qualquer mecanismo de linguagem?

Além do mais, é insistente o apelo diário para que o cidadão aprenda a interpretar a sociedade, a fim de que nela possa estabelecer-se de maneira digna e com atuação que repercuta positivamente em todos os seus rincões. Tal exigência conduz o cidadão, mesmo que inconscientemente, a aproximar-se das descobertas científicas, dos avanços tecnológicos, dos fatos sociológicos, dos pensamentos filosóficos, das determinações políticas, das prescrições legais etc. Nas salas de aula, todo esse rol de conhecimentos é exposto aos estudantes pelos seus professores, cada um dentro de sua especialidade. Mas indagamos: as especialidades, hoje, fecham-se em si mesmas? Debate-se, atualmente, nas aulas de Química do Ensino Médio, sobre alguma composição ou reação química sem que se proponha alguma relação com a vida das pessoas? No mesmo nível de ensino, Geografia e História são matérias permissivas de análise sem associação com o universo do estudante? Lembremos que, não faz muito tempo, os estudos de Geografia eram voltados quase que exclusivamente para as questões espaciais e demográficas – hoje, a tendência é explorar a Geografia humana relacionada às outras vertentes de análise –, e os de História privilegiavam o que se encontrava distante (no tempo e no espaço) do contexto do aluno. Apenas exemplos, dentre tantos outros.

No Ensino Superior, pode-se empreender algum estudo sobre lei penal, por exemplo, sem discuti-la quanto a seu alcance social? Cremos que a resposta de quem está acompanhando o desenvolvimento de nosso raciocínio será NÃO. Uma lei – qualquer que seja ela – não mantém algum contato com princípios filosóficos, éticos, morais?
E exatamente nesse instante, entendemos que possa alguém se lembrar de que qualquer estudante, para fazer algum curso – superior ou não –, precisará ter desenvolvido habilidades de leitura e de escrita, e que ambas, tradicionalmente, são orientadas por professores “especialistas” em Língua Portuguesa.
Aceito o argumento. Parcialmente. Se você que me lê agora é também professor, teve suas habilidades de leitura e de escrita desenvolvidas ao longo de todos os anos em que se deu sua formação. Aprendeu a ler e a escrever. Agora chegou seu momento de ensinar! Não somente Filosofia, ou Sociologia, ou Psicologia, ou Marketing, ou Direito Civil, ou Matemática Financeira, ou Algoritmos, ou..., mas, inquestionavelmente, a ler, a pensar, e a expressar.

Visualiza-se, então, a premissa de que todo e qualquer estudante, de qualquer curso, independente do nível em que estiver, sempre precisará de orientações de seus professores. Toda e qualquer interferência de um professor no processo de aprendizagem de seu aluno não pode prescindir do processo da leitura e do processo da escrita. De ambos! Assim, a responsabilidade quanto ao aprimoramento no trato, no uso da língua é de todos, não somente de um. No Ensino Superior, então, onde os cursos já quase não apresentam disciplinas voltadas para o estudo específico sobre aspectos das linguagens[III] (apesar da grande exigência quanto à leitura e à produção de textos em diversas áreas, muitos do âmbito científico e / ou acadêmico), é imprescindível que esse trabalho seja realizado por todos os que lecionam alguma disciplina.
AZEREDO (2005) alerta para a necessidade de um trabalho multidisciplinar relacionado aos usos da língua, defendendo, obviamente, o aspecto social que ela possui. Em seu texto, na seção que intitulou Ensino da língua – uma tarefa da escola, transcrevendo trecho dos PCN, resgata a esperança que se tem de que os estudantes do Ensino Fundamental, ao concluírem os estudos pertinentes às oito séries deste nível, estejam competentes o suficiente para terem acesso e participarem plenamente do mundo letrado.
Após o resgate que fez, o próprio Azeredo posicionou-se:

Seria ingênuo acreditar que objetivos tão ambiciosos possam ser alcançados tão-somente graças à atuação dos professores de língua portuguesa e de literatura brasileira, por mais competentes, talentosos e dedicados que eles sejam. A ‘competência’ a que se referem os PCN não pode ser tratada como objetivo de uma única área de conhecimento – no caso, a Língua Portuguesa e as respectivas literaturas –, pois este é o objetivo de toda a educação fundamental. A formação escolar consiste no processo pelo qual os indivíduos adquirem e constroem conhecimentos em diversas áreas do saber e para os mais variados fins da atividade sociocultural, mas é preciso ter sempre presente um fato: os conhecimentos não são abstrações silenciosas; eles só existem como criação humana à medida que se socializam nas formas que os expressam, entre as quais se destaca a palavra. (AZEREDO, 2005. p. 35 – 36).

