ESTRATÉGIAS, RESISTÊNCIAS E TÁTICAS: A ARTE DE NARRAR DE ALGUNS OCUPANTES DO PA CANTA GALO
Confira uma análise da Ocupação do P. A Canta Galo, e saiba como originou os Assentamentos no município de Confresa/MT.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
RESUMO
O presente trabalho analisa a Ocupação do P. A Canta Galo, e como originou os Assentamentos no município de Confresa/MT. Procuramos identificar os discursos e as estratégias utilizadas pelos depoentes na reconstrução da memória no processo de ocupação, buscando, sobretudo privilegiar as fontes orais, e identificar os diversos agentes sociais, bem como o papel que eles desempenharam na construção histórica do Assentamento. Refletindo sobre as redes sociais construídas, tanto na coletividade, como na singularidade, as nossas análises se concentram nos grupos de posseiros, em suas práticas e instrumentos utilizados nas experiências históricas de lutas e conflitos no seu cotidiano. Neste vasto conjunto, nos propomos ater a um campo de investigação, a partir do final da década de 1980 e inicio da década de 1990. Entretanto, tomaremos como fonte documental: fotos, relatos orais, mapas, documentos do INCRA, arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia/MT, que nos ajudaram a interpretar as redes de diferenciações existentes nos espaços sociais dentro do assentamento, identificando como ponto referencial desta pesquisa ocupações, conflitos e memórias.
Palavras-chave: assentamento, narrativas, ocupação e relatos orais
O presente artigo procura entender a ocupação do Assentamento Canta Galo, de onde vieram os primeiros moradores, e porque vieram; perceber as dificuldades para se estabelecerem na terra e, sobretudo, analisar os discursos e estratégias usadas pelos depoentes na reconstrução da memória deste processo de ocupação. Privilegiamos os relatos orais registrados a partir de entrevista com ex-posseiros, hoje parceleiros.
O povoado Canta Galo situa-se à margem da BR 158, Km 717 na microrregião norte Araguaia. Ocupa atualmente uma área de 314.440,406 ha e está distante de da capital Cuiabá 1.165 Km, da sede do município de Confresa 30 KM.
Desse modo, nos propomos a perceber as redes de diferenciações e artimanhas usadas nas estratégias de emboscadas[1] no cotidiano dos assentados. Sobretudo, no fim da década de 1980 e inicio da década de 1990, se observarmos as experiências sociais e individuais de grupos específicos, assim como o estudo de um assentamento em particular, buscando relacioná-los a demissões sociais mais amplas reveladoras de condições políticas econômicas e culturais.
Isto significa compreender as estratégias de domínio da área do assentamento, como os grupos sociais se deslocaram, homens e mulheres incentivados pela frente de trabalho e, sobretudo as atividades de exploração de madeira, e agropecuária e a posse pela terra irão constituir ao longo das rodovias um grande número de assentamentos que futuramente se tornarão vilas e povoados, assumindo papel civilizador, de novos espaços sociais no território do Araguaia.
É interessante compreender os primeiros momentos de abertura das áreas de assentamento e como os proprietários de terras utilizavam diversos instrumentos de violência, como forma de estratégia com a intenção de controlar os espaços ocupados pelos vários grupos de assentados. Contudo, as diversas práticas de violência eram justificadas pelos proprietários bem sucedidos com a idéia de progresso. Utilizamos à abordagem em escala micro-sócioespacial, partindo das analises da experiência de ocupação do assentamento Canta Galo, para tratarmos de questões significativas em relação às disputas de terras, podendo ainda contribuir para melhor compreender os conflitos agrários no território do Araguaia.
Este estudo procura afastar-se dos grandes temas da historiografia, não é nossa intenção produzir uma heroificação dos atores sociais, mas interpretar os signos do tempo presente tendo como eixo central os relatos orais de pessoas comuns, que através da arte de narrar expressam seus anseios e desejos particulares. Num plano mais geral a idéia que procuramos passar são as condutas, relações práticas e experiências cotidianas pensando, contudo, como estas práticas foram constituídas no decorrer das transformações culturais no assentamento, produzindo assim uma sociedade que constrói e reconstrói sua própria história através dos tempos.
Ao perguntar ao Sr. Paulo Resplande como era o local, ele disse “[...] não tinha abertura na mata, as pessoas tinham que chegar e fazer suas picadas de terras”[2].
