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Rus’ de Kiev: o primeiro estado dos eslavos orientais

Análise sobre Rus’ de Kiev: o primeiro estado dos eslavos orientais.

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Os eslavos orientais, que agrupam os atuais povos russos (grão-russos), bielorrussos (russos brancos) e ucranianos (pequeno-russos)[1], possuem uma origem histórica comum que encontra-se na formação da Rus’ de Kiev[2], ocorrido no final do século IX, que abarcava toda a atual Bielorussia, metade da Ucrânia e o centro e noroeste da parte europeia da Rússia. Esse estado foi o resultado da dominação nórdica (ou varegue, segundo denominação grega) sobre as primitivas tribos eslavas. Nesse sentido, o aparecimento do estado entre os russos surgiu como uma síntese entre a imposição mercantil dos povos nórdicos — tradicionalmente uma comunidade que mesclava a organização militar com a atividade comercial-marítima — e a economia agrária arcaica e de subsistência dos eslavos orientais (predomínio de técnicas agrárias semelhantes à coivara americana). Não atoa a razão de ser da Rus’ de Kiev, segundo Perry Anderson[3], era a atividade comercial, sobretudo o tráfico de escravos, e o controle das rotas de comércio entre a Escandinávia e o Mar Negro — “um caminho alternativo entre as regiões do Norte e os ricos países do Sul”[4], segundo Fernand Braudel.

Antes da dominação nórdica, algumas pequenas cidades (numa posição intermediária entre vilarejos e centros urbanos) haviam surgido na região, mas não havia nenhuma unidade política entre elas[5]. Coube aos varengos unificar essas cidades num estado e construir, segundo Angelo Segrillo[6], uma confederação de cidades-Estado em que os príncipes eram vassalos e pagavam tributos ao Grande Príncipe de Kiev, da dinastia Rurikonovich — os senhores nórdicos tenderam a se “russificar” e os descendentes dessa dinastia se espalharam nas demais cidades russas. A elite mercantil-agrária, de origem nórdica e eslava, que controlava Kiev e as principais cidades, dominava o comércio da região, exportando os principais produtos russos (cera, pele, mel, âmbar, etc.), importando e ecoando até o Ocidente bens de consumo de luxo e manufaturados do Oriente (tecidos, sedas de luxo, moedas de ouro, etc.) e, sobretudo, atuando num lucrativo comércio escravagista. Os escravos, em boa parte de origem eslava, eram prisioneiros de guerra ou sequestrados por toda região do Leste Europeu e vendidos, pelos mercadores nórdicos, no Mediterrâneo e no Oriente, principalmente, para os árabes e os bizantinos. A partir do século X, a palavra sclavus (eslavo) começou a ser sinônimo de escravo, persistindo suas variações em diversos idiomas até os dias atuais[7]. O controle dessas rotas comerciais entre o Báltico, o Mar Negro e o Oriente, assim como o tráfico escravagista, era o sustentáculo econômico e, num determinado sentido, a razão de ser da Rus’ de Kiev.

O feudalismo, na sua “variante oriental”, ainda não era o modo de produção dominante e os camponeses, a maioria da população, não tinham outro senhor senão o príncipe de Kiev e das demais cidades-Estado — o campesinato livre organizado em aldeias existiam em número considerável. A Rússia, durante esse período, encontrava-se num ritmo econômico semelhante ao do Ocidente, e de modo algum poderia ser considerada atrasada — sua agricultura era rudimentar (predomínio do sistema de três rotações, a partir dos séculos XII-XIII, e utilização de arado de metal), extensiva (devido a abundância de terras, pustoshi, e a baixa demográfica[8]) e voltada sobretudo para a subsistência, não muito diferente da economia dominial-senhorial predominante no Oeste[9]. Na zona rural, os boiardos (grandes proprietários que também controlavam o comércio urbano)[10] utilizavam sobretudo de uma força de trabalho eclética: escravos, camponeses em regime de servidão por dívidas, trabalhadores semi-assalariados, etc. No meio urbano, havia diferenciação social entre, de um lado, boiardos e mercadores ricos e, de outro lado, artesãos e a gente miúda (pequenos proprietários, mercadores locais, etc.), e, abaixo desses grupos, os escravos e demais trabalhadores não-livres[11]. Além de Kiev, a cidade de Novgorod — “uma pólis original entre os estados principescos da Rus’ medieval”[12] — apresentou um importante esplendor econômico, realizando importantes trocas comerciais com a Liga Hanseática[13], e um grau de autonomia política, expulsando vários príncipes enviados por Kiev e elegendo o seu próprio governante (posadnik) escolhido por uma assembleia de boiardos (vyeche)[14]. A contradição entre a dominação da sulista Kiev e o caráter independentista e autônomo da nortista Novgorod marcou profundamente a trajetória da Rus’ de Kiev. Novgorod foi a única cidade que conseguiu se autonomizar e concorrer economicamente com Kiev. No final do século XII, Kiev contava com uma população de 36–50 mil pessoas, enquanto Novgorod, no início do século XIII, com entorno de 20–30 mil[15].

