ENTRE A ORDEM, O PROGRESSO E A ESTAGNAÇÃO: A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E A CONSOLIDAÇÃO DO REGIME OLIGÁRQUICO NO BRASIL
Breve análise acerca da Proclamação da República e a consolidação do regime oligárquico no Brasil.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Desde o final da década de 1870, a erosão do edifício imperial apontava possibilidades de novas direções para os rumos do Brasil. Em seu êxito, o movimento republicano passou a ser apropriado pelos vencedores como um símbolo de suas próprias nacionalidade, dignidades e valentias. Nesse contexto, a noção de República foi apropriada pelas classes dominantes como “[...] a expressão do progresso material, do triunfo da liberdade, do advento da democracia e da instauração de uma ordem mais racional” (MATTOS, 1989, p. 165, grifos nossos). Uma República inventada a partir da ordem como ponto de partida e do progresso como chegada.
Nesse cenário, analisar os antecedentes e o contexto da Proclamação da República (1889) pode ser um caminho interessante para compreendermos as bases do regime oligárquico que se consolidou durante a transição entre o governo imperial e o republicano. Para esse fim, analisaremos os debates historiográficos envolvendo esse contexto histórico, com o intuito de discutirmos como as concepções de liberdade foram interpretadas, adaptadas e apropriadas às circunstâncias locais pelas novas elites políticas republicanas em meio ao problema de tentar justificar um novo regime político que viesse substituir a monarquia brasileira ao final do século XIX e como essas apropriações deram base para a consolidação do regime oligárquico no Brasil.
O início dessa discussão remonta à própria origem e consolidação do Império. Para Mattos (1989, 1994), a constituição do Estado imperial implicou a construção, renovação e expansão da classe senhorial brasileira, no qual contou com a intervenção consciente e deliberada de um movimento conservador fluminense liderado pelos chamados Saquaremas. O que, todavia, possibilitou a estruturação desses dois atores imperiais foi a difusão de uma noção conservadora de civilização. A partir dela, o objetivo era manter uma ordem social por meio da continuidade colonial das relações mercantis-escravistas, das estratificações sociais, das desigualdades econômicas, dos monopólios de posse, da exploração trabalhista e do controle social (MATTOS, 1989, 1994).
Somente nas décadas de 1840 e 1850, é possível falar em uma consciência propriamente “nacional”, que foi oriunda da integração das diversas províncias e de imposições da nova Corte em sua tentativa de construir um Estado forte e centralizador no Rio de Janeiro, frente à fragmentação do poder e à instabilidade das classes dominantes. Para Dias (1972), a “vontade de ser brasileiro”, nas palavras recuperadas de Antonio Candido de Mello e Souza, foi uma das principais forças políticas modeladoras e coesivas do novo Império brasileiro, que se propunha a construir uma nação civilizada nos trópicos, apesar da ainda existência do escravismo.
No entanto, essa orientação imperial e conservadora não foi unânime no território brasileiro. Contrários à direção saquarema do governo imperial, diversos políticos republicanos foram signatários, por exemplo, do Manifesto de 1870, que, publicado nas páginas do número inicial do jornal fluminense A República, tecia críticas à direção política, intelectual e moral do Brasil. Esse documento expressava o descontentamento de diversas personalidades públicas com a monarquia, a Carta outorgada de 1824 e seus frutos, como os privilégios de classe, a desigualdade econômica e a estratificação social. Assim, reivindicavam a restauração da soberania nacional por meio de um novo regime político, da convocação de uma assembleia constituinte e da instauração do federalismo.
Nesse contexto, uma nova conjuntura política, econômica e social forjou-se no Império do Brasil após a Guerra do Paraguai (1864-1870). A partir de 1870, o país assistiu ao fim da Era Conciliatória, à cisão republicana do Partido Liberal, a uma crise econômica pós-guerra, à estagnação da cafeicultura fluminense, a uma profusão de rebeliões escravas e à pressão internacional pelo emancipacionismo. Por conta da coerção estrangeira e da resistência escrava, a publicação da Lei do Ventre Livre (1871) fez com que o governo imperial perdesse apoio de grande parte das camadas proprietárias, em um momento em que o haitianismo ainda pairava sobre as mentes das elites e classes médias. Nesse contexto, a hegemonia da fração conservadora do Estado viu-se em perigo iminente e buscou traçar novas estratégias eleitorais, políticas e econômicas (SOARES, 1998, p. 216-218).
Para Joaquim Nabuco, em Um estadista do Império (1998), o ano de 1878 foi o início do fim do Império brasileiro. Segundo o intelectual, duas novidades tecnológicas teriam sido as expressões populares dessa ruptura política. Em primeiro lugar, destaca a difusão dos bondes como espaço propício para a circulação de ideias, atitudes, valores e novos hábitos vinculados aos ideais de progresso e democracia. Em segundo plano, aponta o poder da imprensa como meio de propagação de práticas e sentimentos semelhantes, sobretudo em torno do prestígio do elemento militar, de crenças positivistas, do civismo e, com o tempo, do próprio republicanismo (NABUCO, 1998).
Entretanto, antes mesmo do fim do Império, um acontecimento abalou de vez as estruturas dos setores dominantes. Chalhoub (2001) pontua que, para as classes políticas, a ordem social passou a estar ameaçada pela Abolição da Escravidão, sobretudo por conta da ideia de repentino nivelamento social entre brancos e negros. Temerosos pelas possíveis consequências desastrosas da lei de 13 de maio, diversos deputados passaram a exigir medidas do governo para tentar expurgar o fantasma da desordem que teria sido solto pela Abolição.
