O LUGAR DA VIOLÊNCIA E DA URGÊNCIA NO ATUAL DEBATE DECOLONIAL: UMA LEITURA DE FRANTZ FANON
Breve dissertação, à luz de Frantz Fanon, acerca do lugar da violência e da urgência no atual debate decolonial.
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INTRODUÇÃO
As recentes manifestações ocorridas no Sul global, pautadas no antirracismo e com a atuação preponderante de sujeitos racializados, popularizaram alguns termos no vocabulário midiático global, como, por exemplo, decolonialidade, pós-colonialidade e anticolonialidade. Acerca das significações desses termos, Federici e Cusicanqui (2018) sugerem que “o decolonial é uma moda; o pós-colonial é um desejo e o anticolonial é uma luta cotidiana e permanente”.
Ainda que essas pensadoras defendam a sobrepujança da anticolonialidade em detrimento da decolonialidade, atitudes descoloniais também deveriam ser vislumbradas nos horizontes de expectativas das civilizações coloniais, posto que ainda se habitaria em uma continuidade colonial e não em um momento posterior ao colonialismo. Nesse sentido, o estudo acerca dos processos históricos de descolonização é fundamental.
Inserido nessa necessidade social, o livro de Os condenados da terra (1961) apresenta contribuições essenciais ao atual debate decolonial, trazendo questões acerca da violência da descolonização enquanto um processo histórico que almejaria uma transformação social no mundo colonial. O texto é de autoria de Frantz Fanon (1925-1961), importante psiquiatra e filósofo político natural do território ultramarino da Martinica.
VIOLÊNCIA DA DESCOLONIZAÇÃO
De acordo com Fanon (1961), seja qual for o nome dado ou o nível abordado, um processo de descolonização é dado a partir de uma substituição total, completa e absoluta de uma “espécie” de homens pela criação de outra, sendo sempre um fenômeno violento. Se o primeiro encontro entre colonos e colonizados deu-se sob o signo da violência, então a descolonização assim também seria, a partir da afronta mortífera e decisiva entre os dois antagonistas. Ainda nesse sentido, o objetivo final dessa substituição protagônica e de unificação em um mundo pós-colonial só seria possível com a aplicação de todos os meios, incluindo a violência, posto que a disposição descolonial de conversão da história em ação seria absolutamente violenta (FANON, 1961). Desse modo, se a herança dos colonos é a violência, as amarras coloniais, que perduram até hoje, só poderão ser destruídas por meio dela.
Ainda segundo Fanon (1961), a descolonização, enquanto encontro de forças antagônicas, seria um processo histórico. Por isso, ela não deve ser compreendida somente em si e para si, mas sim a partir do movimento histórico que lhe dá forma, sentido e conteúdo. Sendo a transformação de espectadores esmagados pelo sistema colonial em atores privilegiados, a descolonização seria um “programa de desordem absoluta” (FANON, 1961, p. 30), não podendo ser o resultado de uma operação mágica, de um entendimento amigável ou de uma sublevação natural. O processo descolonial seria, assim, resultante de uma união popular em torno de um propósito e contra a dominação autoritária do colonialismo.
DESCOLONIALIDADE: MODA OU URGÊNCIA?
Seguindo os pressupostos de Fanon (1961), toda descolonização teria seu ponto de partida em uma reivindicação mínima do sujeito colonizado, tendo seu êxito no desejo de uma modificação total de um panorama social. Inicialmente, essa vontade de mudança estaria presente apenas na consciência, na vida e na expectativa dos colonizados, existindo em sua forma bruta, impetuosa e constrangida. Exigindo a entrega total da situação colonial, o processo de descolonização seria guiado pela própria razão dos colonizados (FANON, 1961). Uma verdadeira descolonização deve ser resultante de lutas empreendidas pelos próprios dominados.
Fanon (1961) ainda sugere que, em seu desenrolar de justa inversão das coisas, a massa colonizada escarneça da supremacia dos valores brancos do colonizado, invada as cidades proibidas dos colonos de forma violenta e destrua, assim, a zona dos colonos, provocando abalos na estrutura dicotômica do mundo colonial e unifique esse mundo. Nesse desdobramento, toda a descolonização, em seu objetivo de vencer todos os obstáculos, seria um êxito (FANON, 1961). Assim, em uma lógica processual histórica, a subordinação imposta pelas autoridades coloniais acabar-se-ia a partir da força. Em uma atitude evidentemente violenta, a autoridade dos colonos seria substituída pela autoridade dos colonizados.