Em relação às cidades, Braudel realizou uma observação interessante em comparação com o Ocidente. Enquanto no Oeste, as cidades são fechadas, ou seja, uma comunidade estritamente urbana (comerciantes, artesãos, etc.) controlava e vivia uma vida citadina (econômica, política e culturalmente), em contraposição as classes rurais; no Leste, os boiardos dominavam a vida urbana: controlavam o comércio e atuavam nas assembleias e conselhos — era uma cidade aberta, que mesclava a zona urbana e rural: “trata-se, pois, de cidades ‘abertas’, como as da Antiguidade, como Atenas, aberta aos eupátridas da Ática […] não de unidades fechadas sobre si mesmas e sobre os privilégios de seus cidadãos, como no Ocidente Medieval”[16]. Enquanto no Ocidente, a cidade era a antítese da zona rural (aspecto fundamental para o posterior desenvolvimento ocidental[17]); no Oriente, o campo dominava a cidade — assim como em várias outras civilizações.

Além da importância da cultura escandinava, a Rus’ de Kiev também recebeu uma forte influência do Império Bizantino. No final do século X, sob influência bizantina, durante o reinado de Vladimir, o Grande, Kiev passou a adotar o cristianismo como religião oficial. O Cisma do Ocidente, em 1054, e as relações de proximidade com Bizâncio, consolidou a Rússia como um dos baluartes do cristianismo ortodoxo. Uma igreja estatal foi criada aos moldes bizantinos e um clero foi desenvolvido a partir do envio de sacerdotes ortodoxos. Com a posterior decadência do Império Bizantino e a queda de Constantinopla para os turco-otomanos, no final do século XV, uma nova Rússia, com centro em Moscou, buscaria apresentar-se como a continuação do Império Romano — Moscou como a Terceira Roma — e novo centro do cristianismo, ademais a adoção do cristianismo ortodoxo persistiu sendo um importante diferenciador cultural com o Ocidente até os dias atuais. Outra importante influência cultural bizantina foi a elaboração dos alfabetos glagolítico e cirílico, desenvolvidos por padres gregos, no século IX, para evangelizar com mais facilidade os povos eslavos — a primeira língua escrita desse povo. Portanto, como enfatizou muito bem Anderson, as relações entre Bizâncio e a Rus’ de Kiev foram fundamentais para a formação de um sistema ideológico (no caso, religião + linguagem escrita) para civilização dos eslavos orientais, inicialmente importados de Constantinopla. Apesar dessa significativa influência grega, o Russkaya Pravda[18] — série de código de leis — não teve grande influência bizantina, cabendo mais aspectos das culturas eslava e nórdica.

Com o desenvolvimento econômico do Ocidente Medieval, durante os séculos XI-XIII, os mercadores europeus voltaram a dominar o Mar Mediterrâneo e o “caminho marítima matou a rota continental”[19]. As expedições das cruzadas[20], o advento mercantil das cidades italianas e a perda dos mercados do mundo muçulmano e de Bizâncio tiveram importantes consequências para a Rus’ de Kiev. A economia se ruralizou, as cidades enfraqueceram, os boiardos, após perderem o comércio de escravos, voltaram-se para a produção agrícola em pequena escala e buscaram ampliar as suas terras e a situação do campesinato piorou, evoluindo cada vez mais em direção à servidão[21]. Aliado a isso, a fraqueza estrutural do estado kievano e as constantes divisões territoriais (prevalecia uma concepção patrimonialista e inexistia o princípio de primogenitura[22]), assim como as lutas citadinas e dinásticas entre os Rurikonovich, enfraqueceram e levaram a queda de Kiev. A invasão mongol (a Horda Dourada), que varreu a Ásia no século XIII, destruiu um reino frágil, descentralizado e com uma organização militar extremamente precária (havia um famoso ditado na época, que afirmava: “Quando se trata de comer e beber, vai-se a Kiev; mas, quanto se trata de defender Kiev, não se pode contar com ninguém”[23]).