Através dos relatos percebemos que as dificuldades para se estabelecer na terra eram de certa forma enorme, muitos deixavam suas famílias e vinham de camionete, carona e até mesmo a pé, enfrentavam as doenças e a falta de transporte, e o perigo das matas. Mesmo assim os posseiros eram insistentes, como nos relata o Sr. Alderino: “[...] a necessidade da gente possuir uma terra, fazer um plantio, ter coisas pra comer, fartura na casa e lutar pela vida, né![3]
O depoente reconstrói em seu discurso a representação da terra de fartura, a terra da esperança, a terra iluminada que iria trazer a solução dos seus problemas. Segundo Montenegro, (2001 p. 19) “[...] o processo de reconstrução ou de produção do relato opera em uma dimensão em que partindo do acontecido, a memória, como um elemento permanente da vida atende um processo de mudança ou de conservação”.
Em pouco tempo, o número de acampados aumentava, muitos traziam suas famílias e amigos para ocupar um pedaço de chão, abriram caminho no meio da mata e começaram a plantar suas roças.
Ao permanecerem na terra, os posseiros passaram a ser perseguidos pela proprietária da fazenda que fazia constantes ameaças na intenção de intimidar os posseiros levados a desistirem das terras. José Ribamar nos relata que: “[...] Eles vieram aqui, queimaram as roças e derrubaram os barracos”.[4]
Estas violências e ameaças ocasionavam um sentimento de medo e insegurança a todos os acampados, mulheres, crianças também passavam por este processo repressivo. Cada dia que passava mais intensa a perseguição ficava, segundo o relato de seu Messias “[...] botou três pistoleiros para olhar a terra, todo dia vinha da Frenova e passava, aqui olhando a terra, botou gente pra anda de pé com a changa nas costas”.[5]
Com isso, o cotidiano dos posseiros era marcado pelo confronto, tinham que trabalhar ao mesmo tempo usar das estratégias para não serem pegos de surpresa no meio da mata, segundo relatos de vários moradores que viviam no acampamento.
Não havia negociação por parte dos proprietários, mas apenas constantes ameaças. Uma das formas de intimidar usada pelos proprietários foi a ajuda da polícia para retirar os posseiros de suas posses.
O Sr.Osvaldo Pires relata como aconteceu: “[...] uai, ela botou a policia para nos tirar daqui, e nóis saia e fomos despejados em Porto Alegre, largaram nóis no meio da rua”.[6]
Esta atitude da policia expressa a relação de força e poder entre a proprietária da fazenda e os ocupantes, deixando os posseiros quase sem ânimo para continuar.
Portanto, o que se percebe nos relatos é que também havia certas negociações entre policia e posseiros, ou táticas da polícia para persuadir os posseiros a se retirarem da terra.
[...] Domingo Vera vinha na frente e atrás vinha a policia, até que Osvaldo jogou a espingarda dentro da água, mas ninguém correu, nós era um povo que agüentava sem briga, mas firme. Eles chegaram conversando deixou nós comer arroz que estava cosido, e me chamou para fora e disse: - Com quinze dias vocês voltam só para mim que ele disse isso[7].
Acordo este duvidoso, pois a polícia sempre aparecia junto com os fazendeiros ou então com pistoleiros. “[...]. Ai entrou a polícia com os pistoleiros e tirou todo mundo daqui”[8]. Para compreender as estratégias e táticas, utilizo como referencial Michel de Certeau (1994, p. 99) define estratégias “[...] como a manipulação das relações de forças que se tornam possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder”. Enquanto que a tática Michel de Certeau chama de “[...] a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio, a tática não tem por lugar se não o do outro”. (1994 p. 100). Estas manipulações de relações de forças estão expressas nos vários relatos orais, onde uma ação estratégica de saber e poder descrevem e narram as mais adversas atitudes, que se constituem a partir, do sujeito e um determinado tempo e espaço. As maneiras de falarem e de fazerem permitem pensar práticas cotidianas no Assentamento, como surpresas táticas as quais Michel de Certeau destaca que: “[...] gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecido pelo “forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcias de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos” (1994, p. 104). Dentro desse jogo de enfrentamentos é que o posseiro passou a armar uma rede de ações múltiplas a fim de se proteger com sua família, criando uma esfera de defesa e ataque dentro dos espaços de ocupações. Os comportamentos e atitudes vividos pelos vários depoentes nas relações cotidianas mostram imagens, símbolos, e signos que se revelam conscientemente ou não as estratégias e táticas utilizados por esses atores sociais com objetivos de se manterem firmes em prol de conquistar a tão sonhada terra.
