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Inês de Castro em Herberto Hélder e Fernão Lopes: A Permanência do mito

Clique e confira aqui um estudo a respeito do mito de Inês baseado em duas das principais obras.

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INTRODUÇÃO

O presente ensaio Monográfico visa realizar um estudo a respeito do mito de Inês. O trabalho é desenvolvido com base em duas das principais obras que nos apresentam versões acerca de importantes acontecimentos da história de Portugal no século XIV, sobretudo mostrarem como acontece esse processo de perpetuação do mito ao longo da história. De forma que não esqueçamos o cunho mitológico do romance de D. Pedro e Inês, faz-se necessário buscar por meio de estudiosos, como é o caso do autor Mircea Eliade, explicações para tal fenômeno.

As duas principais fontes estudadas são obras datadas em épocas distintas, uma medieval e a outra contemporânea, que apresentam diferentes finalidades e são abordadas sob perspectivas opostas. Na Crônica de D.Pedro, de Fernão Lopes, temos uma obra historiográfica de características marcantemente literárias com relatos “verídicos” acerca dos feitos de infante D. Pedro e sem dúvidas, do romance que entrou para história. Através da crônica podemos entender a gênesis do mito de Inês, já que  é o primeiro relato que temos acerca do romance,  as principais evidências e feitos do apaixonado e louco infante D. Pedro.

Em “Teorema”, o conto de Herberto Helder, as contribuições são apresentadas de maneira diferente. Com características distintas da crônica e assumidamente literária, o conto traz uma nova perspectiva do mito,onde Inês é uma referência e o narrador-personagem passa a desfrutar de tal condição para apresentar sua versão, demonstrar seu descontentamento e desconstruir ideias já postas.

As obras estudadas possuem importância singular para construção da ideia de perpetuação do mito, pois elas possibilitam por meio de suas analises a concretização da sobrevivência desse mito. Objetivo do ensaio é, portanto que consigamos identificar na crônica e no conto as faíscas que mantêm acesa a chama dessa história de amor que parece nunca se apagar.

A CONCEPÇÃO DE MITO

Não são poucos os mitos que permeiam a história, a literatura e o imaginário humano. Os mitos fazem de alguma forma parte da realidade do mundo.  Segundo Mircea Eliade (1963, p 12): “O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares”. Existem diferentes interpretações a respeito dos mitos, sejam eles ligados a religião, a história ou a política. Da mesma forma acontece com o mito de Inês de Castro que foi e continua sendo complexo, mas que suscita ainda hoje o imaginário da literatura, não apenas Portuguesa, mas geral, como podemos observar em obras brasileiras como: “Os Lusíadas”, de Camões e “A Tragédia de Inês de Castro” de Antonio Ferreira.

O romance de Pedro e Inês é um fato verídico que aconteceu no século XIV e marcou a história de Portugal. Ainda segundo a concepção de Mircea Eliade (1993, p 13): “O mito só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se manifestou plenamente. O mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades.” Assim, embora existam versões que tenham acrescentado aos relatos historiográficos alguns detalhes, a história em si realmente aconteceu.

Inês de Castro fora trazida para Portugal para ser dama de companhia da então esposa do infante D. Pedro que logo se enamorou da dama galega que chamava muita atenção por sua admirável beleza. Eles logo engataram um romance. Conforme relatos historiográficos, como a Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes o amor proibido do Infante D.Pedro pela então dama de companhia Ines de Castro não foi apenas mais um dos casos adúlteros do futuro Rei, mas o caso que deu fôlego de vida ao famoso mito de Inês de Castro visto que seu pai, Rei D. Afonso IV, planejou o assassinato da amante de seu filho temendo que esses laços colocassem em risco a independência de Portugal.

 Apesar do amor sem medidas ter marcado a história e suscitado o mito, foi à morte quem consolidou esta mitificação. A partir da morte de sua amada, corroído pela enorme saudade que tomava conta de si, D.Pedro cometeu atos inacreditáveis como o fato surpreendentemente curioso da trasladação do corpo de Inês de Coimbra para Alcobaça e a coroação de Inês como rainha de Portugal mesmo morta. O autor da crônica que conta a história do Inffante D. Pedro também reconhece a grandiosidade de tal amor.

