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A fragmentação na linguagem do narrador em As babas do diabo

Clique e confira uma análise acerca da fragmentação na linguagem do narrador em As babas do diabo.

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RESUMO

O presente artigo surgiu com a finalidade de analisar a presença e as diversas manifestações do narrador, suas tentativas através de uma linguagem fragmentada para a construção de um narrador pós-moderno, que diferente do narrador clássico, que nos repassa conselhos e ensinamentos, nos é apresentado um narrador que já não nos conta uma experiência própria, mas uma alheia, sendo assim definido como um observador, que está sempre à espreita, tentando captar novas cenas para suas páginas. Em As Babas do Diabo, temos uma narração feita por diversos ângulos e dois narradores. É uma narrativa que nos oferece possibilidades infinitas de compreensão, sendo aceitos diversos desfechos para uma mesma história, na qual o narrador faz com cada leitor um jogo aparente de sedução, como também faz a personagem do próprio conto. Assim como quem lê, também tenta encontrar um final para tudo aquilo que nos conta.

PALAVRAS – CHAVE: As babas do diabo. Narrativa. Narrador. Linguagem.

INTRODUÇÃO

O narrador pós-moderno distancia-se do narrador clássico, que quer ensinar algo e dar conselhos para o seu leitor o qual, segundo Benjamin “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros” (BENJAMIN, 1994, p.201), e o pós-moderno perdeu a capacidade de contar histórias próprias, será um narrador observador ou jornalístico, que irá relatar um acontecimento a partir de sua observação, preocupando-se apenas com a maneira que vai descrever a sua narrativa. Santiago, em uma discussão sobre o narrador na pós-modernidade, cria uma hipótese de que “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador” (SANTIAGO, 2002, p.45).

O narrador pós-moderno, sendo considerado um narrador observador, procura descrever uma cena ou um acontecimento alheios a si, dizendo-nos que “algum de nós tem que escrever, se é que isto vai ser contado” (CORTÁZAR, 2009, p.1), tentando, através de uma linguagem fragmentada, nos mostrar as diversas faces de uma mesma história a partir de um mesmo olhar. Em Cortázar isso se torna evidente quando o narrador procura, através das palavras concretas, nos contar algo solto, fragmentado e impalpável, e não consegue concretizar suas tentativas. Santiago nos diz que o olhar pós-moderno “é desejo e palavra que caminham pela imobilidade, vontade que admira e se retrai inútil (...). Ele é o resultado crítico da maioria das nossas horas de vida cotidiana” (SANTIAGO, 2002, p.59).

A CONSTRUÇÃO DO NARRADOR E A NARRATIVA EM CORTÁZAR

O narrador do conto “As babas do diabo” é Roberto Michel, tradutor e fotógrafo em horas vagas, que em um dia ensolarado desce do quinto andar de seu apartamento e caminha pelas ruas de Paris, e logo vai parar na ponta de uma ilha em uma pracinha. A partir daí, começa a observar um casal com idade aparentemente desigual, sendo que a mulher era loura e mais velha, o garoto de uns quatorze ou quinze anos. O garoto segundo Michel, parece estar nervoso, já que fica constantemente passando as mãos pelos cabelos e está trêmulo, parece haver entre os dois um jogo de sedução. Observando-os durante algum tempo, Michel tira uma fotografia do casal e dias depois em seu laboratório revela-a. Ficando incomodado com algo que vê, logo então faz uma ampliação e mais uma, pendurando-a na parede de seu quarto de frente para sua cama. E começa a observar mais profunda e atentamente a sua ampliação.

É a partir desse momento, um mês depois, que Michel vai tentar descrever o que viu na imagem da mulher loura e do garoto. Começa a decifrá-la de diversos ângulos, observando cada detalhe. Tenta de várias formas contar o que presenciou até o momento em que, com a objetiva de sua câmera, esperando a hora exata “certo de que enfim os apanharia no gesto revelador” (CORTÁZAR, 2009, p.5). Não encontra um modo para narrar a história, titubeia e não sabe por onde começar, percebendo que nem ele próprio irá conseguir, através da linguagem descrever “o insondável que aqui é preciso contar”(CORTÁZAR, 2009, p.1). Podemos perceber logo no início do conto as suas falhas tentativas em contar algo, mostrando ser um narrador frustrado quando afirma que

Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo. (CORTÁZAR, 2009, p.1)

O narrador em Cortázar narra em duas pessoas: primeira e terceira do singular. No início não sabe em qual pessoa narrar um fato que presenciou e fica criando conjugações desconexas. Tenta, através da linguagem, contar algo que é incontável, nos apresentando dessa forma, uma linguagem fragmentada, como um quebra-cabeça a ser montado, de modo a não revelar os fatos que ocorreram. Bem como afirma Benjamin que “metade da arte narrativa está em evitar explicações. (...) o leitor “é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1994, p.203).