Os relatos orais durante a pesquisa nos permitiram conhecer as experiências sociais vividas coletivamente e individualmente, reconstruindo a memória comum sobre o passado de um grupo que vive se relacionando e exerce poderes nas múltiplas relações interpessoais cotidianas.
A vida cotidiana dos posseiros não estava apenas permeada pelas relações de grupo dos assentados no acampamento, havia participações da Igreja Católica, do vereador Fernando, da cidade de Santa Terezinha – MT.
Também contava com o apoio do prefeito de Santa Terezinha, Sr. Tadeu Martins Scami, do Governador do Estado, na época Carlos Bezerra que, segundo os posseiros, foi o principal negociador para que as terras fossem liberadas. “[...] se não fosse o Carlos Bezerra estas terras não teriam sido liberadas se fosse ao tempo de Júlio Campos nós tinha apanhado ou morrido aqui dentro”[9].
Ainda contava com o apoio de posseiros de outros assentamentos como da Independente I, e de Jacaré Valente, que também se encontravam em conflito, com fazendeiros que se diziam ser proprietários das terras que estavam ocupando.
Diante desta situação de conflito, os posseiros se uniram, formaram uma parceria, para resistir à pressão dos proprietários, nos relatos podemos perceber a relação entre os posseiros “[...] Ajuntava a parceria de uma área, com a outra área e se caso o conflito era aqui no Canta Galo, às vezes vinha à turma do Jacaré Valente, lá também estava em conflito, e outras áreas vinham para ajudar”[10].
Como considerou Guimarães Neto (2003, p. 49)
É possível perceber que ao mesmo tempo, que se estabelece à rede de diferenciações pode se ter como ponto de partida da analise dos espaços sociais, que se combinam um no outro,armando a dinâmica das inteirações entre os personagens que os habitam.
Entende-se que os espaços sociais vividos dentro destes assentamentos, se entrelaçam mesmo que cada um tenha sua especificidade, chegando a um certo ponto em que eles se combinam, formando assim uma rede de solidariedade entre si e que diante desta relação irá aparecer uma multiplicidade de memórias fragmentadas como destacou Portelli (1994 p.106) “[...] Na verdade estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente dadas”.
Muitos posseiros colocaram em risco a própria família como nos relata o Sr. Alderino “[...] Eram quatro pistoleiros, mais nóis estava com 16 meninos, com a mulher e 16 meninos, o pistoleiro veio onde eu estava arrumando os trens, engatilhou a carabina em mim e disse: arruma ligeiro. Eu disse: não meu amigo, não é do jeito que você esta pensando”[11].
Esta situação expressa a aflição do posseiro diante das ameaças dos pistoleiros, as crianças e as mulheres presentes neste cenário violento, de certa forma, servia de escudo para que não ocorresse uma tragédia ainda maior.
Além do mais, sofriam com a demora excessiva e a burocratização dos procedimentos de desapropriação, que envolvia, em muitos casos, uma sucessão de vitórias, revisões e atualizações cadastrais que faziam com que os processos se arrastassem por vários meses e até anos, dificultando a solução dos problemas. A morosidade da tramitação desses processos corresponde uma agudização dos conflitos nas áreas de desapropriação.
Para Eudson de Castro (1999, p. 213). “[…] Às áreas prioritárias para fim de reforma agrária são aquelas em que se instalam os focos de tensão social, áreas que predominam o conflito e a violência da luta pela terra”.
Através da luta dos posseiros para ter acesso a terras que se desencadearam as ações governamentais e apareceram as entidades mediadoras que se empenham no estabelecimento de políticas fundiárias na intenção de resolver os graves problemas fundiários, no Estado do Mato Grosso. As terras no Projeto de Assentamento Canta Galo só foram liberadas após intensos conflitos gerando várias mortes, a resistência e a luta pela terra é uma característica importante na consolidação do Assentamento, nesta perspectiva, a posse se constitui numa prática de reforma agrária, enquanto a ocupação e distribuição de terras são em forma de processo de luta política.
A luta pela terra é um processo complexo que assume diferentes formas. Situa-se dentro do contexto da luta pelo espaço e ruptura de poderes constituídos que segundo José Evaldo Gonçalo (2001, p. 50).