Os feitos mais marcantes desta história de amor ocorrem em detrimento da perda irreparável. Segundo Haquira Osakabe (1997, p 111) “[...] oriundo do sentimento da ausência criou, pelo mito, a presença definitiva. A Inês que surge da saudade eterna.” A saudade é o motivo principal da mitificação de Inês, por meio desse sentimento corrosivo o Rei D. Pedro se sente obrigado a fazer algo que preencha o vazio deixado por sua amada.

Segundo TAITTIRIYA BR apud ELIADE (1992 p 51): “A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação.” O amor de D.Pedro por Inês é sem dúvidas, um exímio modelo de uma legitima história de amor para qualquer época, com elementos próprios de um romance, mas que apresenta um diferencial: D. Pedro vive em função de Inês até sua própria morte, continua amando-a e busca meios de eternizá-la, ele luta contra a morte da amada mesmo depois de consumada e vive inconformado até os seus últimos dias mesmo tendo se vingado.

O MITO DE INÊS NA CRÔNICA DE D. PEDRO, DE FERNÃO LOPES

A IMPORTÂNCIA DE FERNÃO LOPES

Fernão Lopes foi um historiógrafo e cronista, nomeado no século XIV por D. Duarte como Guarda-Mor do Arquivo Nacional Português que ficou incumbido de escrever a crônica dos reis da primeira dinastia. Ele desempenhou um papel muito importante para a história de Portugal, podemos constatar que suas crônicas possuem além de elaborações baseadas no cotidiano que relatam momentos históricos, uma forte marca literária. Tomando como foco o reinado de D. Pedro, ele tem a função de contar-nos o legado de justiça e crueldade do inffante D.Pedro. Fernão Lopes dá voz a um narrador onisciente, detalhista e aparentemente verdadeiro que conta-nos às aventuras do Rei. Não podemos esquecer que ele fora contratado para exaltar os feitos do Rei, embora possamos perceber que ele nos relata fatos que poderiam ter sido suprimidos como a gagueira do Infante D.Pedro é assim que ele dá inicio a crônica: “Este Rei Dom Pedro era muito gago; e foi sempre grande caçador, e monteiro em seendo Inffante...” (LOPES, 1985). Mas Segundo Maleva: “Fernão Lopes não se limitou de forma alguma a “pôr em crônica” os acontecimentos, mas a tentar persuadir seus interlocutores das “verdades” que defende” (LOPES, apud, MALEVA, pag.381).

Ainda que tenha narrado a gagueira do Inffante D.Pedro, o autor Fernão tenta nos convencer com a sua verdade, à medida que ele narra tudo sobre seu ponto de vista. Esta ideia é perceptível também em Eliade:

“Que se refere sempre a uma criação, conta como algo começou a existir, ou como um comportamento, uma instituição ou um modo de trabalhar foram fundados; é por isso que os mitos constituem os paradigmas de todo o acto humano significativo; que conhecendo o mito, conhece-se a origem das coisas e, desse modo, é possível dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido.” (ELIADE, 1963, p 23)

A CARACTERIZAÇÃO DO MITO INESIANO A PARTIR DA CRÔNICA DE D.PEDRO

Fernão Lopes relata os detalhes que desencadeiam o romance de D.Pedro e Inês. A paixão extraconjugal, consequentemente proibida de D.Pedro por Inês fica evidente segundo sua descrição:

“Por que semelhante amor, qual El Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes; raramente he achado em alguma pessoa, porem disserom os antigos que nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo.”  (LOPES, 1977)

Ainda que demonstrado o indiscutível amor que D.Pedro possuía por Inês, em alguns momentos a dúvida paira em nossas cabeças como no capítulo XXVIII da crônica que relata um certo mistério acerca da consumação do casamento.

