Tradução e pós-colonialismo - experiência de tradução da obra de Fatou Diome
O tradutor de um texto inscrito no contexto de colonização necessita ter consciência das ideologias por trás dessa ocupação, a tradução de textos estrangeiros pode também refletir os objetivos ideológicos e políticos da língua de chegada.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
A TRADUÇÃO PÓS-COLONIALISTA
No que diz respeito à colonização, é comum que textos oriundos de países que passaram pelo processo de colonização possuam elementos de dominação. Quando se fala da exploração europeia na África, Ásia ou América, deve-se examinar o processo de colonização como resultado de um conjunto de ações que conduziram à ocupação de outras nações por meios militares, econômicos, culturais, lingüísticos e políticos.
O tradutor que se dispõe a tratar um texto inscrito nesse contexto necessita ter consciência das ideologias por trás dessa ocupação como o conceito de hierarquia, hegemonia, e dominação cultural. Esses vocábulos costumam aparecer, especialmente, em textos que foram escritos durante o período colonial e pós-colonial. A tradução de textos estrangeiros pode também refletir os objetivos ideológicos e políticos da língua de chegada. Para melhor exemplificar esse fenômeno, vejamos a tradução desta passagem do livro em que vemos a hegemonia da França permanecer apesar do fim da colonização histórica:
«Pourtant, la télévision montrait aussi d’autres grands clubs occidentaux. Mais rien à faire. Après la colonisation historiquement reconnu, règne maintenant une sorte de colonisation mentale : les jeunes joueurs vénéraient et vénèrent encore la France. à leurs yeux, tout ce qui est enviable vient de France. Tenez, par exemple, la seule télévision qui leur permet de voir les matchs, elle vient de France. Son propriétaire, devenu un notable au village, a vécu en France. Tous ceux qui occupent des postes importants au pays ont étudié en France. Les femmes de nos présidents successifs sont toutes françaises. Pour gagner les éléctions, le Père-de-la-nation gagne d’abord la France. Les quelques joueurs sénégalais riches et célèbres jouent en France. Pour entraîner l’équipe nationale, on a toujours été chercher un Français. Même notre ex-président , pour vivre plus longtemps, s’était octroyé une retraite française. Alors, sur l’île, même si on ne sait pas distinguer, sur une carte, la France du Pérou, on sait en revanche qu’elle rime franchement avec chance. »
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« No entanto, a televisão mostrava também outros grandes clubes ocidentais. Mas não adianta. Depois da colonização historicamente reconhecida, reina agora uma espécie de colonização da mente: os jogadores jovens veneravam e ainda veneram a França. Na visão deles, tudo o que é invejável vem da França. Veja, por exemplo, a única televisão existente na ilha para assistir às partidas de futebol vem da França. O dono dela morou na França. Todos os que têm um cargo importante no país estudaram na França. As mulheres dos nossos presidentes são todas francesas. Para ganhar as eleições, o Pai-da-nação conquista primeiramente a França. Os poucos jogadores ricos e famosos do Senegal jogam na França. Para treinar a seleção senegalesa, sempre se escolhe um francês. Até mesmo nosso ex-presidente, para viver mais tempo, tinha garantido a própria aposentadoria na França. Na ilha, mesmo se a gente não sabe distinguir, num mapa, a França do Peru, a gente sabe, em compensação, que França rima sem dúvida com bonança.» |
Durante o procedimento tradutório, existe uma rima que foi feita propositalmente pela autora entre “France” e “chance”. Para poder preservar o conceito de “prosperidade” e “sorte” francesas, foi proposto a rima de “França” com “bonança”, fomentando assim o estereotipo do sonho francês. Além da rima que estabelece esse estereotipo francês; a narrativa apresenta o efeito de dominação cultural na mentalidade dos habitantes do Senegal como foi ilustrado.
No que diz respeito a historicidade desses povos que vivem sob a influência de uma mentalidade pós-colonial. Tejaswini Niranjana, uma teórica indiana dos estudos de tradução pós-colonial, marca o início da discussão de tradução pós-colonial com sua obra intitulada Siting Translation (1992) ao relacionar questões de história, filosofia, poética e representação no contexto colonial. A proposta geral, com relação à tradução, é afirmar que, nos moldes em que abordava determinadas questões, a teoria da tradução não conseguia abranger as peculiaridades dos textos das ex-colônias. A autora traz inicialmente a questão da historicidade à tona. No Ocidente, ironicamente muitos alegam que os europeus trouxeram a civilização aos povos africanos, essa afirmação chega ao ponto de dizer que não havia nada antes da chegada dos europeus, aliás, as ex-colônias eram povos “sem história”, que passam a tê-la apenas após a colonização.
