Infância e lugar - Infância em um sítio no Sul de Minas
Um texto sobre uma infância em um sítio no sul de Minas.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Em um quarto grande, num sítio no interior de Minas...
_Vovó, meu nariz está todo preto por dentro!...
_Venha aqui, filhinha, eu limpo para você, é assim mesmo, quando a lamparina fica acesa a noite toda vocês ficam de nariz preto.
Lamparina: Espécie de lampião pequeno, feita de latão com um pavio de corda que conduz a querosene de dentro da lamparina para fora e pode ficar acesa a noite toda. O problema é que quando está acesa, solta uma fumacinha preta que penetra pelo nariz da gente e o deixa pretinho, pretinho!
Mas como era bom acordar naquele lugar!!!
Refiro-me de um sítio, próximo da cidade, onde tudo era lindo e cheirava gostoso. Há bem mais de trinta anos atrás ainda não tinha energia elétrica naqueles lados. Nem postes com lâmpadas acesas na noite. O povo que por lá vivia acostumara-se a seguir a lua cheia. Era a única luz que tinham nas noites escuras. Em casa, somente lampiões e lamparinas.
Na frente da casa tinha um jardim muito bem cuidado pela minha avó. Tinha um caminho, que nós chamávamos de trilho e que todos os dias era limpo com vassoura feita por ela mesma, com galhos secos. Do outro lado da casa tinha outro trilho para quem vinha de trem e a linha do trem passava logo acima da casa da vovó. Meu avô era aposentado da antiga “Companhia Mogiana de estradas de Ferro”, e logo depois do sítio tinha uma estação onde o trem parava para ele descer e então voltava o caminho para casa andando.
Em frente à porta da cozinha, alguns metros para baixo, ficava o paiol, um cômodo para guardar a colheita, sempre cheinho de milho, já seco, usado para alimentar as galinhas. Do lado do paiol ficava o “giral”, nome dado a uma espécie de mesinha de madeira, com as pernas compridas e bem altas; entre as quatro pernas ficava uma enorme bacia cheia de água para as galinhas beberem; em cima do giral minha avó colocava milho para secar, mandioca que apanhava no quintal, abóboras recém colhidas, etc.; era um aparador para tudo que vinha da horta. Na hora de jogar milho para as galinhas dava até briga entre eu e meu irmão mais velho.
Só nós dois podíamos passar as férias todinhas no sítio da vovó. Meu outro irmão caçula, por ser menor, não ficava com a gente, voltava para casa com minha mãe. Tínhamos os dias inteirinhos para brincar, pular, subir nas mangueiras e nos isolarmos na nossa “prainha” particular.
Nos fundos das terras do sítio passava (ainda está lá) um pequeno rio. Naquela altura do sítio seu fluxo era menor, quase um córrego, e formava montes de terra dentro do leito. Nós dizíamos que eram ilhas. Para atravessar da margem do rio para a ilha segurávamos em um bambu grosso e firme e pulávamos jogando o corpo todo. Dava certinho, caíamos em cima da ilha. Lá a gente ficava horas, conversando e sonhando com o que iríamos fazer quando crescêssemos.
Próximo a este sítio tinha vários outros. As crianças que moravam por lá já sabiam que todo ano nós vínhamos passar as férias e ficavam esperando ansiosamente para brincarmos de soltar pipas, pular corda, de cobra-cega, para subirmos em árvores e outras tantas brincadeiras gostosas. Sem contar quando vovó fazia boizinhos de chuchu e de abóbora.
Nós dois éramos da cidade e sempre tínhamos muita coisa para contar e para ouvir dos amiguinhos de lá. Sentávamos-nos em frente ao fogão de lenha da vovó, (isto quando não sentávamos na própria “trempe” do fogão), por causa do frio de Julho e ali ficávamos horas ouvindo minha avó contar histórias de assombrações e fantasmas, de bruxas e fadas, coisas que ela ouviu da avó dela e modificava um pouco para nós; sempre com três ou quatro lamparinas acesas e as brasas fumegantes do fogão de lenha. Às vezes ela resolvia cantar para nós e com a voz rouca começava a cantar o, “Terezinha de Jesus”, ou ainda, “Mamãe, mamãe, mamãe, avental todo sujo de ovo, mamãe...” e várias outras cantigas lindas. Geralmente essas histórias e cantigas eram acompanhadas de tigelas de arroz-doce, broa de milho e doce de batata-doce. Nas noites de sábado, minha mãe ficava com a gente e ajudava vovó a cantar fazendo cafuné na minha cabeça.