“Enes presemte, e que lhe dissera que a queria receber por sua molher, e que logo sem maid deteemça o dito senhor possera a maão nas suas maãos delle, e isso meesmo a dita Dona Enes, e que os recebera ambos per palavras de presente como manda a samta egreja, e que os vira viver de comsuum ataa morte dessa Dona Enes, e que esto podia aver sete annos pouco mais ou menos, mas que nom se acordava do dia e mês em que fora; e deste feito nom disse mais.” (LOPES, 1977)

Ainda neste capitulo Fernão Lopes traz provas cabais que apesar de D. Pedro não recordar a data e o mês, o casamento teria acontecido, na fala do Papa Joham XX:

“Emtom pubricarom peramte todos huuma letra do Paoa Joham viçessimo segumdo, que dezia em esta guisa.Johanne Bispo, servo dos servos de Deos. Ao muito amado em Chirsto filho Inffamte Dom Pedro, primogênito do muito amado em Chirsto  nosso filho mui claro Rei de Purtugal e do Algarve Affonso, saúde e apostollical bemmçom. Se o rigor dos samtos canones poem deffesa e intredicto sobre a copulla do matrimonial ajuntamento, queremdo que se nom faça amtre aquelles que per algum divedo de paremtesco som comjumtos, por guarda da pubrica honestidade...” (LOPES, 1977)

É possível perceber a liberdade que o Fernão Lopes possui ao observarmos fatos que interessam ao Rei. No mesmo capítulo em que relata atitude suspeita de D. Pedro em relação ao seu casamento com Inês traz à tona episódios que confirmam definitivamente a existência  do casamento. É de interesse do Rei que todos acreditem que ele havia se casado com Ines quando D. Affonso IV ainda estava vivo para que assim ele pudesse realizar os atos que eternizariam seu amor por Ines e dissimulariam saudade já inerente que o acompanhava. A trasladação do corpo de Inês e posterior coroação como Rainha póstuma foi à forma que o amante eterno encontrou para consumar o amor que não pôde se concretizar em vida.

Quanto depois trabalhou polla aver, e o que fez por sua morte, e quaees justiças naquelles que em ella forom culapados, himdo contra seu juramento, bem he testimunho do que nos dizemos. E semdo nembrado de homrrar seus ossos, pois lhe já mais fazer nom podia, mandou fazer huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente obrado, poemdo emlevada sobre a campãa de çima a imagem della com coroa na cabeça, como se fora Rainha; e este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom aa emtrada hu jazem os Reis , mas demtro na egreja há maão dereita, acerca da capella moor. E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho mais homrradamente que se fazer pode Ca Ella viinha em huumas andas, muito bem corregidas pêra tal tempo, as quaaes fidalgos, e muita outra gente , e donas , e domzellas, e muita creelezia.” (LOPES, 1977)

Não conformado com seu vazio sem solução, D. Pedro faz jus a imagem de justiceiro e cruel ao mandar matar os algozes de sua amada de forma brutalmente grotesca. Para a imagem de um Rei que devia ser exemplo de justiça e lutar pelos interesses do seu povo o feito de D. Pedro não viria a calhar, mas ele não mediu esforços para fazer justiça com esta vingança.  Em Fernão Lopes Inês de Castro não tem voz e é vista como a grande vítima de uma trama política que a interrompeu viver o amor em sua totalidade. É então por meio da morte de Inês e dos feitos decorrentes como a construção de um belo tumulo, a coroação a trasladação e a vingança aos seus assassinos que o rei consagra o mito da Rainha póstuma.

A caracterização do mito de Inês na crônica se dá, portanto através dos feitos de D.Pedro após a morte de Inês, o autor da crônica não dá atenção especial a Inês,visto que ela não tem voz embora não deixe de reconhecer o amor de D.Pedro, tanto que ele narra momentos cruciais, sem os quais não teria sido possível tal mitificação.

O MITO DE INÊS EM "TEOREMA", DE HELBERTO HÉLDER; PERO COELHO, O MÁRTIR

O autor do conto “Teorema”, publicado no livro “Os passos da volta” em 1963, Herberto Hélder, é contemporâneo e comumente associado ao surrealismo por apresentar características próprias do estilo literário português como as constantes referências à loucura. Conforme Wania Guedes (2011): Buscando aplicar sua própria fórmula ao mito de Inês, Hélder apropria-se de um conceito matemático que representa muito bem essa história: Inês e Pedro seriam cada qual, um triangulo retângulo, separados por Pero; a hipotenusa que é o símbolo que separa e ao mesmo tempo une ambos, constituindo os três um triângulo.