Em um contexto de reorganização da economia e do Estado nacionais, as literaturas da época serviam à preocupação central das classes dominantes de garantir a sobrevivência política, administrativa e judicial de um novo país e de uma nova sociedade em formações. Com uma nova consolidação da unidade política, novas temáticas voltaram à tona nos círculos letrados brasileiros, como a formação da nação, a redefinição da cidadania, a imigração europeia, a escravidão e a diversidade racial. Ao final do século XIX, os temas do interesse individual e nacional estavam no centro das preocupações dos políticos antimonarquistas brasileiros.
Grandes eram as divergências nesse período, mesmo em grupos ligados a uma mesma posição política. Carvalho (1998), por exemplo, pontua que mesmo com uma forte base comteana, havia certa divergência entre os positivistas ditos ortodoxos e heterodoxos no Brasil em relação às formas de um novo governo. Dúvidas pairavam na mente desses intelectuais, como: o novo governo seria parlamentarista? Ou seria uma ditadura republicana, conservadora e monocrática, no qual seu líder seria vitalício? O processo eleitoral ocorreria de qual maneira? Além disso, como seria a relação entre Estado e Igreja? O antigo vínculo entre eles deveria ser rompido imediatamente ou mantido de forma oportunista até o alcance de uma maturidade sociológica? Como deveriam ser as novas políticas educacionais?
Esses e outros dilemas foram enfrentados, de modo diverso, por cada grupo republicano, no qual, em ambos, prevalecia uma noção de estadania, isto é, de ênfase à atuação do Estado. Ao verem suas reivindicações não serem plenamente acatadas, as classes abastadas tentaram tomar o rumo da situação em busca do progresso. Ao contrário do que se pensa, entretanto, não havia apenas uma alternativa política e, muito menos, uma única proposta de República. Os diversos grupos republicanos pensavam de forma diferente antes, durante e depois do contexto de crise do governo imperial e representavam a diversidade das concepções de liberdade que foram adaptadas de experiências externas, sobretudo as americanas e francesas (CARVALHO, 1998). Nesse contexto, destacamos a atuação e experiência políticas dos grupos latifundiários, citadinos e militares.
Os proprietários rurais, sobretudo os paulistas, tinham uma definição individualista, liberal, conservadora e ortodoxa do pacto social e lutavam para evitar a ampla participação popular no governo, defendendo, assim, o modelo norte-americano, federalista e bicameral de república. Já a população urbana, formada por pequenos proprietários, profissionais liberais, jornalistas, professores e estudantes, reivindicava uma posição jacobina de república, defendendo o fim dos cargos vitalícios, a ampla participação política e melhores condições de vida e trabalho. Por fim, existia a versão positivista da República, no qual sua base letrada, intelectual e militar argumentava em prol da separação da Igreja e Estado, da ideia de ditadura republicana, do intervencionismo do Executivo, da ênfase à ciência, do desenvolvimento industrial e da incorporação do proletariado em ascensão à sociedade moderna.
Nesse cenário de embates, o processo da Proclamação da República foi o prólogo da consolidação de um regime oligárquico de bases imperiais. Esse processo histórico representou não apenas a substituição de um governo de cunho imperial por um regime republicano, mas também a consolidação das bases governamentais que marcariam os rumos políticos do país durante grande parte do período conhecido como Primeira República (1889-1930). A transição do governo imperial para o republicano ocorreu em um longo contexto de erosão do edifício imperial, em que diversas forças políticas, à sua maneira, disputavam a nova direção do país.
Pelas vias militares e latifundiárias, o movimento republicano, ao se consolidar futuramente como proposta política vencedora, atrelou o novo governo às noções burguesas de progresso material, liberdade, democracia e ordem racional. Entretanto, não se pode negar suas bases socioeconômicas imperiais e coloniais, que resultaram em continuidades de elementos estagnatórios. A consolidação de um regime oligárquico foi a realidade durante esses anos de transição política. A classe senhorial brasileira, estruturada com base em relações mercantis-escravistas, estratificações sociais e desigualdades econômicas, desempenhou um papel fundamental na construção do novo Estado brasileiro.
Durante o pós-Abolição, a noção conservadora de civilização foi difundida como forma de manter a ordem social e preservar os interesses das elites dominantes. Nesse contexto, a Proclamação da República foi um marco histórico, mesmo com as divergências políticas e as diversas concepções de liberdade envolvidas entre os variados grupos sociais. Esse acontecimento, portanto, consolidou-se como um marco histórico importante de consolidação de um regime oligárquico, que, longe de promover o progresso da plena liberdade aos brasileiros, perpetuou as desigualdades sociais, econômicas e eleitorais no Brasil republicano.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Murilo de. “Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República do Brasil”. In: CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de História e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. cap. 7. p. 83-106.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim – o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Ed UNICAMP, 2001.
DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole (1808-1853)”. In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 160-186.
MATTOS, Ilmar Rohrloff. Do Império à República. Estudos históricos, v. 2, n. 4, p. 163-171, 1989. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2284. Acesso em: 02 abr. 2023.
MATTOS, llmar Rohloff. O Tempo Saquarema. Rio de Janeiro: Acess, 1994.
NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. São Paulo: Topbooks, 1998.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição. Os capoeiras na Corte Imperial, 1850-1890. Rio de Janeiro: Acess, 1998. p. 205-235.
Publicado por: Lucas Barroso
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