O sucesso ou não da luta pela terra não depende apenas das condições estruturais como do nível da luta e dos arranjos de classe num determinado momento. Cada processo de luta pela terra representa uma multiplicidade de significados por agentes sociais distintos.
Na visão deste autor, cada experiência é, portanto particular, com uma dinâmica própria nas relações dos indivíduos com a terra e com o espaço. Cada qual tem suas exigências e manifestações próprias, implica em dizer que se tem não uma luta pela terra, mas tantas lutas quantos forem os grupos socialmente identificados. Mesmo que existam demandas individuais em uma luta coletiva. O quadro conflitante que se encontrava no assentamento Canta Galo contribuiu para que os posseiros se organizassem e preparassem uma estratégia de luta, para se protegerem dos pistoleiros.
Mesmo entre eles, usavam táticas para pressionar alguns a entrarem, na luta. Como podemos observar na fala do depoente: “[...] O Davi me chamou, vamos lá fazer trincheira, quem não for vai ficar sem terra[12].
A expressão "vai ficar sem terra" é um discurso que tenta retratar as relações de forças existentes entre esses grupos sociais, que criavam verdades conflituosas.
Phul em sua dissertação de mestrado, (1983, p.98) ao comentar sobre as estratégias usadas pelos posseiros diz:
A tática é muito mais presente no cotidiano da vida individual de cada posseiro e depois parceleiro. Suas expressões são muitas nos relatos e nas ações que se descrevem e narram, aproveitam as ocasiões, às vezes, mais observar para tirar proveito de forças contra as quais lutavam. São disfarces, fugas, recuos, simulações, palavras evasivas, meias verdades, acordos provisórios, etc.
As estratégias usadas pelos posseiros produzem práticas sociais de um grupo disposto a usar de todos os meios cabíveis para se manter na terra, e atingir os vários interesses em jogo. Um dos meios utilizados para superar a perseguição dos proprietários, que usavam de meios violentos, foi realizar uma reunião e planejar uma emboscada, como narra o Sr. Alimpio Ferreira:
[...] aí, pois o Ari de “isca”, você faz o que está pegando peso, quando eles arrochar o carro você corre a turma estava entrincheirada na mata, quando o carro apontou naquela curva o Ari grito: __ Aí vem os homens. Aí fez que estivessem pegando peso, quando foi chegando perto o Ari jogou a mochila nas costas e correu pra dentro da mata, os pistoleiros na toada que vem na Toyota deu uma rabiada e o cascalho cobriu e desceu do carro atirando[13].
O relato transcrito revela as estratégias de resistência diante das tensões vivenciadas por estes atores sociais, que procuravam conquistar um território, assinalado pelos constantes deslocamentos à procura de terra e trabalho. Com isso, se opunham, aos pistoleiros com violência, no intuito de se protegerem das ameaças.
Outro depoente comenta como organizaram a emboscada.
[...] Uns fica entrincheirado aqui e os outros vai pra lá e funciona a moto serra, jeito que os pistoleiros chega e disse: Está ai. Quando foi cedinho, os pistoleiros pararam a Toyota, lá escutou o barulho do moto serra, foi descendo da Toyota e o fogo comendo[14].
No depoimento ele ressalta as estratégias das emboscadas destes homens, para que a emboscada desse certo, o funcionamento da moto serra dentro da mata para atrair os pistoleiros, a "isca" no meio da estrada, tudo bem planejado.
É importante não esquecer que o medo os levaria a se armarem, pois a intenção dos pistoleiros não era negociar, e sim espancar, ou até mesmo matar, para não deixar as terras nas mãos dos posseiros. Porém os posseiros foram "espertos" se organizaram e lutaram de forma corajosa para ficar com as terras.
Neste conflito dois pistoleiros morreram na divisa da fazenda Pedregulho, um morreu no hospital de Porto Alegre do Norte/MT e outro embaixo de um pé de murici. E em seguida a luta na mata, os posseiros colocaram fogo na Toyota, que era utilizada pelos pistoleiros, os depoentes dizem não saber o nome dos pistoleiros, a maioria relata não estar presente na emboscada, veja este relato de Osvaldo Pires. “[...] Então os que fizeram o conflito não era os mesmos daqui eles deixaram os de fora vieram e fizeram a "coisa" e vazaram para não complicar os daqui. Às vezes têm muitos que fala foi fulano, foi cicrano mais isto ai é jogo”[15].