Em sua obra ele traz uma releitura e reestruturação da crônica tradicional de Fernão Lopes. Segundo a autora Márcia Gobbi: “O conto nos oferece uma reflexão acerca de como se constrói uma tradição, ao mesmo tempo em que se acrescenta a ela, ajudando-a permanecer viva e sempre renovada” (GOBBI,2005 ,p 303)

A ideia da autora é mais comum do que possamos imaginar, grande parte dos leitores compartilham de tal afirmação, pois Hélder traz uma nova perspectiva a uma importante obra literária da história de Portugal, possibilitando um novo olhar por meio de uma nova voz e um rompimento com o que já está posto, de certa forma ele desconstrói o mito de Inês. Assim como na crônica, Inês de Castro também não ganha voz no conto embora apareça com conotação totalmente avessa, em Teorema ela forma junto ao protagonista e o coadjuvante, o trio de caráter demoníaco, que merecem o inferno pelos seus feitos segundo o próprio algoz.

O conto é narrado por um dos algozes de Dona Inês, o assassino Pero Coelho, que a ressuscita para contar do seu ponto de vista tudo o que teria ocorrido realmente. Nesse momento percebemos que há uma inversão de papéis, o juízo de valores das personagens ganha outro aspecto e há um forte rompimento com as fronteiras estabelecidas pelo tempo e espaço.

Na recriação do Mito Inesiano, o narrador personagem deixa claro que a mitificação se deve a ele, já que o mito parte da morte dela e ele é o assassino. No conto, Pero é uma peça fundamental para a perpetuação do mito. Fica notável no conto que se Inês não houvesse sido assassinada, o mito não existiria quando Pero diz: “Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades.”

A primeira ideia com a qual Pero vem romper é a de que teria matado-a por questões políticas, ao contrario do que vemos na Crônica de D. Pedro em ‘‘Teorema’’ ele afirma ter matado-a por amor do rei: “Matei-a para salvar o amor do rei. D.Pedro sabe-o” (TEOREMA, 1963.)

Pero Coelho desempenha sua função muito bem, argumentando e invertendo o julgamento moral, se auto classificando como mártir, pois sem seu feito nada teria acontecido. O jogo feito pelo narrador também é característico e marcante, pois ele deixa claro por meio da confusão temporal que seu feito ultrapassaria gerações.

“[...] a estátua municipal do marquês de Sá Bandeira; o estilo manuelino; o claxon de um carro.” A desconstrução da imagem de Inês, até então vista como vítima e a deteriorização da imagem de D. Pedro estão ligadas diretamente a Pero Coelho, agora detentor do poder por meio da voz concedida no conto de Hélder, trata de esclarecer que diferente do que está posto Inês não fora vítima de um crime político. Durante todo o conto ele demonstra não ter menor apreço por Inês. A justiça do Rei não mais encobre tal crueldade do ato cometido como vingança contra o algoz de sua amada. Em contraste a imagem pregada na crônica de D. Pedro:

“Hera ainda El Rei Dom Pedro muito çeoso, assi de molheres de sua casa, come de seus officiaees, e das outras todas do poboo; e fazia grandes justiças em quaaes quer que dormiam com molheres casadas ou virgeens , e isso mesmo com freiras dordem.”(LOPES, 1977.)

 Em Teorema Pero diz: “Somos todos loucos.” Reafirmando a ideia que o leva a narrar essa historia de seu ponto de vista, Pero Coelho enfatiza a crueldade do Rei contrapondo a ideia conhecida pela tradição e talvez encoberta pela cronista Fernão Lopes. “-Só o coração- diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão e encomenda-me  alma ao Diabo.”

