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Filosofia das Batatas

Análise da obra machadiana "Quincas Borba" em todos seus contextos (culturais, filosóficos, sociais, etc.)

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Análise do livro “Quincas Borba” de Machado de Assis

Resumo

Este texto tem por objetivo analisar a obra machadiana “Quincas Borba” em todos os seus contextos (culturais, filosóficos, sociais, etc.). Estabelecendo relações da obra com a sua localização histórica e sua escola literária, o Realismo.

Palavras-Chave: Machado de Assis, Realismo, Humanitismo, Quincas Borba.

Abstract

The aim of this paper is to analyze the historical context, cultural and philosophic of the book “Quincas Borba”. This book’s text makes relationships with their time and their literary school: the Realism.

Key Words: Machado de Assis, Realism, Humanism, Quincas Borba.

O Bruxo e sua época

Estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que resolves em mim tantos enigmas”.
Carlos Drummond de Andrade
(Do poema “A um bruxo, com amor”, sobre Machado de Assis)

Mulato, filho de lavadeira, gago, epilético. O “Bruxo do Cosme Velho”, como era apelidado Machado de Assis, nunca se deixou levar pelo determinismo social de sua época. Machado, pai da Academia Brasileira de Letras, marcou para sempre a história da literatura brasileira. Além dos romances, os contos, o teatro, a poesia e a crítica, integram este gênio autodidata.

Machado de Assis tem um estilo inconfundível de escrever, embasado nas correntes filosóficas e cientificas de seu tempo, com um ar sarcástico e niilista, seguindo os ideais do Realismo/Naturalismo, descreve com fidelidade os personagens e seus conflitos psicológicos e sociais. Através de uma narração introspectiva profunda, com objetividade e detalhismo, disseca com sapiência e bom-humor os acontecimentos da obra.

Ele representa a transição do Romantismo para uma nova forma de fazer literatura, onde se misturam o Realismo, o Naturalismo, e na poesia, o Parnasianismo. Em todos, o sujeito é condicionalmente determinado, seja pela “coisificação” realista ou pela “zoormofização” naturalista. Entretanto, é didaticamente fundamental distinguir o Realismo do Naturalismo. Este se diferencia daquele por conduzir a ciência para o plano da obra de arte, fazendo desta um meio de demonstração de teses cientificas, especialmente a psicopatologia. O Naturalismo traz para obra uma visão biológica e instintiva. Ao contrário, o Realismo, mais esteticizante, embora se apóie nas ciências, apenas fotografa com certa isenção a realidade circundante, não traz dissertativamente às ciências para o plano do papel.

Nas palavras do escritor francês Gustave Flaubert (séc. XIX):

Depois da falência de todos os ideais, de todas as utopias, a tendência agora é manter-se dentro do campo dos fatos e nada mais além de fatos.

O desenvolvimento científico e literário representou a derrota do idealismo e do tradicionalismo. O amor platônico, o subjetivismo, o saudosismo e o byronismo dos românticos foram superados, a partir e após o Condoreirismo, iniciou-se efetivamente uma preocupação social e racional com a realidade, não mais sentimentalista.

A aristocracia rural e a Igreja são abandonadas, a burguesia passa a ocupar o cenário das obras. Se no Iluminismo os interesses da burguesia e do proletariado se confundiam, na era moderna nasce a “consciência de classes”, a burguesia antes explorada pelo clero e pela nobreza, agora explora o proletariado. O Capital e O Manifesto Comunista de Karl Marx e Engels são o marco das novas disputas e dos novos personagens. Agora impera o racionalismo econômico, marcado pela crença no progresso da civilização industrial e mecânica. Se nas Grandes Navegações o mercantilismo se evidenciou, agora com a Revolução Industrial, as novas relações de trabalho (fordismo, taylorismo) e o “liberalismo econômico” de Adam Smith, a economia anula as forças humanas e se torna um órgão autônomo, o capitalismo industrial, criando um dos principais personagens desse novo contexto: o dinheiro – símbolo máximo de status quo desse século.

Para Arnaldo Hauser:

[Na literatura realista] o dinheiro é a grande força que domina toda vida pública e privada e toda força, capacidade, todos os direitos, passam a se exprimir através dele. Tudo, para ser compreendido, tem que se reduzir a um denominador comum: o dinheiro.

