Desafios da Alfabetização no Sistema de Ciclos e nos Projetos de Correção de Fluxo Idade X Série nas Escolas Municipais do Rio de Janeiro
Prática pedagógica do professor alfabetizador, em conjunto com as políticas públicas no âmbito das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, destacando os Projetos de Correção de Fluxo de Idade X Série como exemplo de sucesso na alfabetização.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Resumo
Este artigo pretende promover reflexões a cerca da prática pedagógica do professor alfabetizador, em conjunto com as políticas públicas, no âmbito das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, destacando os Projetos de Correção de Fluxo de Idade X Série como exemplo de sucesso na alfabetização. Destaca as particularidades do sistema de ciclos e aprovação automática, suas implicações na eficácia da alfabetização e propõem a discussão em torno da postura adotada pelo professor em sua praxe, a necessidade da formação continuada do docente, bem comoa importância da gestão escolar no processo de mudança para que a escola seja transformadora e não reprodutora das desigualdades.
Palavras-chaves
Alfabetização; Ciclos; Projetos de Correção de Fluxo
No âmbito da Educação Pública do Município do Rio de Janeiro a alfabetização é normatizada que aconteça em um ciclo que corresponde a três anos, que equivaleria no sistema seriado, do 1º ao 3º ano de escolarização básica. A opção pelo sistema de ciclo se sustenta pelo entendimento de que cada criança aprende em um tempo, e que não cabe a reprovação se o processo de alfabetização não está concluído.
No entanto, a prática é diversa da teoria. Há na verdade uma aprovação automática do aluno do 1º para o 2º ano e deste para o 3º ano, ainda que o processo de alfabetização não esteja dentro do esperado para todos os alunos. Assim sendo, ao final do 3º ano, se tem um acentuado índice de reprovação, posto que somente os que estão alfabetizados estarão aptos a cursar o 4º ano, expondo uma defasagem que vem se acumulando por todo o ciclo de alfabetização. Com a reprovação sucessiva no 3º ano e a consolidação do fracasso escolar dos alunos que em mais de 4 anos no ciclo de Alfabetização não conseguiram adquirir o código da linguagemescrita, gera-se a distorção de idade X série, que o município do Rio de Janeiro busca solucionar a partir dos projetos de Correção de Fluxo, tais como “Nenhuma Criança a Menos” e” Aceleração”.
Há que se destacar a situação individual do sujeito da aprendizagem, o aluno, que presenciou seus colegas aprendendo a leitura e a escrita por pelo menos 3 anos e não conseguiu atingir esse mesmo objetivo. Evidentemente que se percebe o impacto desta realidade para a autoestima do mesmo, refletindo num conceito de menos-valiae do sentimento de incapacidade de aprender que supera, por vezes, o desejo de aquisição da leitura e escrita.
Na busca de solução para esse problema, muitas são as perguntas e talvez poucas as respostas. A primeira opção é a culpabilização do aluno. Excluindo um pequeno percentual que realmente tem comprometimentos neuropsicológicos incapacitantes para o êxito da alfabetização, a grande maioria dos reprovados tem sua defasagem de alfabetização justificada por sua condição social, familiar e comportamental. Nessa linha se pressupõem que a ausência da valorização da leitura no ambiente familiar, da participação em eventos culturais, como a ida a museus, cinemas e teatros, e do acompanhamento da família nas questões escolares, seriam fatores que comprometeriam de forma pungente a alfabetização do aluno. Muito frequente, infelizmente, é ouvir do grupo de docentes que o aluno não aprende porque “não quer nada” ou porque “só quer bagunçar”, seguido de um ponto final para a questão.
Quando falamos de alfabetização é preciso enfatizar que se tem nesse processo quatro forças, a saber: o professor, o aluno, a família e a escola. Essas forças podem ser somadas ou contrárias umas às outras, impactando no resultado final, a aquisição da linguagem escrita. Vamos avalia-las uma por vez.