A formação do Império Mongol, iniciada em 1206, deveu-se muito a atuação do chefe tribal Temujin (autodenominado Gengis Khan). Povo de origem nômade, através de métodos militares revolucionários para época (utilização da guerra psicológica, cerco mais sofisticado, etc.), métodos mais convencionais (uso mesclado da cavalaria de tipo tribal e do arco composto) e meios extremamente violentos (destruição de cidades inteiras, assassinatos e torturas recorrentes, prática da terra arrasada, desenvolvimento da guerra biológica, etc.)[24], os mongóis conseguiram construir o maior Império contíguo da história e o segundo maior Império territorial, com 33 milhões km2 — que incluía quase toda a Ásia continental e partes significativas do Oriente Médio e Europa Oriental.

Entre 1237–1242, os mongóis invadiram e dominaram a Rus’ de Kiev — com exceção de algumas regiões no Norte, como Novgorod, que conseguiram se manter relativamente livres do julgo tártaro, devido talvez às características geográficas da região. A invasão mongol foi extremamente violenta: cidades, como Kiev e Moscou, foram saqueadas e destruídas, calcula-se que entorno de 5–10% da população tenha falecido, colheitas e rotas comerciais foram comprometidas, etc. A ocupação tártaro-mongol (a tartachina) persistiu durante quase 250 anos, entre os séculos XIII-XV. Como as forças militares tártaras não eram tão números e eram voltadas sobretudo para a conquista e não à ocupação, o modelo de dominação aplicado era relativamente simples: pagamento de tributos, envio de soldados, expedições punitivas, continuidade dos governantes nativos submissos em seus postos e tolerância com a religião, cultura e algumas instituições russas[25]. Segundo Bushkovitch, “o espantoso sucesso dos mongóis deveu-se à sua capacidade de equilibrar as vantagens da sociedade nômade e os benefícios das civilizações sedentárias”[26]. Em 1480, quando Ivan III — príncipe moscovita — expulsou os mongóis na Batalha de Ugra, o estado russo, com sede em Moscou, era muito mais centralizado do que a antiga Rus’ de Kiev — daí, dessa experiência, provavelmente surgiu a tradição russa de se manter um estado forte e militarizado.

Enquanto os nômades mongóis dominavam o que restava do antigo estado de Kiev, durante esse período, o centro civilizacional da Rússia ia mudando para a colonização do Nordeste, iniciada no século XI, onde posteriormente surgiria um estado centralizado em Moscou — essa segunda Rússia também apresentava uma nova síntese cultural e étnica entre eslavos e escandinavos[27]. Ao contrário da “Rússia semiurbana do período de Kiev, desenvolvia-se, agora, nas florestas fronteiriças, uma Rússia feudal de terras senhoriais e de burgos”[28]. O feudalismo que surgia na nova Rússia do Nordeste[29], colocava os russos numa posição subalterna em relação ao Ocidente, visto que, ao contrário do feudalismo do Oeste, o modo de produção feudal na Europa Oriental apresentava uma “síntese incompleta”[30] (Perry Anderson), isto é, uma fraqueza estrutural das cidades decorrente do fato de que enquanto o modo de produção primitivo dos eslavos era semelhante ao dos germânicos, no Leste não houve nenhuma civilização urbana-escravagista, aos moldes de Roma, que completasse a síntese feudal (modo de produção primitivo <> modo de produção escravista). Desse modo, com a debilidade urbana, os camponeses não tinham um pilar fundamental da luta de classes feudal: a fuga para as cidades e o apoio e aliança das classes urbanas[31]. Além disso, a ausência de um setor urbano sólido enfraquecia a dinâmica da transformação da sociedade feudal, ao entravar o desenvolvimento mercantil e artesanal-manufatureiro, de modo que a monetarização da economia e as trocas de mercadorias ficaram comprometidas, dificultando, assim, a evolução progressiva da renda-trabalho em renda-espécie, para em seguida tornar-se renda-dinheiro, ou seja, da corveia para o pagamento in natura e, num grau mais avançado, para o pagamento da renda em dinheiro — o desenvolvimento clássico da extração de sobretrabalho no modo de produção feudal.