O narrador que narra em primeira pessoa nos é apresentado como um narrador que está morto. E o que narra em terceira pessoa é o narrador que está vivo e presenciou a cena, tirando a fotografia do casal. O próprio narrador nos afirma estar morto e vivo quando diz que

Algum de nós tem que escrever, se é que isto vai ser contado. Melhor que seja eu que estou morto, que estou menos comprometido do que o resto; eu que não vejo mais que as nuvens e posso pensar sem me distrair, escrever sem me distrair (aí vai passando outra, com as beiradas cinzentas) e recordar sem me distrair, eu que estou morto (e vivo não se trata de enganar ninguém, veremos quando chegar o momento, porque tenho que começar de algum modo e comecei por esta ponta, a de trás, a do começo, que afinal de contas é a melhor das pontas quando se quer narrar alguma coisa). (CORTÁZAR, 2009, p.1)

Podemos perceber que o narrador, ao afirmar estar morto e por isso a distração não lhe seria um defeito, acaba o tempo todo se distraindo com ruídos vindos do exterior, ou seja, algo do passado que vê no mesmo instante em que conta a história. Essas passagens estão dispostas entre parênteses “(aí vai passando outra, com as beiradas cinzentas)”. Ruídos que distraem o narrador, o qual acaba não contando o que realmente viu. Logo deixa a critério do leitor o final e as possíveis conclusões que a história poderá abranger, segundo a maneira que cada um irá interpretar.

O narrador tem algo muito importante e mágico em suas mãos: a palavra, com a qual pode criar diversos mundos e personagens diferentes e, diversas vezes, deixar a critério de cada leitor o final da história. Assim analisa Giannini em relação à construção da narrativa.

A narratividade é o eixo criador do espaço midiático que permite estabelecer o elo entre contar e ouvir. No ato de contar da literatura, o mundo contado é o mundo da personagem, que por sua vez é contado por um narrador que se utiliza de recursos textuais linguísticos criadores, na literatura a imagem é construída com palavras. (GIANNINI, 2009, p.5)

É uma narrativa que abre espaço para um universo de possibilidades e interpretações, e assim dependerá do leitor realizar a sua compreensão individual. Tendo em vista que, no momento em que o narrador tenta transpor para a linguagem suas observações, as coisas lhe escapam e fogem de seu alcance. Conclui que uma transposição para o real é algo que torna-se quase impossível, já que nunca conseguirá descrever fielmente o que viu, percebendo que aquele instante foi precioso e único, e nem através da linguagem será tão perfeito quanto foi na realidade.

Assim nos afirma Izzo, em se tratando das tentativas de transposição do real para a linguagem que “no conto, no instante em que o narrador tenta concretizar a experiência insólita para a linguagem verbal ele se dá conta da imaterialidade das coisas e do aspecto fugidio da representação do que é o real” (IZZO, p.3). Em suas tentativas de tradução através da linguagem verbal, que logo são falhas, o narrador tenta buscar e encontrar um outro modo de transferência, e dessa vez utiliza a linguagem não-verbal, que seria a foto do acontecimento por ele presenciado.

Nem mesmo ampliando a fotografia o caso fica solucionado. Na verdade tudo fica cada vez mais complexo e confuso na mente do narrador, já que não sabe o que estava acontecendo no momento real em que tirou a foto. Logo busca através dos diversos ângulos que observa a fotografia, tentar desvendar o que de fato ali ocorreu, através daquele instante real que foi capturado por uma câmera, ou seja, uma imagem química, ali fixada na parede e para sempre presa em um quadro com apenas um clique.

O narrador não consegue compreender o que na realidade, no acontecimento observado por ele, aquelas pessoas estavam pretendendo ou planejando executar, se tinham algum plano em mente naquele momento. Algum tempo antes de tirar a fotografia, observa atentamente a cena, percebendo logo depois que havia a presença de um quarto personagem à espreita, observando o que ele também estava a observar. Havia entre a mulher loura uma tentativa de seduzir o garoto para alguma finalidade e atraí-lo para algum lugar distante daquele, onde possivelmente o mesmo sofreria algum tipo de abuso ou agressão, ou até mesmo pudesse ser traficado e consequentemente escravizado, talvez quem sabe por aquele que estava por um longo tempo observando toda a movimentação do lugar, dentro de um carro a fingir ler um jornal e fumar um cigarro.

É a partir desse cenário que Cortázar deixa seu leitor cheio de dúvidas e angústia, considerando o fato de que nunca são revelados os fatos a serem contados. É onde a narrativa vai se afundando cada vez mais em torno de si própria, levando consigo a linguagem, sem deixar com que o leitor saiba o que Michel captou em sua fotografia e o que logo depois com sua ampliação percebeu com mais detalhes. É um conto que nos apresenta um narrador pós-moderno que, ao narrar uma história, tenta transcrever através das palavras algo impalpável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber, através do conto, a construção de um narrador pós-moderno, que tenta nos mostrar através da linguagem “uma experiência proporcionada por um olhar lançado” (Santiago, 2002, p.44), nos fazendo refletir a partir de suas tentativas de contar algo, as suas falhas. Em se tratando do manuseio com as palavras, estamos diante de um narrador que se encontra em constante conflito consigo mesmo em se tratando de qual pessoa irá narrar e consequentemente a forma a ser narrada.

É uma narrativa na qual narrador e leitor dialogam entre si, fazendo com que todas as cenas descritas possam ganhar vida própria a partir da imaginação de nós leitores, tendo em vista que a literatura pós-moderna é repleta de enigmas e não revela os fatos como realmente são, deixando assim lacunas para que nós possamos preencher a partir de nossos pontos de vista, nos permitindo tirar nossas conclusões e imaginar um universo de possibilidades para o desfecho da história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. In: As armas secretas. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2009.

GIANNINI, Roberta. Narrativas ficcionais modernas em entremeios a partir de Julio Cortázar. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2009/resumos/R14-0024-1.pdf//>. Acesso em: 14 maio 2013.

IZZO, João Artur. O interdiscurso em Blow-Up e em Las Babas del Diablo. Disponível em: <<http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-izzo-cinema.pdf>. Acesso em: 17 maio 2013.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: Nas malhas da letra. Ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.


Publicado por: Ana Virgínia Oliveira

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