A VALORIZAÇÃO DO OUTRO NA TRADUÇÃO PÓS-COLONIAL
Segundo Niranjana, em um contexto pós-colonial, como é o da escrita de Fatou Diome, a problemática da tradução torna-se um local essencial para discutir questões de representação, poder e historicidade. Por muito tempo, a tradução e a antropologia compartilharam e ainda compartilham em alguma medida da função de trazer o Outro para dentro de uma outra cultura (normalmente mais hegemônica) por meio de um processo de domesticação dos elementos que o compõem que são estranhos ou “selvagens”; dessa maneira, muito do conhecimento que temos do Outro é um entendimento que tende para uma redução ou simplificação, o qual não compreende o Outro em seus próprios termos. Wang Hui destaca esse aspecto no seguinte trecho:
A recusa de ver culturais não-ocidentais em seus termos apropriados é manifestada na própria tradução ou na crítica: tradutores orientalistas podem se sentir forçados a representar a visão dos nativos na parte principal da tradução, mas eles são raramente temerosos ao transformar o espaço paratextual – prefácios, introduções, notas, apêndices, e assim em diante – em um espaço de colonização em que as diferenças culturais são interpretadas com marcas de inferioridade das culturas não-ocidentais. (Wang Hui 2007) 1
Nos estudos de tradução pós-colonial, percebe-se a tendência dos grandes centros a abordar as literaturas mais periféricas de maneira a omitir traços que vão de encontro às culturas hegemônicas, ao mesmo tempo em que acentuam o elemento exótico. Não há dúvidas de que a hegemonia do Ocidente fomenta a ideia do Oriente, do Outro, como um lugar distinto e muitas vezes inferior em termos de cultura, historia e ciência. Said relata esse aspecto em sua obra Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente:
Comecei com a suposição de que o Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente ali, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas ali. Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmo fizeram, e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas –, tais lugares, regiões, setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra. (Said, 2007, p. 31)
REFERÊNCIAS
DIOME, Fatou. Le Ventre de l’Atlantique. 12. ed. Anne Carrière: Paris, 2014. (corpus)
RUSHDIE, S. In Good Faith. UK: Granta.1989. p 85.
RUSHDIE, S. Imaginary Homelands. New Delhi: Penguin and Granta. 1991. p.285.
SAID, E.W. Orientalism. London: Routledge & Kegan Paul. 1978. p 380
SAID, Edward (1978/2003) Orientalism, New York: Vintage Books. In: BAKER, M; SALDANHA, G. Routledge Encyclopedia of Translation Studies. 2ed. New York: Routledge, 2009, p.201.
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SPIVAK, Gayatri. The Politics of Translation. In: SPIVAK, Gayatri. Outside in the teaching machine. New York: Routledge, 1993;
TYMOCZO, Maria. Ideologia e Posiçao do Tradutor: Em que sentido se situa o “entre”(lugar) in: BLUME, Rosvitha Friesen, PETERLE, Patricia (org.), Tradução e relações de poder. Tubarão : Ed. Copiart; Florianópolis : PGET/UFSC, 2013, p. 115-149.
WANG, Hui (2007) A Postcolonial Perspective on James Legge’s Confucian Translation: Focusing on His Two Versions of the Zhongyong, PhD dissertation, Hong Kong Baptist University. In: BAKER, M; SALDANHA, G. Routledge Encyclopedia of Translation Studies. 2ed. New York: Routledge, 2009, p.201.
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1 The refusal to see non-Western cultures on their own terms is manifested either in the translation proper or in the critical apparatus: orientalist translators may feel constrained to represent native views in the main body of the translation, but they are seldom shy of turning the paratextual space – prefaces, introductions, notes, appendixes, and so forth – into a colonizing space where cultural differences are interpreted as signs of the inferiority of nonWestern cultures (Wang Hui 2007).
Publicado por: julio lenz rodrigues barrocas
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