Apropriando-se do repertório histórico dos processos revolucionários, as considerações de Engels (1873) ajudam a elucidar essa proposta urgente de descolonização violenta de Fanon (1961).
Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários (ENGELS, 1873).
A partir desse processo, o ser colonizado, ainda em estado de coisificação, seria afetado e modificado, tendo o seu lugar ocupado pela criação de homens novos por meio do próprio processo pelo qual ele próprio se liberta. Nessa formação, haveria a introdução de ritmos próprios e de novas linguagens, universos e humanidades nesse novo panorama social. Com esse processo, o colonizado se descobriria enquanto ser, que física e intelectualmente é idêntico ao mesmo colono que o escravizou (FANON, 1961). Por esses motivos de transformação e criação, qualquer ação de descolonização nunca deve ser tida como despercebida pelas forças antagônicas que se encontram no campo de batalha desse processo inerentemente violento.
Entretanto, seja em regiões coloniais tomadas por lutas de libertação ou não, Fanon (1961) aponta que, durante o longo período de descolonização, o fenômeno de saturação dos valores brancos pode ser dissimulado e desvirtualizado. Tomado pelos planos do universal abstrato e do individualismo do ocidentalismo colonialista, isso se daria em virtude dos diálogos de alguns intelectuais colonizados com a burguesia do país colonialista - em uma dimensão colonialista de um “transformismo molecular” (GRAMSCI, 2002). Ademais, a burguesia colonialista, em seu monólogo narcisista, também passaria a incentivar o estabelecimento de contatos diretos com as elites em vias de libertação, a fim de continuar garantindo a execução de seus interesses colonialistas na região, o que renasceria o mundo colonial das cinzas.
Nesse momento de entabulação, em detrimento de certas individualidades autóctones, a população colonizada passaria a ser vista somente como indivíduos de uma massa indistinta, perdendo o seu caráter de atores desse processo histórico. Com essa ligação ao colonialismo, mesmo com o curso de processos dito descolonizadores, haveria a permanência do maniqueísmo do mundo colonial, o que conservaria a desigualdade, a dicotomia, a segregação, a opressão, a exploração e a dominação do antigo mercantilismo colonial. Assim, Fanon (1961) suscita que uma verdadeira descolonização só será possível com o estabelecimento de reais e profundos contatos com o povo e suas pelejas e não com as burguesias colonialistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desconstruindo a noção de decolonial enquanto mera “moda” (FEDERICI; CUSICANQUI, 2018), a proposta descolonial de Fanon (1961) traz contribuições substanciais aos conceitos de decolonialidade, pós-colonialidade e anticolonialidade. Precisando ser reivindicada como tal, a luta descolonial, que possui real protagonismo dos colonizados, seria contínua, uma vez que ainda se vive em continuidades coloniais e não em um almejado pós-colonialismo. Entretanto, além de externa ao atual imperialismo, a peleja decolonial também é interna contra os sujeitos que tentam dissimular e desvirtualizar a verdadeira libertação das amarras do colonialismo. Sendo um processo histórico que buscaria uma transformação social e sendo também um movimento histórico, a violência de descolonização seria legítima e não deveria ser esnobada pelas potências coloniais e pelos círculos intelectuais de ambos, mas sim entendida como o início do fim da colonialidade.
REFERÊNCIAS
ENGELS, Friedrich. Sobre a Autoridade. Arquivo Marxista na Internet, 1873. Disponível em: https://marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridade-pt.htm. Acesso em: 04 jul. 2020.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Editora ULISSEIA, 1961.
FEDERICI, Silvia; CUSICANQUI; Silvia Rivera. Conversatorio. XVIII Feira Internacional del Libro, 14 out. 2018. Disponível em: https://vimeo.com/335774684. Acesso em: 16 fev. 2022.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Publicado por: Lucas Barroso

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