O significado deste discurso requer uma análise mais criteriosa. O que levou estes posseiros, se omitirem de participarem dos assassinatos? Esta omissão estava relacionada á intenção de "inocência", procuravam produzir uma imagem de que tinham sido obrigados a matar para se proteger e que posseiros de outros assentamentos é que seriam os verdadeiros culpados.
Diante os fatos ocorridos nesta área de conflitos procuramos buscar fontes documentais que nos ajudassem a entender o porquê das mortes dos pistoleiros, sendo que alguns dos depoentes se omitem de comentar sobre a questão, a intenção deste estudo não é descobrir quem matou, mas sim como ocorreram as tramas que levaram o conflito a chegar a este nível de tensão. Ao pesquisar alguns documentos do arquivo da equipe pastoral de Porto Alegre do Norte – MT fiquei impressionado ao ver os acontecimentos ali registrados. Percebe-se que houve varias tentativas de trabalhadores em negociar com os fazendeiros, porem os mesmos se recusaram em negociar com os trabalhadores, as agressões eram constantes e algumas famílias foram despejadas, o documento registra a morte de um pistoleiro da Frenova, ex-sargento da PM de Mato Grosso do Sul, no dia 18 de agosto de 1988.
Através dos relatos entende-se, que a relação entre os vários grupos era intensa, influenciando vários homens e mulheres a saírem do território por causa das ameaças de morte, e também pelo descaso das autoridades em resolver os problemas. A omissão total da policia nos casos que envolveram posseiros como vitimas, confirma esta estreita ligação fazendas e poder público, e se fortalece na intervenção imediata quando a fazenda agredida.
Em muitos casos, até o Bispo Pedro Casaldáliga, era perseguido e ameaçado de morte pelos políticos, mesmo tendo provas o suficiente dos envolvidos nos conflitos desencadeados não seria difícil localizar os culpados. Voltamos a refletir sobre os acontecimentos do dia 18 de agosto de 1988, no projeto de assentamento Canta Galo. Para uma analise mais criteriosa utilizamos o relato do Senhor Alimpio Ferreira dos Santos de 56 anos de idade, pai de 3 filhos, que saiu do Estado da Bahia e mudou-se para o município de São José do Xingu – MT, e no ano de 1988 mudou-se para Fazenda Pedregulho, próximo do local onde ocorreu a emboscada do P.A Canta Galo.
[...] Ai surgiu o grilo, eu tirei uma terra o fazendeiro nem sabia que eu tinha tirado, nós tirava meio escondido, nós vinha só no final de semana, nós era uns 7 (sete) tirava o dia trabalhando duas horas pra cada um até chegar o derradeiro, o derradeiro completava aquela hora que faltava no outro sábado. Derrubamos o barraco no mês de setembro ai já tinha acontecido o ato. Ai nós estava na fazenda com um pouco chegou 3 (três) viatura da policia de São Felix do Araguaia para buscar nós, nós estava trabalhando na Pedregulho eles disseram: - Estes homens têm terra. Nós dissemos: - Não. Até que eles nos deixaram. Na outra semana quando pensa que não chegou três pistoleiros de Cuiabá, todo dia vinha na fazenda e passava na Pedregulho chegava e falava: - Nós estamos aqui para tirar estes posseiros, nós estamos ganhando $ 7 Cruzeiros, nós ganhamos $ 7 Cruzeiros por orelha se conseguimos tirar nos tem uma camioneta zerada na casa. Eles ganhavam para tirar o povo, naquilo cada picada que eles viam entravam, e chegava lá não tinha ninguém ia à outra. O Ari Ventinha que tinha uma terra acolá, ele e o Mateus, e outro que não sei o nome, estavam trabalhando o Ari fazendo comida, ai o Mateus falou: - Ari, se você vê movimento você corre, nós vamos pegar o eito lá no meio do siri. Naquilo eles chegaram caladinho e abafaram ele no barraco, ai tomou os trem e queria ele fazer dar conta, ele disse:- Eu estou sozinho. Então vamos embora, arruma os trem, pegou os trem arrumou e tocou o Ari na frente saiu do barraco e disse: - Agora você fica de quatro pé. Ai pegou a feira e amarrou nas costas do Ari, chegou lá na frente disse: - Agora você rola ai no chão não derruba a carga não, o Ari deitava pra lá e pra cá, é o meu burrinho é bom de carga, não derrube a carga, no lugar onde você derrubar você fica assim vieram até a BR 158[16].