Os PCN que norteiam todo o processo de ensino-aprendizagem do Ensino Médio apresentam o mesmo encaminhamento. E não poderia ser diferente, posto que os conhecimentos, verdadeiramente, não são estanques, e carecem de maturidade para as devidas associações e compreensão. Ora, se tudo isso vale para o ensino básico formal, como não entendê-lo para as necessidades do Ensino Superior, observadas as disciplinas de qualquer curso?


Ensino da Língua em faculdades e universidades

Quero ousar um pouco: os erros de “português”, cometidos por estudantes e apontados por professores (fiz sutil referência a esses erros no primeiro parágrafo da introdução), ocorrem, via de regra, no âmbito da gramática normativa e dos registros ortográficos. Ou seja, costumeiramente, as questões levantadas por colegas vislumbram a prática, o uso “errado” do nível de linguagem conhecido como padrão. Em outras palavras, esses “erros” põem-se na esfera das concordâncias e regências, das flexões verbais, das colocações pronominais, da acentuação gráfica, da pontuação gráfica, da escrita de vocábulos.
De fato, conforme se sabe, a linguagem padrão destaca-se por identificar-se com o nível de linguagem mais focalizado pela escola, qualquer que seja ela. Além desse nível, também há grande preocupação com o culto. Estes dois níveis, historicamente, ganharam a condição de “linguagens de prestígio”, e esse status foi alcançado por meio da eleição de ambos pelos representantes de maior poder nas classes sociais de maior... prestígio!
Em concordância conosco encontramos o pensamento de Scherre, que exemplificamos através da citação abaixo:

A história da humanidade revela que certo e errado são noções relativas. Todavia, no dia-a-dia, por razões diversas, convivemos com estas noções como se fossem valores absolutos, portadores de verdades inerentes e, até, imutáveis. Esse sentimento toma uma dimensão fora do comum quando se trata de questões que envolvem a linguagem. De forma geral, as pessoas crêem que há uma língua estruturalmente mais certa do que outra, que há um dialeto mais certo do que outro ou que há uma variedade mais certa do que outra, e poucos percebem que as formas consideradas certas e/ou de prestígio são as que pertencem à língua, aos dialetos ou às variedades das pessoas ou grupos que detêm o poder econômico ou cultural. (SCHERRE: 2005,15)

Ora, em nossa mentalidade colonizada, não se abriu, ainda (embora acredite que isso esteja acontecendo, posto que devidamente também proposto nos PCN), o espaço necessário para se aceitar o fato de que em sociedade não há apenas uma possibilidade lingüística, porém diversas realizações de linguagem, concretas, efetivas, suficientes a seus contextos específicos. Os estudos da Lingüística – em todas as suas disciplinas e outras ciências afins – pelos vários cantos do mundo provam, quase de um século para cá, a diversidade de usos de uma mesma língua, por um mesmo povo. Não poderia ser diferente em terras tupiniquins.
Assim é que está prevista, nos PCN, abordagem sobre linguagens no sentido de que deve haver observação crítica sobre seu acontecimento, considerando as condições evidentes de uso:

Por exemplo, no estudo da linguagem verbal, a abordagem da norma padrão deve considerar a sua representatividade, como variante lingüística de determinado grupo social, e o valor atribuído a ela, no contexto das legitimações sociais. Aprende-se a valorizar determinada manifestação, porque socialmente ela representa o poder econômico e simbólico de certos grupos sociais que autorizam sua legitimidade.
(...)
O conhecimento sobre a linguagem, a ser socializado na escola, deve ser visto sob o prisma da mobilidade da própria linguagem, evitando-se os apriorismos. O espírito crítico não admite verdades sem uma investigação do processo de sua construção e representatividade.
O exame do caráter histórico e contextual de determinada manifestação da linguagem pode permitir o entendimento das razões do uso, da valoração, da representatividade, dos interesses sociais colocados em jogo, das escolhas de atribuição de sentidos, ou seja, a consciência do poder constitutivo da linguagem. (PCN, parte II, p. 7)

Quero, nesse instante, antecipar-me àqueles que estão vendo em minhas palavras uma atitude irresponsável quanto à utilização da língua brasileira pelos falantes brasileiros, principalmente pelos estudantes a quem devemos orientar. Entender minhas palavras como permissividade total e absoluta para qualquer registro, de qualquer maneira, asseguro, constitui leitura equivocada do que está, lentamente, sendo proposto. Na verdade, o que defendo nesse momento é o fato de que reconheço a diversidade lingüística como traço cultural de qualquer nação cuja língua oficial pode ser entendida como “natural”. Em terra brasilis essa natureza é real, concreta.