Quando o aluno chega ao primeiro ano de escolaridade do Ensino Fundamental I, em geral ele já passou pela Educação Infantil, mas ainda que não tenha vivenciado essa modalidade de ensino, o aluno não é um ser que desconhece totalmente o signo escrito. A todo tempo lhe é apresentado esse código. Seja na televisão, na internet, no supermercado, nos out-doors, nos letreiros de ônibus, etc. A criança é capaz de reconhecer a marca do seu achocolatado, da bala, do biscoito. Reconhece os ícones dos aplicativos que utiliza no celular ou no computador. Portando ele, o aluno, faz sua leitura do mundo antes mesmo de adentrar à escola. Somente lá, no ambiente escolar, é que ele se dá conta do seu fracasso. Diante deste paradoxo, se debruçam os especialistas em educação, buscando respostas, justificativas, explicações e soluções, posto que a alfabetização é, antes de tudo, um direito do aluno, uma condição libertadora. Onde estaria então o “elo perdido” entre o saber trazido pelo aluno para a escola e o não saber institucionalizado que o rotula e o incapacita? A linguagem oral e o cálculo mental usado na compra do dia-a-dia, são competências comuns entre os alunos que tem dificuldades para concluírem a alfabetização, o que sugere que os fatores que dificultam a alfabetização não se sustentam em comprometimentos neuropsicológicos.
Os teóricos da Pedagogia, já nos trazem a reflexão da importância da aprendizagem significativa para que o aluno seja motivado a construir seu próprio saber, sendo sujeito de sua história, no entanto, a despeito disso, é comum entre os métodos de alfabetização a silabação, o famoso Ba-Be-Bi-Bo-Bu-Bão. Segundo Paulo Freire, “A leitura do mundo precede a leitura da palavra” e defende que alfabetizar vai muito além do ato de decifrar um código, sendo imprescindível a contextualização do processo de aprendizagem, devendo estar o mesmo diretamente ligado a vida prática e cotidiana do aprendiz que passa a analisar a aprendizagem criticamente como sujeito de seu próprio saber.
Nesse ponto, podemos e devemos questionar se o docente conhece a vida de seu aluno, se percebe e dialoga com suas lutas sociais, suas dificuldades familiares e econômicas, se há uma escuta. Como poderá o professor tornar significativa a alfabetização se desconhece seu aluno? Como fazer que o aluno automatize uma leitura contando com o treino em casa, quando talvez seja ele o único em sua família com essa possibilidade, ou exigindo dele estudos e trabalhos intermináveis de casa? Como esperar que a alfabetização ocorra a partir da participação da família se inúmeras vezes esta inexiste ou é negligente com a formação escolar do filho? Diante de tantos “nãos”, caberá ao professor desistir diante das dificuldades que encontra pela falta de estrutura familiar, social e econômica do aluno, sendo estes fatores externos impossíveis de se controlar no ambiente escolar? Será ele, o professor, mais um “não” para essa criança que tem o direito de ser alfabetizado? O professor, sabemos todos, muitas vezes é a única referência de cultura e saber para o aluno, não raro, o único “porto seguro”. Inúmeros são os professores que se dedicam profissional e pessoalmente para seus alunos, num trabalho de doação emocional mesmo. No entanto, embora se coloquem emocionalmente dispostos, na maioria das vezes encontram-se cristalizados em sua praxe. Um comportamento comum e esperado para aquele que tantos alfabetizou daquele modo, embora muitos tenham ficado pelo caminho... Será que o aluno deve se adaptar ao método usado pelo professor ou este deverá oferecer novos caminhos para que o aluno aprenda, seja de uma maneira ou de outra?
Neste conjunto temos ainda a escola, como cenário, como lugar de aprendizagem. A equipe gestora necessita, e deve, motivar seus professores para que estes trabalhem da melhor maneira possível, ainda que não tenham as melhores condições de trabalho. Toda a escola gira em torno do aluno. Tudo é para ele e por ele. A escola se justifica e se organiza assim. A função dos gestores é atuar como mola propulsora de mudança para que este ambiente alfabetizador permeie por toda unidade escolar, cuidando para que a escola seja transformadora da realidade social e não reprodutora das desigualdades que sustentam as diferenças e reduzem as oportunidades para grande parcela da população mais carente financeiramente.