A base cultural e histórica do Realismo é a ciência, que dominou as atenções na segunda metade do século XIX. Difundiu-se o entusiasmo nas tecnologias e nas descobertas cientificas. Por exemplo: o desenvolvimento da anestesia, a descoberta dos microorganismos causadores da sífilis, tuberculose e malária; descrição dos hormônios e das vitaminas; identificação da energia mecânica, do calor, da luz e do eletromagnetismo; a evolução do transporte com a invenção do trem a vapor; Alexander Graham Bell inventa o telefone; a lâmpada incandescente é inventada por Thomas Edison e o alemão Car von Lind fabrica a primeira geladeira doméstica; o italiano Guglirlmo Marconi inventa o rádio; Alfred Nobel inventa a dinamite; em Paris, os irmão Lumiere exibem o primeiro filme em cinema. Nasce daí o gosto pela análise, objetividade, observação, fidelidade. Em suma, a literatura preocupou-se em captar a realidade como ela é, compondo um retrato fiel e preciso.

Este século foi fortemente influenciado por correntes como o positivismo de Comte, a teoria da evolução e a seleção natural de Charles Darwin, a Psicologia de Wundt, o niilismo nietzscheano, o determinismo de Taine e o materialismo histórico e dialético de Marx.

O Brasil machadiano tinha sua economia de base agrária, com a ascenção da cana-de-açúcar e do café, os latifundiários detinham não apenas o poder econômico como o poder político. Foi nessa mesma época que ocorreu a criação do Banco do Brasil. Destacava-se o progresso tecnológico e da infra-estrutura, com a inauguração da primeira estrada de ferro, do telégrafo e o aparecimento da luz elétrica. A estrutura sociológica também passava por transformações drásticas. A Abolição da Escravatura, a expulsão dos maçons da irmandade religiosa da Igreja e a Guerra do Paraguai, abalaram a estrutura militar do regime monárquico, o Brasil inauguraria um novo cenário político: a República.

Diante desses contextos, Machado de Assis inaugura o Novo Romance, com grandes obras-primas da nossa Literatura, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e como não poderia deixar de faltar: Quincas Borba.

“Quincas Borba”, publicado originalmente em folhetim no ano de 1891, é um dos romances mais densos da literatura brasileira, cronologicamente e didaticamente situado no estilo realista. Vazado com ironia, sutileza e humor, o volume percorre gradativamente a insana trajetória do protagonista Rubião e, ao mesmo tempo, fixa o cão Quincas Borba como alter-ego do filósofo, consciente das profundezas da doutrina do humanitismo. Paralelamente documenta a vivência das camadas sociais, o jogo de interesses e as mazelas psíquicas daqueles que buscam, a qualquer preço, a ascensão social. Tamanha a beleza e a inteligência da obra que em 1987 virou filme nas mãos do roteirista e diretor de cinematografia Roberto Santos.

Quincas, humanitismo e batatas

“Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro, inopinado e inventor de uma filosofia”.

Machado de Assis
(No livro “Quincas Borba”, capitulo IV)

A epígrafe demonstra a imensa beleza metalingüística e intratextual da obra. Lembrando que Quincas Borba foi amigo e colega de escola de Brás Cubas. E ambos se encontram no livro Memórias Póstumas, onde há uma referencia ao roubo do relógio. Outra cena importante é a que Brás e Quincas almoçam, filosoficamente, um frango, (MPBC, capítulo CXVII):

Este frango nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresce, foi vendido; um navio o trouxe construído com madeira cortada no mato por dez ou doze homens levado por velas que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite.

Se nas memórias póstumas, temos a exposição teórica, em Quincas Borba teremos sua demonstração; o sistema filosófico inventado por ele, o Humanitismo, sai do plano das idéias e conhece a sua plena realização.

O romance ocorre entre o final do Segundo Reinado e o início da Primeira República. A burguesia brasileira é a representação descrita da falsa sociedade. Machado desvela a ambição, a avareza, as hipocrisias reinantes na antiga capital brasileira, centro nevrálgico dos acontecimentos mais críticos e decisivos do ingresso do país na modernidade. Apresenta um Brasil estagnado e defasado pela morosidade e pela corrupção reinante naquela falsa sociedade liberal.

É importante entender o caráter dos personagens na obra machadiana, pois eles não estão presos à trama da narrativa, movimentam-se em um ambiente mais de reflexões que de ações.

