Análise do conto “Os Bonecos de Barro” de Clarice Lispector por Elvira Livonete Costa
Confira aqui a análise do conto "Os Bonecos de Barro" de Clarice Lispector!O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Introdução
Não resta dúvida de que Clarice Lispector é uma das autoras de mais difícil leitura do cenário nacional. Talvez por sua complexidade e introspecção, porém à medida que adentramos suas obras, seu mundo e seu estilo bem elaborado, não vacilamos em reconhecer que ela é diferente, única. Tomo emprestada uma expressão que ouvi a algum tempo, à qual diz que para mergulhar em suas leituras, é necessário um certo preparo psicológico, para enfrentar o estranhamento que sua obra nos causa. Ela promove um terremoto literário de níveis indefiníveis em nosso ser.
É impossível ler Clarice de forma despercebida, pois a intensidade de seus textos não nos permitiria tal proeza. Suas obras exigem um leitor perspicaz e atento, para que não se perca nos sentimentos desordenados e vagos que caracterizam a forma particular da autora pensar o mundo.
Busco neste trabalho realizar uma leitura e através de uma visão panorâmica, chamar atenção para algumas características recorrentes nesta obra em especial, que podem ser consideradas como traços estilísticos. Procuro observar ainda, de acordo com as técnicas de composição exploradas no texto de Clarice, a relação da forma e efeitos de sentido.
“Os Bonecos de Barro”
Os labirintos de sentidos criados por Clarice no conto “Os Bonecos de barro”, adquire significados nas entrelinhas do texto. Ao mesmo tempo que se afasta da fala da personagem, o narrador vai em direção ao próprio discurso literário. Um texto que se desenvolve penetrante e envolvente, seu enredo adquire menor importância, usado como pano de fundo, quando o foco é na verdade, ilustrar os aspectos psicológicos da personagem e ainda impressões e sentimentos da própria autora.
O conto é assumido por um narrador que flui entre os pensamentos de Virgínia, sua única personagem, uma mulher sensível e em certos momentos melancólica. Com desejos delicados e prazeres muito particulares, ela se dedica a seu maior prazer, o de criar. Esculpe formas variadas em argila, criança, cavalo, flor, entre outros. Na verdade, não importa muito a figura em si, mas a expressão e as sensações que a mesma expõe em cada uma.
“Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais., Pequenas formas que nada significavam mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada...Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa.”
As características dadas às imagens que esculpia se referiam mais a ela própria do que às figuras, deixava nas mesmas a representação de seu drama existencial.
“Pequenas figuras que nada significavam...”
Virgínia, uma mulher que apesar de sozinha, se deixava impregnar por tudo a seu redor, o barro, a água, a areia do rio... o mais sutil detalhe desperta seus sentidos.
“O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços, e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza.”
Observa-se o encantamento da personagem com o ato da criação, ela se esvazia de tudo, de seu orgulho, de seu ego, se entrega por completo para apreciar a grandeza quase assustadora da vida extraída de suas mãos.
“Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo. Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados.
Este momento de êxtase no ato da criação, o instante mágico, solene, faria uma alusão ao processo criativo da autora. Segundo a própria Clarice que afirmou, só se sentia viva quando escrevia.
“Eu acho que, quando não escrevo, eu estou morta.[...] “Em cada livro eu renasço.” Clarice Lispector
O texto se apresenta em monólogo interior, é entremeado por impressões pessoais momentâneas (fluxo de consciência), esta técnica utilizada com frequência por Clarice, se faz presente inúmeras vezes no decorrer do texto. Predomina o tempo psicológico, os processos mentais de Virgínia são mesclados a todo momento, alternando realidade e devaneios, lembranças, interiorização de sentimentos e de sua concepção do mundo exterior.