Os atos de crueldade cometidos por D.Pedro são fatalmente criticados pelo algoz que mesmo durante a sua morte faz questão de continuar contando sua verdade, é interessante que  não esqueçamos de um detalhe importante que chama atenção : “-Senhor, – digo eu- agardeço-te a minha moret. E ofereco-te a moret de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.”

O conto de Herberto Helder estrutura-se essencialmente na inverosimilhança, percebemos as nuances surrealistas ao longo da narrativa, à referência loucura e ao anacronismo. O narrador é também personagem principal do conto e é ele quem desenvolve toda a narrativa baseada na ironia, desdenhando e dando as suas explicações para tais destrinchamentos do mito Inesiano. Inês esta implicitamente presente em todo o conto como podemos perceber em algumas das poucas alusões que o narrador faz a Dona Inês: “Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Ines.”

O assassino de Inês de maneira alguma se exume de tal culpa como vemos em sua declaração: “Percebo como tudo está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem.”, mas por meio de seus argumentos, da troca de identidades, pela revira volta na historia, pela tentativa de nos convencer de que sua posição na crônica fora injusta uma vez que cometera um ato louvável pelo qual salvou esse amor.

Percebemos que o autor do conto de forma muito inteligente usa de elementos atemporais que nos proporciona uma reflexão acerca da tradição, sua renovação e perpetuação. A característica atemporal do narrador nos mostra que o mito entra para historia e acompanhará gerações: “Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração.” Márcia Gobbi ao analisar “Teorema”, afirma que :

A historia de Pedro e Inês mantém ainda hoje uma vitalidade como inspiração literária que muitas outras perderam, porque o mito que ela consubstancia corresponde afinal a uma ânsia universal do homem, desejando vencer a morte , por um lado , e, por outro , recuperar um bem.” (GOBBI,2005, p 301)

A SUBLIME RELAÇÃO ENTRE MITO DE INÊS EM HERBERTO HÉLDER E FERNÃO LOPES

Existe uma linha tênue que liga intrinsecamente o conto Teorema a crônica de D. Pedro. Embora pertençam a épocas distintas, tenham sido elaboradas com finalidades e sob perspectivas diferentes elas têm algo fundamental em comum para a eternização do amor de Dom Pedro.

Segundo Márcia Gobbi: “A tradição intocada está fadada a cair no esquecimento e perder seu traço primeiro: a sobrevivência através das gerações”. (GOBBI,2005, p 303). A afirmação da autora reafirma que o lado positivo de uma tradição ser tocada, e quando nos referimos ao mito de Inês tem caráter de perpetuação do mito, pois temos no conto de Hélder uma releitura da obra de Fernão Lopes que atribui uma nova perspectiva para essa grande história de amor.

Existem relações embora implícitas. É possível percebê-las, por exemplo, quando os narradores contam a execução do assassino de Inês, tanto na crônica como no conto. Em Teorema esse episódio se torna o tema central da narrativa, o algoz de Inês conta a partir da sua visão, seu próprio assassinato em praça pública, evidenciando a crueldade de D. Pedro e deixando claro que a consolidação dessa grande história de amor, se deve principalmente a ele que por ter matado Inês possibilitou que essa história se perpetuasse, um exemplo é quando Pero afirma ter matado-a por amor: “Matei por amor do amor”.

Como vemos ainda em GOBBI (2005, P 303): “[...] todas essas “antigas” histórias estão presentes, ainda que em ausência na “nova” história construída por Hélder.” Essa relação se torna cada vez mais perceptível a medida que identificamos a interdependência  existente entre as obras. A essência do mito é a morte de Inês e sua imortalidade se dá com o desenrolar de ambas as obras, logo, elas estão ligadas visto que embora Inês não se apresente em nenhuma das duas, ela sirva de referência, sem ela nada teria sentido, ou melhor, sem sua morte, nada faria sentido.

As vozes mudam, os papéis se invertem, o julgamento de valores passa a ser outro como percebemos no conto, mas as personagens continuam as mesmas, embora com concepções distintas. Percebemos que foco narrativo é intencionalmente de acordo como cada situação, em Hélder temos um narrador personagem, protagonista da história, portanto sua versão no conto. Em Fernão Lopes o foco narrativo é outro totalmente diferente, apresenta-se um narrador mais detalhista quando é conveniente claro.