Nas noites de Sexta-feira Santa era uma loucura!! No silêncio da noite escura só se ouvia o som das “matracas”, objeto feito de madeira que batendo provocava um barulho estranho. Quem tocava as matracas na sexta-feira eram os homens encapuzados com panos pretos e acompanhados das mulheres, também com a cabeça coberta de preto e velas acesas. Iam cantando um canto fúnebre e triste. No meio da noite só se via o brilho das velas acesas. Eram os caçadores de Cristo, e contava a lenda que quem saísse na porta de corpo inteiro morreria. Eu quase morria era de medo! Não entendia o que era aquilo! Não via a hora de o dia amanhecer.
Na Sexta-feira Santa não se varria a casa, não podia trabalhar. Era preciso tomar cuidado para não machucar nas brincadeiras, pois “Jesus havia morrido” e não olharia por nós. No sábado da aleluia, cuidado! Todas as artes (travessuras) que fizemos durante a quaresma poderiam ser descontadas neste dia. Era o dia de “arrancar aleluia”.
Estávamos saindo do mês de maio, após a semana santa e de vez em quando minha avó gritava para sairmos na frente da casa para ver os balões subindo. Ainda não se falava em proibições. Apesar do perigo, como era lindo vê-los subindo nas noites escuras, totalmente iluminados!!
No mês de Junho os “meeiros”, homens que plantavam no sítio de “ameia” (dividindo ao meio a produção) com minha avó, vinham montar a fogueira. Vovó já idosa, já não tinha mais meu avô, então combinava com aqueles homens e a tarefa do plantio ficava por conta deles, nas terras dela. Tudo que a terra dava era dividido. E nas festas juninas toda a comunidade daquele lugar participava e ajudava. A festa era sempre no sítio da vovó.
O preparo era trabalhoso. Nós já “fazíamos a festa” com a preparação da festa. Pães, roscas, broas, bolos de todos os tipos, tudo assado no forno de lenha; pipoca, canjica, milho verde, docinhos de pedaço (feitos com leite purinho, vindo das fazendas onde se distribuíam, gratuitamente, o leite da Sexta-feira Santa), e o mais importante: o “quentão”, (bebida feita com cachaça, gengibre, cravo, canela e açúcar). Tinha também o famoso vinho quente, outra bebida à base de vinho tinto colocado em uma calda quente de açúcar com canela e cravo, uma delícia, mas nós, crianças, só podíamos olhar.
O que considerávamos mais “chato”, pois não tínhamos ainda a noção da importância da oração, era ter que esperar a reza de todos os terços (o rosário todinho!!), pois se rezava para os três santos: Santo Antônio, São João e São Pedro. E na hora de levantar o “mastro” (tronco de madeira fincado no chão, bem alto, onde eram colocadas as imagens dos santos), as meninas deviam jogar com as mãos um punhado de terra no buraco onde ia ser colocado o mastro para “arrumar bom casamento”.
Minha avó ficava feliz ao fazer as famosas “matulas” (enrolados de pano onde se colocava de tudo que tinha na festa), sobras de bolos, doces, roscas, etc. que ela fazia questão que todos levassem para casa. Dizia:
-“Leva cumadre, ocê não trouxe o Zezinho. Ele pode ficar com vontade”.
No outro dia, nós corríamos a preparar argila e moldar qualquer coisa que dessa na cabeça, bonecos, casinhas, carrinhos, porque o forno, que fora usado para as quitandas, estava cheio de brasas e podíamos usá-lo para queimar nossas “esculturas de barro”. Sempre chegávamos à cidade com caixinhas cheias de esculturas de argila. Eu tenho algumas até hoje.
Também me lembro nitidamente dos “benzimentos”. Quando eu ficava com dor de barriga ou alguma coceira estranha no corpo e minha avó não queria chamar minha mãe na cidade, então ela chamava a “Sinhana”, mistura de Sinhá e Ana.