Há dois pontos importantes que podemos discutir a respeito da formação econômico-cultural da Rússia. Em primeiro lugar, Vassily Klyuchevsky, um importante historiador russo, classificou a Rússia como “a terra que pede colonização”[32], nesse sentido a “história da Rússia [é] a história de um país para sempre em colonização”[33] — enfatizando, assim, seu caráter amplo e a tendência a crescente expansão. Fernand Braudel denominou o solo russo como a zona fronteiriça entre a Europa e o Oriente — sempre protegendo o primeiro do segundo[34]. Otto Hoetzsch, por sua vez, comparou a colonização progressiva da Rússia ao Leste, com a colonização do Oeste americano[35]. O que todas essas definições têm em comum? Em minha opinião, denotam exatamente a imprecisão da civilização russa, isso porque, como afirmou Segrillo, a formação cultural da Rússia ocorreu a partir da síntese de diversos povos e civilizações diferentes. A civilização russa é a síntese de, no mínimo, quatro matrizes culturais diferentes: eslava oriental, escandinava-viking, bizantina-ortodoxa e mongol-asiática. Foi exatamente durante o período da Rus’ de Kiev que essas diversas civilizações tiveram contato pela primeira vez. A Rússia, nesse sentido, aparece, do ponto de vista civilizacional, como um caso sui generis. Ao mesmo tempo, nem ocidental, nem “classicamente” oriental; europeia e asiática, mas nenhuma das duas o suficiente; eslava, mas com particularidades!

Outro ponto importante a ser discutido diz respeito ao atraso econômico russo diante do Ocidente. Como vimos anteriormente, durante o período de Kiev não havia uma assimetria de desenvolvimento tão grande entre ambas as regiões. Como e quando isso mudou? Antes de mais nada, é necessário ter em conta que a Rus’ de Kiev nasceu e se desenvolveu também devido à debilidade ocidental, que vivia uma fase de retração econômica, queda demográfica e fragmentação política. Na medida que os ocidentais retomaram o seu progresso econômico e, com isso, o controle mercantil do Mediterrâneo, a economia de Kiev perdeu a sua razão de ser — sem o seu papel intermediário entre Ocidente e Oriente e o seu comércio de escravos, Kiev não era nada. Nesse sentido, foi a sua decadência e o posterior domínio mongol que atrasou economicamente a Rússia? Uma visão mais tradicional afirma que o papel dos mongóis no atraso russo foi substancial (atraso na formação feudal, destruição das cidades, descenso demográfico, etc.), enquanto correntes interpretativas mais modernas enfatizam o papel progressista dos tártaros para o desenvolvimento russo, sobretudo no que diz respeito a centralização política[36]. Perry Anderson, com sua tese da ausência da síntese feudal, buscou explicar, num determinado sentido, porque o Leste Europeu ficou para trás diante do Ocidente. Em minha opinião, uma tentativa de explicar estruturalmente, a partir do materialismo histórico, a clássica tese da fraqueza urbana e da burguesia no Leste Europeu, defendida por vários estudiosos. Ademais, foi também devido a debilidade das cidades que a economia da segunda servidão[37], a partir do século XVI, pode se estabelecer em boa parte da Europa Oriental e consolidar o atraso e dependência econômica dessas regiões.

De qualquer modo, pessoalmente acredito que a razão estrutural que explica o atraso russo diante da Europa Ocidental é o mesmo para China, Japão, Turquia, África, etc.: a demora no desenvolvimento do capitalismo e da industrialização. Essa questão é muita mais complexa e tem mais relações com as razões que levaram a Europa Ocidental à primazia no desenvolvimento de uma economia capitalista-industrial, do que os motivos que fizeram com que nenhuma outra civilização anterior — chinesa, romana, etc. — tenha chegado a essa fase. Se, a partir dos séculos XIII-XV, a Rússia ficou para trás, isso ocorreu sobretudo porque o Ocidente passou a se desenvolver de modo crescente e, a partir do século XVIII, avassalador. Não foi necessariamente a Rússia que evoluiu de modo lento, mas sim o Ocidente que passou por uma transformação inédita na história da humanidade: o processo de domínio do capital sobre todos os demais setores da economia e a industrialização generalizada.