Quanto ao espaço físico e temporal, nunca é fácil exprimir uma determinação do tempo na obra machadiana, havendo neste caso, desenvolvimentos psicológicos e cronológicos. Assim como a temporalidade, o cenário machadiano é constantemente transfigurado, mas, a ação se passa no Rio de Janeiro, cenário político e histórico da obra; porém, há um recuo no tempo até Barbacena, onde se passa fatos importantes que dão origem ao romance, mesclando espaços cosmopolitas e provincianos.

O espaço narrativo do livro é eclético. O narratário em Quincas Borba é invocado de maneiras distintas pelo enunciador: ora de maneira indireta, ora direta, ora através da segunda pessoa do singular, ora da primeira ou da segunda do plural. Tais referencias, em se tratando de uma narrativa machadiana, não são aleatórias, isto é, a opção por cada uma delas assume uma determinada função no texto.

Para contextualizar a narração, o tempo e o espaço, tempos esta passagem do capitulo III:

Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando da bela Sofia. Vem comigo, leitor: vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba.

Pedro Rubião de Alvarenga, protagonista da história, vivia em Barbacena, Minas Gerais. Era professor em uma escola para meninos e tinha uma irmã viúva chamada Maria da Piedade. Joaquim Borba dos Santos, um rico filósofo que herdara os bens de um tio, conhecido como Quincas Borba, chega à cidade de Barbacena e se apaixona por Maria da Piedade, irmã de Rubião.

Maria da Piedade faleceu pouco tempo depois de ter recusado o pretendente. Então, Rubião e Quincas Borba tornam-se amigos. Quando Quincas Borba adoece, Rubião para de dar aulas para ajudar o amigo, tornando-se um enfermeiro. Embora não fosse falso em seus cuidados, Rubião não era de todo um desinteressado; nutria intimamente a esperança de ser um dos beneficiários dos bens do amigo, pois além de um cachorro, também chamado Quincas Borba, Rubião era o único amigo de Quincas.

Pois assim o foi, com a morte de Quincas, Rubião se tornou o único herdeiro de suas riquezas, a única exigência do morto foi que Rubião tomasse conta do amigo cão, como se este fosse da família. Mal sabia Rubião que, metaforicamente, também herdou as filosofias de Quincas, que era considerado um “homem de esquisitices”, dotado de bela biblioteca e de muitas citações.

A herança, no caso de Quincas Borba, tem pelo menos duas implicações. Uma de natureza social, bens acumulados que passam de mão a mão, meio predileto de enriquecimento nesta sociedade; outra mais complicada a que talvez se pudesse dar o nome de filosófica ou psicológica, e se personifica em Rubião, um capital impregnado de Humanitismo.

Rubião agora parte para a cidade do Rio de Janeiro com as batatas (a herança) nas mãos. Ele desconhecia os mecanismos urbanos, um protagonista passivo, era um ingênuo mineiro que não teve tempo de aprender a filosofia das batatas transmitida por seu mestre: Rubião era mais crédulo que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada: terra eternamente virgem para nele se plantar qualquer coisa.

No trem da partida, na estação da cidade de Vassouras, Rubião conhece Cristiano de Almeida Palha e sua belíssima mulher, Sofia. Rubião não resiste a tentação de lhes contar acerca do amigo morto, e, dessa forma, ostentar sua nova condição social: a de homem rico! Essa constatação se tem no capitulo III, em que Rubião já se encontra instalado em um palacete no Botafogo:

Prata, ouro eram metais que amava de coração; não gostava de bronze, mas o amigo Palha disse-lhe que era matéria de preço, e assim se explica este par de figuras que aqui está na sala, um Mefistófeles e um Fausto.

Rubião e o casal tornaram-se “amigos íntimos”, e, a partir desse momento, o amigo lhe dispensa todas as delicadezas; a amiga, olhares. Sobretudo, esta amizade tinha interesses “comerciais”.

Em uma das festas promovidas, Sofia insinua-se para Rubião em um jogo de sedução. Atraído pela formosura da encantadora esposa do amigo, Rubião, após as tantas trocas de olhares, é convidado por Sofia para um passeio no jardim. Animado pela bebida, se declara a Sofia. Ela faz-se de rogada, e não permite que seu apaixonado exceda em seus atos. Ainda naquela noite delata o amigo para seu esposo, Palha. Ambos dialogam que seria complicado romper com quem já deviam tantos “favores” e de quem necessitavam da “boa vontade”.