A discussão que proponho é a do desafio à escola e ao professor no sentido de se reinventarem, já que a estes não é possível intervir diretamente nos fatores externos, embora influentes no processo de alfabetização, ou seja, na família e na condição social do educando. A mudança necessária deverá sempre acontecer na esfera em que se tem acesso, em outras palavras, na unidade escolar e na prática do professor. Atribuir o fracasso escolar ao aluno ou à família é eximir-se da sua condição de lugar de aprendizagem e de mestre.
Assim, nos projetos de correção de fluxo adotados pelo município do Rio de Janeiro, propõem-se uma dinâmica de trabalho inclusiva, de valorização do aluno, de motivação pessoal, para que cada aluno se sinta percebido, respeitado e incentivado por seu professor. Desenvolve-se a postura de acolhimento, de aceitação do outro, para somente então passar ao conteúdo programático. A partir do sentimento de pertencimento ao grupo, à turma, com a autoestima revigorada, ouvindo de seu professor que ele é capaz de aprender, a aquisição da leitura se tornará infinitamente mais fácil, pois há a disposição, o interesse e o compromisso de ambas as partes, aluno e professor. A leitura contextualizada, a realidade do aluno retratada, seu caderno de registro diários, seu próprio memorial, onde expõe o que sente, como percebe o mundo a sua volta, cria todo um ambiente alfabetizador que vai muito além de murais e apoios visuais.
Fazem parte desses projetos os alunos repetentes, e muitas vezes, aqueles que são os mais indisciplinados, embora este último atributo não seja requisito para estar nestas turmas. No entanto, não raro, as equipes gestoras agrupam os “alunos-problemas” nas turmas de projeto. O espanto é perceber que ainda assim estes alunos se recuperam, aprendem, passam a se comportar melhor, são mais asseados, mais comprometidos e terminam aprovados, alfabetizados. Porque então precisa-se chegar a este índice de reprovação para serem por fim alfabetizados? Serão as professoras de projetos detentoras de algum poder misterioso, já que conseguem alfabetizar aqueles que passaram por tantas mãos incólumes? São professoras especiais? De certo que sim. São professoras que se propuseram a atuar como facilitadoras do processo de aprendizagem e não mais detentoras do saber. São professoras que se reinventaram, que estudaram novas práticas pedagógicas, que se dispuseram a sair de sua zona de conforto para ofertar aos seus alunos novos caminhos, novas formas de aprender. São professoras que souberam se colocar no lugar do aluno, reconhecendo inúmeras qualidades neles onde antes só se viam dificuldades e indisciplina. Perceberam que “a aprendizagem não se processa paralelamente ao ensino. O que é importante para quem ensina, pode não parecer tão importante para quem aprende” ( Cagliari, 2009).
Quando a Secretaria Municipal de Educação se propõe a treinar esses professores para o desafio da alfabetização, reconhece-se a competência deste profissional para a tarefa, mas se admite a necessidade constante da prática profissional reflexiva e atualizada. O atual Secretário de Educação, Cesar Benjamin, reconhecendo a importância da alfabetização na idade certa, criou o “time de alfabetizadores” e vem desenvolvendo formações continuadas para capacitar esses profissionais na missão que se dispõem. Cabe neste momento a reflexão de cada professor alfabetizador sobre sua prática, da necessidade de mudança, de atualização, da busca constante do seu saber, colocando-se também como aprendiz, já que nunca saberemos tudo, a fim de construir junto com seus alunos uma alfabetização real, critica, significativa e inclusiva, para que o mundo se decodifique em texto para o deleite de cada aluno-leitor.
Referências Bibliográficas
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. 2ª ed.- São Paulo: Scipione, 2009.
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: Leitura do mundo, leitura da palavra. Tradução de: OLIVEIRA, Lólio Lourenço de. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
Viviane de Oliveira Coelho Montes, professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro, aluna do 8º período do curso de Licenciatura de Pedagogia, UERJ, Consórcio CEDERJ, Pólo Nova Iguaçu.
Publicado por: viviane oliveira coelho montes
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