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MARCHANDO SOB A SOMBRA AUTORITÁRIA DA OPRESSÃO: UMA ANÁLISE DO CAPÍTULO “A DITADURA VITORIOSA”, DE NELSON WERNECK SODRÉ

Breve análise sobre o capítulo "A Ditadura Vitoriosa", de Nelson Werneck Sodré.

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Em relação ao último período ditatorial brasileiro, Dezemone (2014), ao realizar um balanço historiográfico, pontua a existência de uma batalha de memórias a partir de representações duais e polarizadas da própria ditadura. De um lado, a repressão, a violência política e o sistemático desrespeito aos direitos humanos. Anos de chumbo. De outro, o crescimento econômico, a geração de empregos e uma suposta manutenção da ordem social. Anos de ouro. Duas memórias distintas e antagônicas entre si.

Em meio a essa dualidade, narrativas seletivas têm gerado disputas retóricas pela sobrepujança narrativa de uma em detrimento da outra. Ainda que a produção acadêmica e social da primeira seja historicamente farta, a segunda tem penetrado na identidade de grupos da sociedade civil, sobretudo aqueles vinculados ao bolsonarismo e ao conservadorismo brasileiro. Nesse contexto, versões têm gerado narrativas e narrativas têm gerado confrontos.

Em meio a essa polarização, é importante analisar o contexto e as condições sociais de produção das narrativas sobre o período em questão. Em um primeiro momento, Fico (2004) afirma que o golpe civil-militar foi analisado prioritariamente por cientistas políticos, sobretudo, a partir de uma vertente norte-americana, e por sociólogos com uma visão memorialística. De acordo com o pesquisador, os historiadores de formação demoraram a se debruçar sobre a temática.

Foi justamente nesse contexto que, segundo Dezemone (2014), uma tradição memorialística de interpretações rasas foi levantada para tentar explicar o golpe. De um lado, a culpabilização de João Goulart por sua fragilidade, imobilidade e indecisão como determinantes para sua deposição, como pode ser visto em Santos (2003) e Villa (2004). Já de outro, a construção marxista, por Gorender (1987), de uma noção de golpe civil-militar como processo contrarrevolucionário preventivo contra ameaças às classes dominantes brasileiras.

Em relação à segunda tradição, destaca-se a literatura clássica de Nelson Werneck Sodré, um militar, professor, escritor, colunista e historiador brasileiro marxista. À luz de seu conceito de uma “articulação reacionária antinacional” entre imperialismo e classes dominantes brasileiras, o autor escreveu o capítulo “A Ditadura Vitoriosa”, que está contido em História Militar do Brasil (2010). A primeira versão do livro foi publicada em 1965 e traz uma história recente do golpe. Pela sua relevância histórica, esse texto será analisado na presente resenha.

A partir de um relato de época, o capítulo inicia recapitulando a cronologia do movimento golpista que deu início à última ditadura brasileira. Para Sodré (2010), o golpe não foi um resultado efêmero dos acontecimentos históricos de março de 1964, dentre os quais o Comício da Central do Brasil, a Revolta dos Marinheiros ou a reunião no Automóvel Clube. Segundo o autor, ele começou a ser gestado meticulosamente por elementos militares a partir de 7 de setembro de 1961, no momento em que ficou assegurada a posse do vice-presidente João Goulart. 937 dias depois, o golpe foi desferido contra a democracia brasileira, mas ele iniciou muito antes.

Desde o final da década de 1950, os índices econômicos apontavam as reformas como necessárias para a modernização da estrutura econômica brasileira. Quando foi secretário, ministro, deputado e vice-presidente, João Goulart era um dos seus principais defensores, o que intensificou-se em seu governo. Em meio ao Congresso Nacional, o seu breve discurso de posse presidencial, no dia 07 de setembro de 1961, ainda que permeado pelo contexto de disputas político-militares, fez referências à importância das mudanças econômicas no país.

À medida que, com o novo governo, abriam-se condições para o alargamento social da democracia brasileira e do avanço da consciência social, o movimento conspiracionista foi ganhando mais adeptos entre os seios militares e civis. Nessa parte do texto, Sodré (2010) destaca que um momento de exacerbação do golpismo foi o resultado acachapante do referendo de 06 de janeiro de 1963, que revogou a Emenda Constitucional nº 4 e, por conseguinte, a continuidade do parlamentarismo no Brasil.