Era uma senhora negra, bem gordinha, da cabeça branquinha, que todos diziam ter sido escrava. Parece que escuto a voz dela, macia, dizendo baixinho: “O que é que eu corto, minha fia?” E ela mesma ensinava a responder: “Cobreiro, sapeiro, aranheiro, assim mesmo eu corto” e isso era repetido três vezes e ia cortando um talinho de couve com uma faca enorme! Rezava baixinho e fazia o Sinal da Cruz várias vezes. Acho que eu obedecia de medo. Não sei explicar, a dor de barriga ou a coceira iam embora. Mas ela não saía sem aconselhar minha avó:
_”Cumadre, faz um chá de hortelã, misturado com erva-doce bem morninho e dá para ela. Pra essa coceira, faz um chá de ‘picão’, côa num paninho limpinho e branco vai passando no braço dela pela vorta do dia (ela queria dizer durante várias vezes no dia). Ocê vai vê que amanhã ela num tem mais nada!!”
Quando minha mãe e meu pai retornavam nos fins de semana para nos buscar, tínhamos muita coisa para contar, e, normalmente, não queríamos ir embora para a cidade. As férias na minha casa não tinham graça. Eu não tinha brinquedos caros e não saía para lugar algum. Só podia brincar na porta de casa, sob a supervisão de minha mãe, pois “cidade é perigoso”, mesmo sendo cidade pequena e no interior. A minha paixão na cidade era a escola. Sempre adorei estudar, então, férias, já que não tinha escola, eu queria era ir para o sítio.
Da idade de cinco até os doze anos passei as férias, fins de semana e feriados do lado de minha querida avó. Foram tempos maravilhosos, principalmente quando minha mãe deixava levar para o sítio alguma colega da cidade. Eu me sentia muito importante mostrando a ela tudo que tinha na roça, desde os animais, as árvores frutíferas, onde eu subia com orgulho pelos galhos, até as flores, o rio, a ilha, os porcos no chiqueiro, o ferro de passar com brasas dentro, o milho verde assado no braseiro, a batata doce assada junto com o milho, tudo delicioso! O contrário do que se faz hoje. Os meninos da cidade encantam os da roça com as coisas modernas, e os deixam frustrados por não terem nada daquilo.
Eu só ficava triste no dia marcado para matar o porco. Não saía do quarto enquanto a vovó não chamava. Quando eu ia para a cozinha já via aquele enorme pedaço de carne sobre a mesa, sendo retalhado pelas vizinhas, minha avó e minha mãe, enquanto meu pai e os outros homens lavavam o lugar onde mataram o coitado. Era um tal de dividir com todo mundo. A minha tarefa e de minha amigas, as meninas da vizinhança, era levar pelos vizinhos do sítio os pedaços que minha avó mandava.
Tempos de muita fartura!!!
Depois cresci e percebi que na cidade tem lojas, shoppings, cinemas, praças, festas e para desgosto da vovó nem eu nem meu irmão queríamos mais ir para o sítio. A gente ia de manhã com toda a família e voltava à tarde. Os compromissos eram outros. Os trabalhos da escola, as reuniões, as amigas, o namorado, o cinema, etc. Tudo isso concorria com minha avó que ficava cada vez mais sozinha.
Finalmente, a família achou que a vovó estava muito só, que ficaria melhor na cidade, ficaria mais fácil para nós, com nossa falta de tempo “olharmos” por ela. Depois de muito pensar ela se mudou para a cidade. Parecia bem, mas de vez em quando seu semblante mudava e seu olhar entristecia. Quem plantava de tudo, passou a comprar “na carrocinha”. Ela não gostava disso. Tinha dificuldades até em acender o fogão a gás! Então passou a cozinhar em fogão à lenha, na cozinha do fundo, como era seu costume.
Mas não deixava de agradar os netos com os quitutes que gostava de fazer. No fogão à lenha continuou a fazer os bolos deliciosos que eram assados de uma maneira diferente: Vovó colocava a assadeira com a massa do bolo em cima da trempe do fogão, com brasas em baixo e uma tampa cheia de brasas vivinhas em cima da assadeira. O bolo crescia e assava de ficar douradinho, uma delícia!
O “lugar de nossa infância”, o sítio da minha avó, tornou-se apenas lembranças boas, para nós e para ela. Os netos a distraiam e a ajudavam a se acostumar na cidade, assim como a família ao seu redor.
Algum tempo depois não tínhamos mais o “lugar de nossa infância”. O sítio ainda existe, mas não é mais o mesmo. Com tudo moderno nada sobrou para nos lembrarmos, a não ser o que me vai, verdadeiramente, na memória.
Professora, Empresária, Especialista em Educação Infantil pela UFJF e também Pós Graduada em Mídia e Deficiência pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Mg. Pós-Graduada em Arte, Cultura e Educação, na UFJF.
Publicado por: Sonia Oliveria Silva
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