Reflitamos: os professores utilizamos sempre o mesmo nível de linguagem em nosso processo comunicativo? Será verdade que jamais abrimos mão do conhecimento agregado sobre a língua formal que adquirimos durante todos aqueles anos em que estivemos nos ensinos Fundamental e Médio? Não nos empertigamos diante de um superior ou de uma outra autoridade? Não relaxamos frente a frente com amigos de muito tempo, com quem falamos familiarmente e a quem contamos anedotas? Desportistas, não xingamos as progenitoras dos árbitros esportivos? Se poetas não exploramos significados não primordiais das palavras? Se humoristas, não levamos o público ao riso, através de ironias e duplos sentidos buscados a partir da utilização de vocábulos e expressões representativos? Se políticos...
O que tudo isso pode significar? Vejamos, a título de citação, apenas, o que expõem alguns manuais voltados ao estudo de Português e que ostentam títulos como Português instrumental (ou similares, bastante utilizados no Ensino Superior): Níveis de linguagem: culto, padrão, formal, informal, técnico, literário, vulgar, coloquial, falado, escrito etc. Alguns desses poucos níveis exemplificados acima são apresentados ao aluno dos ensinos Fundamental e Médio durante os vários anos de sua formação básica – principalmente, o culto, o padrão, o formal, o literário, o “escrito” –, sendo, portanto, já do conhecimento dos estudantes universitários, antes mesmo de eles adentrarem os portões das escolas voltadas para o Ensino Superior. Normalmente, recebem importante reforço sobre tais temas nas aulas voltadas ao estudo da língua nas disciplinas que compõem os semestres básicos nas faculdades e universidades.

Os discentes, portanto, sabem que fazem uso da língua de diversas maneiras, orientados naturalmente por força de contextos específicos. Sabem, eles, intuitivamente (alguns até de maneira bastante consciente), que quase nunca há “erro” nos processos comunicativos que realizam. Esta consciência deve ser de todos os usuários de uma dada língua, incluídos, entre eles, nós que somos professores.

Dessa consciência, creio, advirá uma outra postura do docente em relação ao discente, e vice-versa, no que se refere a uma necessária distensão no trato comunicativo entre os dois grupos, o que possibilitaria uma maior aceitação de registros de linguagens não-acadêmicas, em ambientes acadêmicos, mas em horas, digamos, não-acadêmicas. Em outras palavras, como mecanismo mesmo de conscientização acerca das possibilidades de utilização da língua, devemos, os professores, ter atitude estimulativa da reflexão sobre esses usos, orientando, então, de fato, os alunos para o adequado registro lingüístico em situações realmente adequadas. Dessa forma, nós, professores, poderíamos nos sentir mais à vontade – será que já não é fato isso? – em nossas aulas para falarmos gírias, para dizermos leves e breves anedotas, para nos dirigirmos aos estudantes através de coloquialismos (lembremo-nos da insistente expressão não-normativa a gente, das marcas de discurso oral tá e né sempre presentes), por exemplo.

Repito: não estou, de forma alguma, defendendo o anarquismo lingüístico[IV]. Antes, quero promover (enfatizo) reflexão acerca das várias possibilidades de uso de uma língua que é riquíssima em suas variações, que é alegre em suas possibilidades, mas que, infelizmente, tem servido bastante à segregação socioeconômica e cultural. Entendo que devemos ter postura compreensiva aos nossos alunos quando não satisfazem o registro da linguagem padrão que muitas vezes nós mesmos não pomos em prática; mas compreender não significa simplesmente aceitar, permitindo que o aluno entenda que não há equívoco onde equívoco há.