Nesse cenário, o historiador pontua que as forças reacionárias atribuíam a Jango uma incapacidade de conter as massas na política, em meio às agitações, e apaziguar o crescente temor do uso popular da violência. “A culpa fundamental do sr. João Goulart passou, a partir daí, a ser justamente, a de não empregar as ações repressivas para deter o avanço da mobilização política, de ampla base popular, que exigia as reformas” (SODRÉ, 2010, p. 466). Para tentar sobreviver politicamente, Jango, segundo o autor, se recusou a se transformar em um instrumento político dos componentes do atraso. 

Sodré (2010) ainda vai além nessa questão. Derivada de condições sociais, políticas e econômicas, a opção do presidente por uma “política de conciliação” teria reduzido seus espaços de manobra e desgastado ainda mais sua relação conturbada com as forças nacionais, segundo o autor. Nesse cenário, o quadro militar, enquanto instrumento específico da força, teria tomado as rédeas da cooptação de largas camadas de opinião e de forças político-econômicas a favor do movimento que deporia o presidente Goulart (SODRÉ, 2010).

Entretanto, há pontos que foram e ainda estão sendo questionados em torno das memórias políticas de Jango. Goulart (2022), por exemplo, questiona essa “culpa fundamental do sr. João Goulart” pelo estouro do golpe. Culpabilizar uma das vítimas não pode ser um caminho válido.  No contexto atual, essa leitura clássica de Sodré (2010) está, cada vez mais, sendo problematizada pela historiografia recente do golpe, o que não tira seu mérito pioneiro, mas adiciona novas perspectivas à história. A superação de parte de sua interpretação traz novos olhares ao contexto, aos sujeitos e às instituições analisados.

O capítulo segue com a cronologia do movimento golpista. O autor pontua que o desencadeamento do golpe pelas forças do atraso foi iniciado no dia 13 de março de 1964, com a realização de um grande comício ao lado do Quartel General do Exército, em Brasília. O evento pacífico contou com uma gigantesca mobilização popular em torno de suas reivindicações. O comício popular foi bafejado pelo poder público e sua realização foi garantida pela presença de tropas do Exército. Ao ver tropas militares tutelando a presença do povo nas ruas, as elites enxergaram subversão, indisciplina e desrespeito à autoridade. Segundo Sodré (2010), essa teria sido a primeira séria ameaça às forças do atraso no Brasil.

A situação se agravou doze dias depois com outro episódio histórico. O conflito entre as autoridades da Marinha do Brasil e a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), no qual sua posição reformista era mal vista pelo alto escalão, tomou um ar de revolta, em torno da defesa das reformas de base e das condições de trabalho dos marinheiros. O Palácio do Aço, sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, foi ocupado por três dias pelos revoltosos. Com a intervenção do presidente, o motim saiu vitorioso e as Forças Armadas, afrontadas. Pela união entre marinheiros e operários em um sindicato, o episódio foi revestido pelas forças do atraso com tons alarmantes de subversão, indisciplina e inaptidão política do governo. A situação militar atingiu seu paroxismo.

Após esse evento, Sodré (2010) pontua que começaram a circular as primeiras informações de levante nas bases militares de Minas Gerais. Em meio à repercussão da Revolta dos Marinheiros, um discurso acalorado de João Goulart foi um dos últimos atos de seu governo. No dia 30 de março, marcou presença na solenidade do 40º aniversário da Associação de Suboficiais e Sargentos da Marinhos, que aconteceu nos salões do Automóvel Clube, no Rio de Janeiro. O presidente foi homenageado por sargentos das três Forças Armadas. Em sua fala, pontuou sobre as reformas de base, um possível golpe e a questão da disciplina militar, no qual ambas foram entendidas como provocação política (SODRÉ, 2010).

Entre 31 de março e 01 de abril, um golpe foi perpetrado pelos militares contra a democracia brasileira, com apoio de governadores, políticos, jornalistas, latifundiários, fazendeiros, congressistas, capitalistas estrangeiros, industriais e católicos. Com a saída de João Goulart do Brasil, foi instaurado o Supremo Comando Revolucionário. No dia seguinte, o presidente e o Departamento de Estado dos Estados Unidos congratularam o êxito dos golpistas. No dia 06 de abril, o Senado aprovou a possibilidade de eleição indireta para presidência e vice-presidência via Congresso Nacional para cumprir o restante do mandato de Goulart até as eleições de 1965. No dia seguinte, os militares mostraram o esboço do Ato Institucional aos líderes do Congresso, no qual foi publicado, unilateralmente, dois dias depois. Já no dia 10 de abril, os primeiros cem brasileiros foram expurgados do sistema político. Por fim, no dia 11, a escolha do general Castello Branco para a presidência foi ratificada pelo Congresso, contando com o aval de governadores, congressistas, jornalistas, industriais, fazendeiros e católicos.