***

A Rus’ de Kiev surgiu como uma síntese da imposição mercantil nórdica sobre os povos eslavos orientais. A confederação de cidades surgida dessa simbiose, apresentou um grau significativo de descentralização e ecletismo econômico-social, ao mesmo tempo que possuía a sua razão de ser, o seu pilar econômico, no controle das principais rotas comerciais entre o Báltico e o Mar Negro e no tráfico de escravos para o Oriente bizantino e muçulmano. Na medida que o Ocidente Medieval retomou o seu desenvolvimento, durante os séculos XI-XIII, e as antigas rotas marítimas pelo Mediterrâneo voltaram a ser utilizadas, a organização estatal da Rus’ de Kiev enfraqueceu, a economia tendeu a se ruralizar e a situação do campesinato piorou significativamente. A invasão mongol-tártara, no século XIII, acabou definitivamente com o papel de Kiev como centro civilizacional dos eslavos orientais, acelerando a colonização do Nordeste — posteriormente, através de Moscou, efetivado como novo eixo cultural da civilização russa.

A recente invasão russa na Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, teve como consequência um interesse crescente sobre as origens civilizacionais de ambos os países. Nesse sentido, o objetivo desse breve artigo foi discutir e apresentar, em linhas gerais, a trajetória histórica do primeiro estado formado entre os eslavos orientais, visto que a produção bibliográfica em língua portuguesa sobre o assunto é muito escassa, quando não, simplesmente vulgar. Assim, esse trabalho foi desenvolvido como a síntese das interpretações de outros historiadores — sobretudo Perry Anderson, Fernand Braudel e Angelo Segrillo — e algumas considerações particulares do autor sobre a Rus’ de Kiev, a civilização russa e as simetrias e assimetrias entre o desenvolvimento do Ocidente e da Europa Oriental.

Notas

[1] Os eslavos costumam ser divididos em três grandes grupos: eslavos orientais (russos, bielorrussos e ucranianos); eslavos ocidentais (poloneses, kashubianos, checos, eslovacos, sorábios e silesianos); eslavos do Sul (búlgaros, sérvios, croatas, macedónios, eslovenos, bósnios e montenegrinos). Ver: SEGRILLO, A. Os Russos. São Paulo: Contexto, 2012.; GIMBUTAS, M. Os eslavos. Lisboa: Verbo, 1975.

[2] O termo Rus’ provavelmente tem origem escandinava, designando nórdicos que habitavam outras regiões, fora da Escandinávia. Até o século XV, o termo referia-se a uma determinada região que abarcava praticamente todos os eslavos orientais, a partir de então passou a ser substituído pelo termo Rússia (Rossíya), que designava estado centralizado em Moscou.

[3] “O Estado varegue centrado em Kiev tinha caráter comercial, como já vimos: estava localizado de maneira a controlar as rotas comerciais entre a Escandinávia e o Mar Negro, e seu principal tráfico de exportação era o de escravos — destinados aos mundos muçulmanos e bizantino” In: ANDERSON, P. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991 [1974]. p. 226.

[4] BRAUDEL, F. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 471.

[5] A discussão sobre as origens do estado kievano divide a historiografia e é profundamente marcado por interpretações com viés nacionalista. Mas, de modo geral, costuma-se aceitar o papel inicial dos normandos na formação do estado dos eslavos orientais. Ver: HEERS, J. Historia de la Edad Media. Barcelona: Labor, 1979. p. 74–76.; HOETZSCH, O. A Evolução da Rússia. Lisboa: Verbo, 1966. p. 13–32.; SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 121–125.; HELLMANN, M.; GOEHRKE, C.; SCHEIBERT, P. LORENZ, R. Rusia. Madrid: Siglo XXI, 1979. História Universal, Volume 31. p. 22–30.; BUSHKOVITCH, P. Historia de Rusia. Madrid: Akal, 2013. p. 23–30.

[6] SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 121.

[7] ANDERSON, 1974, op. cit., p. 226–227.; BRAUDEL, 2004, op. cit., p. 471.

[8] Enquanto no século XIII, a Europa Ocidental possuía cerca de 35 milhões de habitantes, a Europa Oriental, numa região muito maior, possuía entorno de 13 milhões. Ver: ANDERSON, 1974, op. cit., p. 232.

[9] SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 124.; BRAUDEL, 2004, op. cit., p. 472.; HELLMAN et al., 1979, op. cit., p. 59–60.