O perfil de Sofia se define assim: vaidosa, orgulhosa, dominadora, fria, cautelosa, ambiciosa, sedutora, caráter ambivalente, frívola, sensual, dissimulada, narcisista. Sofia é o símbolo da personagem feminina em Machado de Assis. Sofia não desejava ser possuída, desejava ser desejada. Seduzia, através de suas técnicas, as vitimas que o casal escolhia sem jamais chegar ao adultério. Como no capitulo CIII, no qual Rubião diz:

- Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora sabe disso, e não me despende, nem me aceita, anima-me com seus bonitos modos. A senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, desenganar-me logo...

Machado denuncia o romantismo, como coisa de patéticos e imbecis, quando Rubião recebe um bilhete e uma cesta de morangos de sua amada, assemelhando-se com Dom Quixote que cria uma carta de Dulcinéia e a lê segundo seu coração. Diz o narrador:

Rubião (...) ainda uma vez leu o bilhete de Sofia. Cada palavra dessa página inesperada era um mistério; a assinatura, uma capitulação. Sofia apenas; nenhum outro nome da família ou do casal. Verdadeira amiga era evidente uma metáfora. Quanto as primeiras palavras: Mando-lhe estas frutinhas para o almoço, respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou tudo pela única força do instinto e deu por si beijando o papel – digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia de batismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escritura moral do casamento, e agora roubado a todas essas origens e posses para lhe ser mandado a ele, no fim duma folha de papel... Sofia! Sofia! Sofia!

Logo Palha se tornou sócio num empreendimento comercial de Rubião, que não entendia muito bem sobre economia, ficando Palha com a “gerencia” do dinheiro de Rubião. Inicia-se assim a degradação financeira do herdeiro das batatas de Quincas Borba.

Cristiano Palha é a figura do canalha bem-sucedido, que aplica golpes junto com sua esposa. Ele tinha uma persuasão incisiva e interesseira na sua lábia, como todo caricato capitalista:

Rubião não podia compreender os algarismos de Palha, cálculos, tabelas de preços, direitos de alfândega, nada; mas a linguagem falada supria à escrita. Palha dizia coisas extraordinárias...

Rubião atraíra em sua trajetória de homem rico, mas ingênuo, muitos outros oportunistas. Como o Dr. Camacho, um advogado e falso jornalista, que leva Rubião a assuntos políticos, manipulando-o pela vaidade e ilusão. Rubião torna-se sócio de Camacho em seu jornal, Atalaia. Camacho é caricatura do politiqueiro demagogo de “frase-feita” e retórica excessiva, astuto e interesseiro.

Outros personagens da obra são: Carlos Maria, caricatura do conquistador de frases feitas e lugares-comuns, um verdadeiro Narciso carioca; sua esposa Maria Benedita, tímida, pacata, trivial, passiva e de personalidade fraca, com grande devoção religiosa, ela é o símbolo da mulher subserviente, da qual Machado de apropria para criticar a educação voltada para o casamento, que não passava de um ludíbrio – “... já a antevia ajoelhada, com braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nele, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada” –; D. Tonica, filha do Major Siqueira um mexeriqueiro, é a figura da “solteirona quarentona”, seu nome ironicamente corresponde ao feminino de Antônio, santo casamenteiro; D. Fernanda, o verdadeiro contra ponto de Sofia, e seu esposo Teófilo, ambicioso e dinâmico, às vezes, temperamental e minucioso; e Freitas, caricatura do parasita e dos glutões de jantares e charutos alheios.

O cão Quincas Borba também é um personagem protagonista no romance, a prosopopéia utilizada pelo narrador fez do cachorro uma projeção e um prolongamento, por metempsicose, do filósofo de mesmo nome. Logo após a morte do filósofo, o cão passa a ter um comportamento cada vez mais humano, herdando o mesmo senso de observação do seu antigo dono na interpretação das ações alheias:

Olho para o cão, enquanto esperava que lhe abrissem a porte. O cão olhava para ele, de tal jeito que parecia estar ali dentro do próprio defunto Quincas Borba; era o mesmo olhar meditativo do filósofo, quando examinava negócios humanos. (cap. XLIX)

Mas, no machadianismo sarcástico de sempre: São idéias de cachorro, poeira de idéias, - menos ainda que poeira, explicará o leitor.