Toda ação educativa é processual. Quem adentra pela primeira vez uma academia não deve ser tido como acadêmico, mas deve ser formado acadêmico. Assim, percebendo, reconhecendo, questionando, formulando e, finalmente, orientando, o professor terá cumprido sua missão de educar. Por nossa abordagem aqui, especificamente, educar para o uso da língua. Questionamos: no Direito, a linguagem com que se elabora uma Petição Inicial será igual à que servirá para a confecção de uma Procuração ou até mesmo um simples Requerimento?; em Administração, os usos lingüísticos na disciplina Marketing serão os mesmos de utilização na disciplina Administração Gera?; e em Ciências Contábeis, qual delas prevalece na disciplina Contabilidade Pública?; fecham-se os estudos em linguagem em Sistemas de Informação nos limites da linguagem padrão?
A complexidade lingüística supera, e em muito, as falhas ortográficas e gramático-normativas. Ela se precipita sobre o próprio ato de composição do processo comunicativo. Por isso, todo e qualquer professor, independente da área em que atua, deve ser também orientador sobre os usos adequados das linguagens, uma vez que as põe em prática – também é usuário delas – e que delas necessita para comunicar-se com seus alunos no processo ensino-aprendizagem nas disciplinas que leciona. O estudo da língua também pressupõe processo de aculturação, espaço de aculturação, maturação frente ao objeto em que algo é questionado. Se exijo de meu aluno a produção de um texto que atenda à perspectiva de um artigo científico, devo orientá-lo para que observe não somente a estrutura formal que o gênero exige, mas devo também ajudá-lo na seleção do registro lingüístico mais adequado para a ocasião. Se é para avaliar em textos dos alunos aspectos gramático-normativos, ortografia, pontuação, acentuação gráfica, por exemplo (e, reconhecemos, um gênero de âmbito acadêmico não pode prescindir de uma escrita mais rigorosa), que isso seja feito também por quem não leciona linguagem(ns), mas gostaria que seus alunos dela(s) fizessem uso de maneira adequada e irrepreensível.

Conclusão

As idéias aqui defendidas, sabemo-las causadoras de algum desconforto, posto que ainda polêmicas, porquanto os estudos sobre as linguagens despertarem resistências em muitos setores da sociedade, destacadamente naqueles com maior proximidade dos privilégios permitidos à elite. Entenda-se, entretanto, que o espaço buscado para sua veiculação foi o de periódico de Academia, lugar de excelência para a geração e proliferação de idéias, que podem ser combatidas, negadas, desautorizadas até, utilizando-se do mesmo expediente. Idéias e opiniões devem ser confrontadas com... idéias e opiniões. Será bastante salutar, portanto, a utilização das páginas desta revista, em números futuros, para a ampliação dos debates necessários acerca de tudo o que foi exposto acima.
A instituição que abriga a RFC, bem como cada um dos profissionais diretamente ligados ao trabalho que se promove em benefício dos discentes, e também estes, certamente terão um ganho insofismável em sua possibilidade de compreender – e utilizar – melhor nossa língua materna, a qual nos possibilita, a cada instante, a busca da comunicação com os semelhantes. E que, mais ainda, dá-nos a condição de não sermos apenas indivíduos, mas permanentemente cidadãos.
De resto, o que ainda se nos apresenta no instante de finalização desse texto é a certeza inequívoca de que a reflexão necessária a respeito do que aqui se tratou permitirá a abertura consciente e responsável do leque de possibilidades para o uso da língua por quem a usa no trato cotidiano, ou seja, todos nós; ademais, no momento em que se enfatizam apelos com o fim de promoverem-se ações viabilizadoras da construção de uma sociedade mais livre, mais humana, mais honesta, mais ética, será sapiência reconhecer – para compreender e pôr em plano de execução abalizada – que no Brasil, o Português... ou, melhor, o Brasileiro, são vários.

Abstract

Since the publication of the law that established the New Directrixes and Bases to the National Education and of the National Curriculum Parameters about the elementary and secondary school, the study of Portuguese language in Brazil must not focus only in the pattern and cult languages. In fact, the education of maternal language must include all types of brazilian languages, allowing studies about all modifications in the language, so the students can improve their knowledges to become citizens. Because of it the teaching of maternal language can’t be taught only by professors of the portuguese language, but by everyone that uses it and mainly of those that teach, not depending on the disciplines they teach .


keywords

Portuguese Language. Teaching. Linguistics Variations. Brasilian Language. Teaching Responsability.

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Publicado por: Francisco Sérgio Souza de Araujo

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