O relato do senhor Alimpio transcreve sua trajetória de vida até chegar para trabalhar na fazenda Pedregulho, um homem sofrido que procurou para si um pedaço de chão, que ao mudar-se para a área do Canta Galo consegue grilar uma parte de terra escondida do patrão. O fato de ser escondido estava relacionado ao medo que alguém soubesse que estava envolvido na grilagem, e viesse a perder a posição de empregado que havia conquistado, ou até mesmo a própria vida, pois os pistoleiros eram pagos para tirar os posseiros das terras, ocasionando assim um jogo de interesses; o posseiro em conquistar a terra, o pistoleiro em obter lucro pelo trabalho de expulsar os posseiros, e os fazendeiros em continuar com suas propriedades sobre seus domínios sem dividir com ninguém. Proporcionando assim uma luta pelo espaço territorial, demarcado pela violência, e contradições e tensões na luta por terra.
A maneira como Ari Ventinha foi tratado expressa a forma desumana que os pistoleiros atuavam contra os posseiros, a humilhação sem duvida seria a marca que dificilmente sairia do imaginário deste personagem, que talvez pensasse consigo mesmo se chegaria ao fim do caminho com vida, o cansaço a sede, a lembrança dos filhos, tudo isso passavam em sua memória até o momento em que sem saber por que eles desistem e soltam-no no meio da rua sem lhe tirar a vida. Estas atitudes faziam com que estes assentados se organizassem para se proteger, era uma questão de sobrevivência, de vida ou morte.
[...] O Alderino chegou com a mudança ele e a família, ele tinha um rapazinho. Enquanto um estava dormindo o outro ficava vigiando a noite toda a mulher dele não dormia ficava dentro do barraco morrendo de medo’’ eles dentro da mata prestando atenção[17].
A vigilância passou a fazer parte do cotidiano dos assentados, pois envolvia a todos na família, as crianças ficavam assustadas, a mãe que não dormia de preocupação e medo, na expectativa de a qualquer momento sair correndo para dentro da mata com os filhos que não eram poucos. “[...] Passava um pouco meio apertado estava trabalhando quando pensava que não a camionete chegava e nós caia na mata, eu ficava abaixadinho no meio da mata, o carro passava e eu voltava de novo, sempre ficava 45 homens no barraco junto com as crianças”[18].
A preocupação na área ocupada era dupla, com o trabalho e com os pistoleiros que podiam chegar a qualquer momento para afrontar e violenta-los, eles ficavam preparados para tudo e não deixava as crianças sozinhas no barraco. “[...] Não podia chegar uma pessoa de fora que a gente ficava de olho no cara. O cara tinha que se identificar e dizer o que veio fazer. Uma turma dormia e as outras vigiavam o barraco”[19]. Qualquer pessoa que passava pela BR 158, e aproximava-se do acampamento gerava desconfiança, a perseguição envolvia a todos nesta área de assentamento, nem mesmo as plantações e os barracos escapavam das depredações que era uma forma de intimidar os assentados a desistirem das terras, como nos relata o Sr. Alípio:
Quando fazia roça eles queimavam, vinham oito horas da noite, a roça só sapecava, desmanchava os barracos, rasgavam os plásticos se tivesse cereal, colocavam no carro e levavam, era desse jeito tinha que vazar. Eles andavam cada um com uma espingarda 12 mm um revolver e uma carabina de 20 tiros, uma enxada, um enxadão, uma corda tudo dentro do carro[20].
O modo como os pistoleiros se armavam à marca do revolver, e a ação de depredar, permanecem impregnados na memória dos moradores do assentamento que recuperam a memória através das lembranças dos acontecimentos vividos no passado em um determinado tempo. Segundo Le Goff: (1996 p. 447). “[...] A memória traz o passado ao presente para reconstruir parte da história com a voz de que a viveu”.
È através da memória que podemos reconstruir o passado no tempo presente, revelando verdades ocultas que poderão servir de instrumento de aprendizagem para determinado grupo social. Para Montenegro (2001 p. 19). “[...] A história opera sempre com o que está dito com o que é colocado para e pela sociedade, em algum momento, em algum lugar”.
Partindo do que está dito pelo depoente é que procuramos entender o acontecido na memória coletiva de um grupo ou de um individuo que se relaciona, produzindo comportamentos e atitudes próprias.