Usando esses acontecimentos como mote, Sodré (2010) segue com sua análise sobre o golpe, as forças armadas e o governo ditatorial. Nesse cenário, pontua que a instauração da ditadura, sob a ótica de combate à subversão, não restabeleceu a disciplina e hierarquia entre as Forças Armadas. Muito pelo contrário. Ao contrário de sua propagava, o historiador afirma que o golpe exacerbou e agravou os atos de subversão tanto dentro quanto fora dos ambientes militares, sem perder de vista a existência de atos de insubordinação dos escalões inferiores e superiores antes mesmo da eclosão do golpe civil-militar. 

Segue afirmando que o golpe não foi um produto exclusivo do alto comando das Forças Armadas. A sua eclosão e consolidação contou com forte apoio de importantes setores da sociedade civil, como, por exemplo, empresários influentes, políticos conservadores, religiosos e membros da imprensa nacional. A integração entre as diversas forças sociais do país conferem, assim, um indubitável caráter militar, civil, classista e político ao movimento golpista de 1964.

Em linhas gerais, Sodré (2010) atribui uma natureza extramilitar ao golpe, como resultado da manipulação das classes dominantes e setores civis sobre a instituição das Forças Armadas. Sua leitura é a de uma articulação reacionária antinacional entre imperialismo e camadas abastadas da sociedade contra as reformas democráticas de João Goulart e a soberania nacional do povo brasileiro. Sua base é marxista e vinculada à noção de luta de classes.

Para o historiador, as Forças Armadas, que foram cooptadas como instrumentos para o golpe, não seriam uma instituição monolítica. Enquanto a base do Exército estaria ligada ao proletariado, seria popular e democrática, a alta cúpula estaria vinculada à burguesia nacional e estrangeira e teria se corrompido pelas classes dominantes. Todavia, essa é uma interpretação entendida pela historiografia recente como limitada, por atribuir à base das Forças Armadas valores populares, proletários, democráticos e de massas.

Em conclusão, o capítulo “A Ditadura Vitoriosa”, do historiador marxista Nelson Werneck Sodré, apresenta uma análise pioneira e detalhada sobre os eventos históricos que levaram ao último governo ditatorial brasileiro. Em meio a um atual embate de memórias polarizadas, Sodré (2010) se destaca como um pensador nacionalista que consolidou uma visão crítica e marxista sobre o até então recente acontecimento do golpe civil-militar de 1964. O autor aponta a articulação reacionária antinacional entre imperialismo e classes dominantes brasileiras como o motor do movimento golpista, indo além de visões rasas, simplistas e liberais sobre o papel das Forças Armadas. Nesse breve texto, o historiador, a partir de suas vivências e interpretações, analisa as condições sociais e políticas da época, demonstrando que o golpe foi gestado muito antes dos eventos imediatos de março de 1964. A partir de uma disposição lógica e concisa de seus argumentos, o pensador expõe suas conclusões.

Em um momento em que as disputas retóricas e as batalhas de memórias ainda estão presentes, o trabalho de Sodré oferece uma perspectiva pioneira sobre esse período da história do Brasil. Na vastidão de um período obscurecido pela opressão ditatorial, em que o sopro da liberdade foi cerceado, adentramos corajosamente sob a égide de uma sombra autoritária, por meio das palavras de Nelson Werneck Sodré. Neste capítulo singular, o aparato da ditadura se revela como a personificação triunfante da tirania das classes dominantes contra a soberania do povo brasileiro. O texto resenhado emergiu como um poderoso farol de luz crítica contra o avanço de uma marcha sombria e opressiva que se assistiu no Brasil entre os anos de 1964 e 1985.

REFERÊNCIAS

DEZEMONE, Marcus. 1964 e as batalhas de memória 50 anos depois. Revista Maracanan, n. 11, p. 56-67, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12957/revmar.2014.14305. Acesso em 20 fev. 2023.

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004. Disponível em: https://www.doi.org/10.1590/ S0102-01882004000100003. Acesso em: 01 jul. 2023.

GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

GOULART, Barbara. (Re)lembrando Jango hoje: uma análise sociológica das memórias sobre João Goulart. Sociedade e Estado, v. 37, n. 02, p. 651–672, 2022. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/40532. Acesso em: 1 jul. 2023.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira. UFMG, 2003.

VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004.


Publicado por: Lucas Barroso

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