O primeiro e mais importante fato concreto que cada um afirmará pertencer a sua experiência interior é o fato de que a consciência, de algum modo, flui. “Estados mentais” sucedem-se uns aos outros nela. Se pudéssemos dizer “pensa-se”, do mesmo modo que “chove” ou “venta”, estaríamos afirmando o fato da maneira mais simples e com o mínimo de presunção. Como não podemos, devemos simplesmente dizer que o pensamento flui. (JAMES, William. The Stream of Consciousness. 1892)
O ritmo lento do texto vai de encontro à angústia e introspecção da personagem, seu isolamento pessoal indica que um tempo que passa devagar, seu mundo particular independe de tudo á sua volta. O estilo de Clarice atinge o mais profundo das personagens sondando seu mais complexo psicológico.
Assim como o tempo, o espaço também fica em segundo plano, o narrador apenas menciona partes da casa onde Virgínia vive e cria suas peças (o pátio usado como local de trabalho e o rio onde busca sua matéria prima, o barro). Não descreve algum lugar específico, pois seu olhar é para o interior de Virgínia, seu espaço mental, seu mundo oculto.
A autora utiliza recursos para enfatizar alguns trechos (reverberação), reforçando alguma sensação ou sentimentos.
“Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa.”
“— Bonito... bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.”
“Amassava, amassava, aos poucos ia extraindo formas.”
“uma moça olhando...Muito, muito mais.”
Em “Os Bonecos de Barro”, o narrador evoca um receptor primário, aquele a quem este emissor absorve e enlaça no mais profundo universo psicológico da personagem. O narratário se vê envolvido nos questionamentos, nas angústias e anseios em que se desenrola a trama. Esta relação de proximidade, este diálogo intenso é fundamental na construção de sentido do conto. Este diálogo conduz o leitor, através das armadilhas, à busca de uma verdade oculta sob os relatos comuns da vida cotidiana.
“Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor.”
A linguagem narrativa do conto é intensamente poética, apresentando várias figuras de estilo, como sinestesia, prosopopeia, comparações e muitas metáforas. Como acontece em outros textos de Clarice, é comum a construção de frases inconclusas, um silêncio substancioso, algo que não foi dito por ter sentido em si mesmo.
“Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada...”
O momento da epifania mais marcante se dá ao final do texto. O momento de reflexão permeia a narrativa completamente, quando a personagem faz uma profunda constatação sobre as imperfeições dos bonecos, a palidez morta lhe perturbava a alma. Superando suas próprias limitações, Virgínia desenvolve alternativas sutis para assombreá-los através da forma e acrescentando terra ao barro, produz outro material que lhes dá um vago colorido. “Mas como fazer o céu?” A desestabilização interior, agitação a angústia a invade no clímax da história, mas novamente ela se reinventa... E recria.
“Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.”
A personagem conclui que nos momentos mais inquietantes e absurdos, onde nos achamos impotentes ou vencidos, podemos simplesmente por um momento, emergir de outra forma, transformar os obstáculos por si mesma.
“E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranquila”
Conclusão
No conto “Os Bonecos de Barro”, observamos uma profunda consciência da linguagem onde se depositam as imagens e metáforas, percebemos que o fator relevante é o próprio ser da personagem, característicos em Clarice Lispector. Atingimos o que somos e nos reconhecemos através das reflexões e questionamentos de Virgínia.
Nas entrelinhas e nos silêncios do texto, encontramos sentidos e significados na fala da personagem e do narrador, que nos levam de encontro a algumas certezas. A forma Clariciana de dialogar com o mais íntimo do ser humano, sua narrativa diferenciada e desordenada, leva-nos a um enfrentamento de emoções ainda adormecidas e repensar nossa existência.
Sua indagações, reflexões e metáforas tomam forma em nossa mente, saindo do limite da palavra e se manifestando de forma concreta na forma de pensar nossa complexa condição humana.
Referências bibliográficas
- estacaodapalavra.blogspot.com/.../entrevista-exclusiva-com-clarice.html
- JAMES, William, The Stream of Consciousness. 1892 http://psychclassics.yorku.ca/James/jimmy11.htm
- O Lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Publicado por: Elvira Livonete Costa
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