Existe no conto uma transição das figuras de D. Pedro, Dona Inês e do próprio algoz. Na crônica são Inês e D.Pedro os protagonistas de um grande amor interrompido que sofrem as duras conseqüências depois da morte de Inês. “Em “Teorema” os três formam o trio demoníaco que por culpa individual merecem o pior:” Sei que vou para o inferno. “O rei e a amante também são infernais.” Pero apresenta consciência de seu ato mais não assume total culpa afinal Ines e D. Pedro cometeram adultério, e ele assassinou Inês, logo todos são culpados perante a igreja.

Uma das maiores provas da relação íntima entre as obras é o reconhecido amor de D. Pedro e Inês. Na crônica, Fernão Lopes ressalta: “Por que semelhante amor, qual El Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes. (LOPES, 1977). E ainda que odiando rainha Pero Coelho não deixa de reconhecer tal grandiosidade deste amor: “O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima. (HELDER, 1963)

Embora Inês não conte nenhum feito, como ela se sentia ou mesmo sua versão na crônica ou no conto ela será sempre a referência sem a qual não teria existido mito, superficialmente falando sua ação não tem tanta importância na crônica e ate mesmo no conto, mas foi justamente o que ela não fez que possibilitou sua mitificação, em os lusíadas Inês implora ao pai de seu amado, D. Affonso IV para que não seja morta, o mesmo não ocorre na crônica muito menos em “Teorema”, mas não podemos perder de vista que ela está presente ainda que em ausência, ela foi à causa primeira.

A relação existente entre as obras é inegável por ultrapassar os limites da relação e chegar à dependência, conforme Marcia Gobbi:

“Teorema”, ainda que guarde uma distância critica da tradição de que se apropira- e isso pode ser observado, como dissemos, pelo deslocamento das figuras de D.Pedro e Inês do eixo central de seu enredo-, não prescinde dela em nenhum momento. Muito pelo contratio: dela necessita , inclusive, para que possa ser compreendida por seu leitores.”     (GOBBI,2005 , p 312).

A condição para que nós leitores de “Teorema” entendamos o conto é conhecer a Crônica de Fernão Lopes, da mesma forma,só  assim conseguiremos ver “Teorema” como um meio de  ressureição da crônica e até ferramenta para perpetuação do mito. Logo , fica evidente que tanto uma como a outra são fontes de explicações para o mito Inesiano.

CONCLUSÃO

Podemos concluir que esse estudo, assim como vários outros que envolvem o mito de Inês de Castro, vem sobretudo comprovar que a tragédia de Inês além de continuar sendo analisada ao longo das gerações, exerce grande influencia na literatura não apenas Portuguesa mas de todo o mundo e que tem-sobrevivido ao longo de séculos . A formação do mito em torno dessa figura representa muito para o imaginário literário, visto o número de estudos que existem acerca desse tema. O mito de Inês de Castro está eternizado na literatura e ganha cada vez mais fôlego na medida em que suscita novas pesquisas.

Embora a analise feita acerca do mito de Inês tenha seus principais viés distintos, a conclusão que chegamos a respeito do mito é a mesma, tanto na crônica quanto no conto, ambas contribuíram e estão intrinsecamente ligadas. Fernão Lopes traz a gênesis do mito e Herberto Helder ressuscita Inês mais uma vez, na medida em que ele reconstrói uma historia que a tem como base e condição sem a qual não teria existido. É interessante lembrar que o próprio autor do conto já escreve sabendo da potencialidade do mito, visto que ele coloca em evidência a questão da atemporalidade, jogando com elementos de diferentes épocas.

A forca desse mito que sobrevive durante gerações é vista como uma combinação de ansiedade humana, na tentativa de recuperar algo que já foi perdido e no desejo de vencer ate mesmo a morte. Com isso fica evidente que a permanência desse mito se deve em grande parte a morte, condição sem a qual não haveria mito.

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Publicado por: Myrian Cristina Cardoso Costa

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