Uma das possibilidades de se entender a pretensão do autor com essa alegoria do cachorro é perceber a metamorfose do filósofo em cachorro como uma maneira de acompanhar a demonstração do Humanitismo. O cachorro tudo acompanha, como se fosse o filósofo, só que agora condenado ao mutismo. Observe sua reação no momento em que Cristiano Palha propõe sociedade com Rubião:

Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar à alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nos olhos; riu-se era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo. (cap. LXIX)

Machado não apenas fotografou a realidade com sua narrativa, ele ironizou com a sua alquimia literária, foi pornograficamente zombeteiro e crítico, esboçou teorias em fatos comuns que vacilam entre a seriedade e a gozação. Para compreender melhor, segundo a Prof.ª Eliane Fonseca:

Em geral, o humorismo corta, na obra de Machado de Assis, uma digressão que parecia querer estender-se e, justamente quando o autor dá a impressão de querer desviar-se da profundidade da idéia, é que nos leva a considerá-la.

Para ilustrar a citação da professora, temos o capítulo CXVII:

A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique, desde já, admitido que, se não fosse à epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona – um triste molambo de mulher, - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. – É minha, sim, seu senhor; é tudo o que eu possuía nesse mundo. – Dá-me licença que ascenda ali meu charuto? O padre que me contou isso certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para ascender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! – Chamava-se Chagas. Padre mais que bom, que assim me incutiste por muito anos dessa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mau aos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao principio da propriedade, a ponto de não ascender o charuto sem pedir licença a dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom Padre Chagas!

Nessa passagem se misturam o trágico e o patético, não havendo no texto machadiano um caráter moralista.

Mal-sucedido e explorado, não-correspondido em seu amor por Sofia, o desiludido Rubião começa a ter delírios, corta a barba como a de Napoleão e começa ter mania de grandeza. Ao ver a situação desastrosa que encontrava Rubião, Palha o mandou para casa de praia juntamente com seu cachorro, depois para um sanatório. Daí então Rubião desaparece e reaparece em Barbacena, faminto e febril. Quincas Borba, o cão, também doente morre na rua, e mais tarde, Rubião na casa da dona que o acolheu, também falece, no miserabilismo fatídico. A narrativa se fecha em Barbacena, o fim de Rubião é o mesmo de Quincas Borba e tudo termina no mesmo lugar onde se inicia.

O Humanitismo é antropocentricamente existencialista. É o principio universal de que o homem é uma parte na sua humanidade. Todavia, o Humanitismo se distancia do Existencialismo por condicionar o sujeito e negar o livre-arbítrio. Metonimicamente podemos entender essa filosofia do livro, na seguinte alegoria do capítulo VI:

Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõem tu, um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas!

Essa passagem ilustra o Humanitismo, filosofia inventada por Quincas Borba, de que a vida é um campo de batalha onde só os mais fortes sobrevivem e os fracos e ingênuos, como Rubião, são manipulados e aniquilados pelos superiores e espertos, como Palha e Sofia, que, no fim da história terminam vivos e ricos, expondo sua máxima: “Ao vencedor, as batatas!”, a partir da qual se considera que ser fraco ou perdedor, é ser culpado. Machado, que por sinal era um excelente jogador de xadrez, transforma tudo em um jogo de interesses. Através dessa literatura maquiavélica, percebe-se o homem se alimentando dos próprios homens em sociedade, ou segundo Thomas Hobbes (séc. XVII): “O homem lobo do homem”.

Essa filosofia se aproxima da seleção natural de Darwin, onde os animais mais adaptados sobressaem aos mais frágeis, estabelecendo uma espécie de “darwinismo social”. Os personagens são transformados em marionetes, seres manipuláveis, que representam a reificação do homem, a coisificação do sujeito. A sociedade ao incentivar o individualismo, também ilude o homem a se considerar senhor da própria vida no momento em que consegue acumular bens de consumo, o individuo passa a existir apenas na condição de consumidor (ou consumido), coisificado, desumanizado.

Tudo provém desse principio básico, portanto todas as coisas se entrelaçam, e aí todos os contrários se encontram. Partindo-se desse principio, a guerra, a discórdia, bem como o congraçamento, devem ser encarados como fatos naturais e convenientes, na evolução desta parte do Humanitas, que é o homem. É preciso, portanto acolher tranquilamente as adversidades; estas são necessárias à estrutura do mundo.