[10] Costuma-se afirmar que os boiardos evoluíram das druzhinas, antigo séquito tribal de guerreiros dos príncipes.

[11] “É antes a natureza heteróclita e amorfa da sociedade e da economia kieviena que impressionam” In: ANDERSON, 1974, op. cit., p. 227.

[12] BUSHKOVITCH, 2013, op. cit., p. 41.

[13] “Desde 1200, os habitantes de Novgorod pararam de viajar para o Oeste com seus bens. A Liga Hanseática, ou Hansa Teutônica, composta pelas cidades comerciais do Norte da Alemanha, conseguiu obter o controle do comércio em todos os países ao redor do Mar Báltico. Os alemães viajaram para Novgorod para comprar peles, cera de abelha para velas e outros produtos florestais. As peles, que alcançavam um bom preço no Ocidente, variavam de simples esquilos a martas das florestas do Norte. Em troca, Novgorod comprou tecidos ingleses e flamengos e um grande número de itens menores de cidades ocidentais” In: BUSHKOVITCH, 2013, op. cit., p. 42.

[14] As vyeche existiam em várias cidades da Rus’ de Kiev, inclusive na própria capital. Contudo, em Novgorod, apresentou um caráter mais autônomo e independentista, provavelmente por conta do desenvolvimento econômico da cidade e seus choques com Kiev.

[15] MARTIN, J. From Kiev to Muscovy: The Beginnings to 1450. In: FREEZ, G. (org.). Russia: A History. Oxford: Oxford University press, 2002. p. 6–7.

[16] BRAUDEL, 2004, op. cit., p. 472.

[17] Braudel enxergou o caráter aberto das cidades russas como algo positivo e, num determinado sentido, economicamente progressista. Em contrapartida, a tradição marxista enfatiza o papel rudimentar desse tipo de organização urbana, visto que é subordinada ao campo — ao contrário das cidades fechadas, como as do medievo ocidental, que tendem a evoluir como a antítese do campo, isto é, são cidades que evoluem para dominar a zona rural.

[18] Ver: FRANLKIN, S. Kievan Rus’ (1015–1125). In: PERRIE, M. (org.). The Cambrigde History of Russia. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. Volume 1: From Early Rus’ to 1689.; MANFRED, A. Z. Kiev Rus. As Antigas Tribos Eslavas do Oriente. In: IDEM. História do Mundo. Marxist.org, s/d. Volume 1. s/p.; HELLMAN et al., 1979, op. cit., p. 43–48.

[19] “O esplendor dessa primeira Rússia se explica num contexto histórico geral. No dia que o Mediterrâneo ocidental se abrir novamente, nos séculos XI e XII, com o fim da supremacia muçulmana no mar, o interesse desse caminho interminável de rotas fluviais e de transporte declinará. Ele termina definitivamente com a ocupação de Constantinopla, em 1204, pelos latinos: o caminho marítimo matou a rota continental” In: BRAUDEL, 2004, op. cit., p. 471.

[20] “as cruzadas haviam cortado as rotas comerciais do Mar Negro e Constantinopla e ao mundo islâmico, nas quais se baseava tradicionalmente a prosperidade do comércio de Kiev” In: ANDERSON, 1974, op. cit., p. 234.

[21] ANDERSON, 1974, op. cit., p. 227–228.

[22] “Com o advento do século XIII, a Rus de Kiev era um único estado apenas nominalmente. […] Com exceção de Novgorod, cada território tinha uma dinastia nascida da antiga dinastia de Kiev, a dinastia Rurikovich. Como a Rússia de Kiev não reconhecia a primogenitura, todos os filhos de um príncipe tinham que ser considerados, e o tio mais velho também poderia aspirar a governante legítimo. Inúmeros pequenos principados surgiram, enquanto vários centros regionais de poder — Vladimir, Smolensk, Chernigov e Galich — mantinham os príncipes menores sob controle. Eram sociedades agrícolas, cada uma com uma pequena elite de boiardos que governavam os camponeses e aconselhavam o príncipe” In: BUSHKOVITCH, 2013, op. cit., p. 42.

[23] “Rus’ kievana era uma confederação de cidades-Estado com vassalagem ao Grande Príncipe de Kiev. Um Estado florescente, mas descentralizado e desunido. Em tempos de ameaça militar estrangeira nem sempre os príncipes de Rus’ atendiam ao chamado de luta contra o inimigo externo comum” In: SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 142.