As estratégias de luta usadas pelos posseiros envolviam mulheres e crianças e assentados de outros assentamentos e também de algumas cidades como Vila Rica e Porto Alegre do Norte. Organizavam-se de tal maneira que sabiam justamente quando os pistoleiros iriam passar por tal lugar. O senhor Alimpio relata a participação de dona Irene na vida cotidiana dos assentados, e a sua ajuda na emboscada.
[...] A Irene foi a Santa Terezinha e arrumou doze plásticos para tampar o barraco, e lá na emboscada arrumou feira pra o povo, trouxe bastante remédio assim mesmo tinha o povo do Domingo Vera que as pernas fazia dó, todo cheio de feridas com aquilo quase não ficava em pé, assim ela foi ajudando trazendo um remedinho e ejeção. Quando acabou ela voltou e trouxe mais remédio[21].
A participação de dona Irene foi fundamental para os posseiros que ficavam longe de recursos como remédios e alimentação Pois de alimentavam de caças e quando precisavam de alguma coisa tinham que ir para Confresa ou Vila Rica, um Vereador da cidade de Santa Terezinha/MT, ajudou de maneira significativa na luta pela conquista das terras no Assentamento.
[...] Qualquer coisa que ocorria o Fernando dava um pulo aqui, a turma vinha atrás do Domingo Vera, o Fernando disse: - Pode vazar que esta turma não esta certa. O Domingo Vera saiu daqui sete horas da noite foi ficar daqui uns 10 quilômetros só de bermuda, no outro dia juntamos uma turma e fomos atrás dele andamos dois dias, achamos ele com os braços e as pernas todo retalhadas de navalha, trouxemos ele foi embora era só o Fernando saber de alguma coisa que vinha avisar[22]
A ajuda de dona Irene e do vereador Fernando trouxe motivação ao grupo de assentados que se mantiveram firme em busca da liberação das terras, eles não estavam sozinhos, faziam parte de uma rede que se relacionavam em prol de um bem comum. Segundo Phul (1983 p. 53 ):
O relato individual se enraíza na memória construída e aprendida nas experiências sociais vividas pela coletividade e, ao mesmo tempo, se constituem de tanto ouvir histórias que contam do grupo que vive, se relacionam e exercem poderes nas múltiplas relações interpessoais cotidianas.
As experiências vividas no assentamento por dona Irene e o vereador Fernando se relacionam mesmo que cada um tenha contribuído de forma diferente, exerceram poderes múltiplos nas relações pessoais cotidianas, vividas pela coletividade a partir de relatos como do senhor Alimpio, podemos perceber como era a conduta da proprietária com os posseiros:
[...] Com a Silvana não tinha negocio, você ia comprar ela não vendia queria vender 200 alqueires, 500 alqueires, ai o povo reuniu e grilou, juntou uma turma e grilou lá da Confresa, na entrada da destilaria até chegar ao corró, e vem outra turma e entrou nesta área nossa aqui. A Silvana é uma mulher alta, branca, tipo gaúcha, andava de bota chapelão atolado na cabeça, 38 na cintura era alegre e conversadeira dava atenção pra todo mundo, pegava na mão, mulher altona, fina, mas o 38 amarrado na cintura e o correrão cheio da bala ela ficava no comando e passava os detalhes para o Bastião do gado, ela teve que indenizar os pistoleiros que morreram, teve um que ficou com problema de coluna[23]
A imagem que a proprietária passava era de uma mulher alegre, conversadeira, mas ao mesmo tempo mostrava o lado agressivo. Percebe-se que o depoente relatou por duas vezes a marca do revolver e o cinturão cheio de bala. Esta imagem não era inocente, era um meio de intimidação e de relação de poder, em momento algum a proprietária mostrou-se sensível as propostas dos assentados, sempre colocava uma grande quantidade de terra para ser vendida, pois sabia que os posseiros não possuíam condições suficientes para comprar tal proporção de terra.
O pistoleiro Bastião do Gado era conhecido por vários assentados, famoso por ser mal, e funcionário de confiança de dona Silvana, para entender melhor a atitude de Bastião do Gado, como nos relata Sr. Alimpio Ferreira.
[...] Silvana solte a corda na minha mão eu vou matar todos de um por um, vou matar e por fogo. Andava com a camionete e com o tambor de 200 litros cheio de álcool, o posseiro que ele matasse era para colocar fogo, inclusive o Antonio da Pamonha, o Almeida e o Manoel, ele implicou tanto que jogava ate o carro em cima dos posseiros, um dia pegou o. Antonio e bateu, só não matou porque os próprios pistoleiros não deixaram[24]
A atitude do Bastião do gado fazia com que os posseiros tivessem dois tipos de sentimentos, um de medo e outro de vingança. “[...] No dia o povo queria mesmo era o Bastião do Gado e ele não apareceu, vieram só os pistoleiros, quando o Bastião ficou sabendo que tinha morrido um pistoleiro famoso não veio mais aqui”[25].