O Humanitismo pode ser filosoficamente entendido como uma associação teórica do Hegelianismo e do Estoicismo. No Hegelianismo, o Principio Superior, a Razão, o Absoluto, é antologicamente, anterior a tudo, e se revela pela natureza e pelo homem, o que se aproxima do Positivismo de Augusto Comte, para quem, deveria haver uma Humanidade acima dos homens. O homem é a consciência que a razão tem de si mesma, e tudo evolui dentro de uma tríade: a tese, a antítese e a síntese. O Hegelianismo é na sua essência dialético, os contrários, como prazer e dor, vida e morte, ser ou não ser, são coisas que fazem parte da estruturação orgânica do universo, e tudo resultará numa síntese metafísica. Para o Estoicismo, tudo acontece porque tem de acontecer, e é preciso aceitar tudo com naturalidade, pois isso é a essência das coisas, que são como são e devem ser assim como são.

Mas Machado coloca em xeque-mate todas as certezas cientificas que vigoravam com grande prestigio no século XIX – o historicismo, o evolucionismo, o determinismo, o psicologismo. Denunciando o grau de incertezas e relatividade das ciências e dos “ismos” tão presentes. Abrindo espaço para o desconhecido, o mistério. Para Isaac Newton (séc. XVIII): “A verdadeira filosofia nada mais é que o estudo da morte”. Ao contrário de Newton, o comentário feito pelo médico que assiste a aflitiva agonia de Quincas, traduz a postura critica e bem humorada do narrador à pretensa “verdade” e ao pretenso “saber” com que o filósofo sustenta seu pensamento: mas filosofar é uma coisa, morrer de verdade é outra.

Mais do que ironicamente, Machado dentro do realismo literário se apropria do personagem Quincas Borba para questionar em (supostamente) estado de loucura: o que é a realidade? Como diria Erasmos de Rotterdam, escritor do Renascimento Cultural, em “Elogio da Loucura”: Só se costuma defender a verdade quando não se é atingindo por ela.

A loucura de Rubião o transformou no “Napoleão de Botafogo”, assim como a de Quincas o transformou no “Filósofo de Barbacena”. Todavia essa loucura napoleônica também pode ser quixotesca. Ambos acreditavam doentemente na sua ideologia, analogicamente como o personagem de Cervantes, o que poderíamos entender não como loucura patológica, insana, mas como loucura critica e contestadora de um mundo falso. A palavra “ideologia” quando criada pelo seu idealizador Desttut de Tracy recebeu a alcunha de “deformadora da realidade” por parte do General francês Napoleão Bonaparte. Embasado na sua filosofia, a “deformação da realidade”, em Quincas Borba, tem um sentido positivo, um sentido quixotesco, não napoleônico.

A loucura, tema fascinante, ela alimenta a irascível fúria de Orfeu, delírios que fizeram Van Gogh decepar a própria orelha. A loucura de Rubião acaba, enfim, identificando com Quincas Borba, por processo análogo ao da quixotização de Sancho Pança, uma vida despojada de ilusões. E assim, no capítulo CC:

Poucos dias depois, morreu... Não morreu súdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça – uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de diamantes e outras pedras preciosas.

A anáfora da palavra “nada”, poeticamente, simbolizou a degradação de Rubião e sua demência perante a sociedade que ele não entendia, ou ela não entendia Rubião. E no final, um eufemismo de finíssima ironia:

“Estava assinada a abdicação”.

Mas, afinal, quem é Quincas Borba? Um cachorro ou um Joaquim? “Quincas Borba” é a materialização lexical do humanitismo, não é apenas um cão ou um sábio, Quincas Borba é um filósofo onisciente, um alter-ego, um eu-lírico acima do narrador que habita ambos, cão e sábio, além de estar presente nas ideologias de Rubião e que, após a leitura do livro, passa a estar presente também no leitor, se este for ingênuo, ou, mesmo se não o for, Machado com certeza ficará grato pela dedicação introspectiva e pela atenção dada as inofensivas batatas.

Bibliografia

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1993.

CÂMARA, Mattoso. Ensaios Machadianos. Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, 1962.

CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. São Paulo, Ed. Moderna, 2002.

JANKÉLÉVICTH, Vladimir. L’Irone. Paris, Flammarion, 1964.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa, vol. 01 – Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1962.

SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a Análise da Expressão. INL, MEC, Brasília, 1968.


Publicado por: Waldir Araújo Carvalho

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