[24] Ver: ALCAIDE, B. P. Breve Historia de Gengis Kan. Madrid: Nowtilus, 2010. p. 31–47.

[25] ANDERSON, 1974, op. cit., p. 209–219, p. 234–236.; SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 138–144.; BUSHKOVITCH, 2013, op. cit., p. 49–73.; BERTONHA, J. F. Rússia: ascensão e queda de um império. Curitiba: Juruá, 2009. p. 24.; BARBOSA, E. Gêngis Khan e as conquistas mongóis. In: MAGNOLI, D. (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.

[26]BUSHKOVITCH, 2013, op. cit., p. 49.

[27] Enquanto a Rus’ de Kiev surgiu da síntese sobretudo entre mercadores suecos e dinamarqueses e eslavos orientais, a Rússia do Nordeste se desenvolveu sobretudo da síntese entre esses últimos e os finlandeses (os primeiros povoadores da região, nórdicos de origem oriental-mongol). Esse seria, segundo alguns autores, uma das principais diferenciações étnicas entre grão-russos (russos) e pequeno-russos (ucranianos). Ver: BRAUDEL, 2004, op. cit., 472.

[28] HOETZSCH, 1966, op. cit., p. 31.

[29] Para Anderson, o feudalismo na Europa Oriental surgiu sobretudo como consequência da reação senhorial, derivada da crise do século XIV. Nesse sentido, tanto a Rus’ de Kiev, quanto o estado moscovita, não haviam conhecido o feudalismo antes dos séculos XV-XVI. Assim, a invasão mongol teve o papel de retardar a evolução ao feudalismo da Rus’ de Kiev ao jogar o centro da civilização russa para a zona de colonização nordestina — local onde predominava a abundância de terras e a escassez de homens. Ver: ANDERSON, 1974, op. cit., p. 234–246.

[30] “a característica mais fundamental de toda a zona plana, estendendo-se do Elba ao Don, pode ser definida como a ausência permanente daquela síntese ocidental específica entre um modo de produção tribal e comunal em desintegração, baseado em uma agricultura primitiva e dominado por aristocracia guerreiras rudimentares, e um modo de produção escravo em dissolução, com uma civilização urbana extensiva, baseado na troca de mercadorias e em um sistema de estado imperial […] Este fato central foi o determinante histórico básico do desenvolvimento desequilibrado da Europa e o persistente atraso do Leste” In: ANDERSON, 1974, op. cit., p. 205.

[31] ANDERSON, 1974, op. cit., p. 242–254.

[32] KLYUCHEVSKY apud HOETZSCH, 1966, op. cit., p. 31.

[33] KLYUCHEVSKY, V. A History of Russia. New York: Russell & Russell, 1960. Volume 1. p. 2.

[34] BRAUDEL, 2004, op. cit., p. 470.

[35] HOETZSCH, 1966, op. cit., p. 31.

[36] SEGRILLO, 2012, op. cit., p. 142.; HELLMAN et al., 1979, op. cit., p. 75–91.

[37] Por economia da segunda servidão entendo um determinado tipo de padrão econômico surgido, como consequência da crise feudal do século XIV, em algumas regiões da Europa Oriental (Prússia, Polônia, etc.) a partir de meados do século XVI. Esse tipo de economia sustentava-se a partir de três pilares: a) o recrudescimento (ou surgimento) das relações servis em sua forma mais primitiva, isto é, no predomínio da corveia; b) a especialização produtiva voltada ao mercado externo (produção majoritária de valores de troca) — no caso em questão, da produção de grãos; c) o caráter empresarial-mercantil dessas unidades produtivas, que eram dominadas pelo capital comercial da Europa Ocidental, responsável por realizar as transações comerciais (ecoar a produção local e trazer bens de consumo de luxo) e emprestar capital aos magnatas feudais. Em síntese, uma mescla dialética entre a forma mais primitiva de feudalismo (a extração de sobretrabalho a partir sobretudo da renda-trabalho) e um empreendimento mercantil típico do capitalismo comercial.

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Porto Alegre. 16 de março de 2022.

Guilherme Giotti Sichelero é historiador, professor e estudante de economia. É graduado em Licenciatura em História pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Atualmente, é granduando em Ciências Econômicas pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina).


Publicado por: Guilherme Giotti Sichelero

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