A pistolagem era usada pelos grandes proprietários como instrumento de repressão e violência, como os assassinatos. Os pistoleiros eram atraídos pelas grandes ofertas de dinheiro que eram oferecidas pelos proprietários; estimulados faziam tudo o que o patrão mandasse até mesmo tirar a vida de pessoas inocentes que se estabeleciam no assentamento em busca de melhores condições de vida para suas famílias. Muitos dos pistoleiros ganhavam terras para trabalhar, como é o caso de um pistoleiro da fazenda Codeara. “[...] Na fazenda firmeza era de José Profiro, que olhava aquela fazenda mais o José Corró, eles deram aquela fazenda para ele”[26].
Por parte dos pistoleiros não havia respeito, não queriam saber de qual área era o posseiro.
[...] Eles chegavam ameaçando as pessoas, não queriam saber de onde eram, viam muito bem armados, carabina, revolver e pistolas. Chegavam ao bar da Carmelita, lanchavam, colocavam as armas em cima da mesa, como se fossem policiais né, um deles usava calça de policial, a outra camisa de policial, a gente olhava para eles e achava que era policial, mais eram pistoleiros[27].
A roupa de policial usada pelos pistoleiros expressa a relação da policia com estes homens, que além de bem armados deixavam transparecer a idéia de que eram homens da lei e que estariam ali para proteger os assentados, no entanto, esta audácia foi percebida pelos posseiros que passaram a se proteger das artimanhas elaboradas pelos pistoleiros.
Com a liberação das terras ainda permaneceram as perseguições por um bom tempo. Porem permanece no povoado as marcas de um tempo vivido, como disse Guimarães Neto (2006 p. 21) ‘[...] Consegue-se perceber, nos meandros de suas narrativas e mesmo de outros registros, tempos de ousadia e também tempos de vigilância; tempo de trabalho de invenções e estratégias cotidianas de enfrentamento do mundo, tornando as experiências passiveis de serem estudadas’. No entanto, este estudo não se esgota, pois o tempo não para, com certeza aparecerá varias narrativas que ajudarão a dar mais clareza aos fatos ocorridos no território do Araguaia. Sobretudo, sobre os assentamentos em Confresa que têm uma grande diversidade cultural. Esperamos que o presente estudo contribua de alguma maneira com a história de Mato Grosso contemporânea, focalizando as novas cidades e os conflitos decorrentes das novas ocupações, defrontando populações pobres sem terra e grandes proprietários.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Emboscada – jeito de esperar as escondidas o inimigo para assaltá-lo.
[2] Entrevista com Paulo Resplende de Araújo realizada em 04/04/ 2004
[3] Entrevista realizada com Alderino Alves Pereira em 04/06/2004
[4] Entrevista realizada com Ribamar dos santos Brito em 06/06/04
[5] Entrevista realizada com Messias Pereira Fernandes em 04/06/2004
[6] Entrevista realizada com Osvaldo Pires em 02/07/2004
[7] Entrevista realizada com Alderino Alves Pereira 06/06/2004
[8] Entrevista realizada com Sebastião do Véu em 06/06/2004
[9] Entrevista realizada com Alderino Alves Pereira em 06/06/2004
[10] Entrevista realizada com Osvaldo Pires em 02/04/2004
[11] Entrevista realizada com Alderino Alves Pereira em 06/06/2004
[12] Entrevista realizada com Sebastião do Véu em 06/06/2004
[13] Entrevista realizada com Alimpio Ferreira em 03/03/2007
[14] Entrevista realizada com Sebastião do Véu em 06/06/ 2004
[15] Entrevista realizada com Osvaldo Pires em 02/04/2004
[16] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[17] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[18] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[19] Idem
[20] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[21] Idem
[22] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[23] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[24] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[25] Entrevista realizada com João Prudêncio Rodrigues em 03/03/ 2007
[26] Entrevista realizada com Alípio Ferreira em 03/03/2007
[27] Entrevista realizada com João Prudêncio Rodrigues em 03/03/2007
Publicado por: Marcos Ramos França
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