Whatsapp

Gramática e Ensino de Língua Materna: Ponto de vista científico e ideológico

Clique e conheça a gramática e o ensino da língua do ponto de vista científico e ideológico.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

RESUMO: O presente artigo trata de dois olhares sobre a gramática e ensino de língua: científico e ideológico. A base que norteia o conteúdo do texto é um diálogo entre descrição linguística e os efeitos de sentido nos discursos produzidos sobre a disciplina gramática, sobretudo no que tange à constituição histórica do sentido predominante nos diversos níveis do ensino de língua: ensino básico e ensino superior.

Palavras-Chave: gramática; ensino de língua; linguística; discurso.

ABSTRACT: The present article treats of glances on the grammar and language teaching: scientificand ideological. The base that orientates the content of the text is a dialogue between linguistic description and the sense effects in the speeches on the grammatical discipline, above all in it plays him/it to the historical constituition of the predominant sense in the several levels of the language teaching and higher education.

Word-key: grammar; language teaching; linguistic; speech.

Falar sobre gramática e ensino é uma tarefa comparada ao caminhar  sobre um tapete de ouriços, uma vez que os discursos produzidos no decorrer da história internalizaram valores e modelos – barreiras difíceis de serem ultrapassadas - pois promovem categorias de pensamento que não se podem mudar de uma ora para outra. Falar sobre gramática e ensino é uma tarefa comparada ao caminharsobre um tapete de ouriços, uma vez que os discursos produzidos no decorrer da história internalizaram valores e modelos – barreiras difíceis de serem ultrapassadas - pois promovem categorias de pensamento que não se podem mudar de uma ora para outra. 

Entretanto, como os estudos não podem (e não devem) parar, é preciso divulgar alguns pensamentos outros assentados em pesquisas com uma fundamentação teórica alternativa sem deixar de ser consistente, sem o que seria impossível, inclusive, escrever este texto. O ponto de vista apresentado aqui defende a ideia de que a contribuição do ensino da gramática para o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita em todas as disciplinas, só se dará se todos os professores de todas as disciplinas revisarem conceitos e imagens correntes da disciplina gramática. Portanto, nossa reflexão se pautará nos seguintes conceitos políticos correntes de gramática, tal como foram enfocados por Sírio Possenti - (Possenti, 1983):

1. gramática – conjunto de regras para quem quer falar e escrever corretamente;

(corresponde à gramática normativa)

2. gramática – conjunto de regras sistematizadas por um teórico a partir da coleta e análise de dados de uma determinada variedade linguística;

(corresponde à gramática teórico-descritiva)

3. gramática – conjunto de regras utilizadas pelos falantes para atender as necessidades de interação. (corresponde à gramática implícita ou internalizada)

De início, podemos chegar à conclusão de que os discursos sobre o ensino de gramática estão assentados no “falar e escrever corretamente” e nas descrições metalinguísticas da gramática teórico-descritiva. Ensinar a falar e escrever corretamente seria aprender as regras da gramática normativa e um rol de nomenclaturas. A gramática implícita é considerada um conjunto de desvios, uma vez que não atende às regras pré-estabelecidas nas gramáticas 1 e 2. Saber português, pois, é saber regras de acentuação, ortografia, reconhecer categorias gramaticais e funções sintáticas, etc.

Diante dessas considerações, a nossa questão centrará a atenção em duas perspectivas: a científica e a ideológica.  Do ponto de vista científico, o conceito de gramática normativa – conjunto de regras para o bem falar e escrever – não se sustenta, uma vez que “bem falar e bem escrever” são avaliações subjetivas, em nenhum outro campo de estudo encontramos tal tipo de avaliação, imaginem um biólogo dizendo que as células humanas são boas e as células de uma vaca não são, ou um geógrafo dizendo que um continente é melhor do que outro. No mínimo, a pergunta a ser feita é: o que é falar e escrever bem?

O falar em si atende à necessidade que todo falante tem de interagir com outro, constituindo uma prática social própria de todas as comunidades. Portanto, “falar e escrever bem”, mesmo apoiando-se nos “grandes escritores” não é corroborado pelos princípios científicos. Uma atualização do conceito de gramática normativa deveria ser “um conjunto de regras de uma variedade linguística, a padrão, para fins pedagógicos”. A gramática descritiva, ainda bastante presente no conteúdo de ensino língua portuguesa nas escolas, é o resultado de uma pesquisa fundamentada em uma determinada corrente de investigação sobre a linguagem: comparativismo, estruturalismo, gerativismo, funcionalismo, etc. Todo objeto de investigação é descrito através de uma linguagem especializada, a descrição gramatical caracteriza-se também por uma metalinguagem para tal feito. Termos como sujeito, objeto, sintagma, morfema, etc. Servem para nomear e sistematizar os fatos linguísticos investigados. Além disso, é possível observar que temos descrição gramatical da língua portuguesa que se distinguem: descrição tradicional, descrição estruturalista, descrição gerativista e assim por diante, cada uma utilizando nomenclaturas e interpretações. Distintas dos fatos da língua portuguesa.

As pesquisas científicas constituem um componente cultural próprio de toda sociedade letrada e grafocêntrica, cujo objetivo é contribuir para o aprimoramento da sociedade, atendendo às reais necessidades da população integradas à possível transformação de determinadas estruturas. Um dos equívocos no ensino de língua e gramática se dá a partir do momento que se confunde objeto de investigação científica com objeto de ensino de língua.

A metalinguagem, linguagem especializada para descrever o funcionamento da própria linguagem, da língua e da gramática, tornou-se o próprio objeto de ensino na educação básica. Ensina-se toda uma nomenclatura e uma gama de conceitos provisórios como se fossem perpétuos, inquestionáveis e cristalizados. A linguagem, como objeto de ensino, é ou deveria ser analisada em seu funcionamento nos textos, entendendo-os como uma das mais importantes práticas sociais, proporcionando ao aluno a observação e o emprego de certos recursos expressivos em contextos situacionais diversos vividos no cotidiano, seja através do texto oral, seja através do texto escrito, cujo objetivo é atingir uma interação mais significativa para os sujeitos envolvidos nesse processo.

Portanto, o trabalho de análise textual na escola consistiria numa constante testagem de hipóteses para a produção dos discursos para que se conseguisse os efeitos de sentido esperados pelo autor e, concomitantemente, entendendo que nem sempre os efeitos esperados ocorrem, mesmo quando se atinge um nível satisfatório de compreensão da relação sintático-semântica.A gramática implícita ou internalizada, considerada como desvio do padrão ou deficiência linguística (Soares, 1990), é outro fator que merece algumas considerações.

Entendendo a gramática como um conjunto de regras que o falante aprendeu desde os primeiros anos de vida para atender a necessidade de interação, é possível dizer que, na pior das hipóteses, que os desvios também constituem um conjunto de regras que chamamos de gramática. De posse de um conceito de gramática associado à variedade padrão da língua, é (seria) lícito dizer que os usuários que não fazem uso dessa variedade não sabem gramática, portanto não sabem falar e não sabem interagir. Entretanto, se levarmos em conta os princípios científicos, veremos que o objeto de pesquisa é considerado no seu todo, e neste caso, o todo é a língua que, por sua vez, constitui-se como um conjunto de variedades, cada qual com regras distintas, cujas bases permitem interações no contexto social mais amplo. As frases “os meninos estão aqui” e “os menino tá aqui” são elaboradas com regras gramaticais distintas sem prejuízo no processo interativo.

Enquanto a primeira utiliza a redundância nas concordâncias nominal e verbal, a segunda utiliza a cumulação, ou seja, o morfema gramatical – s - assume a função pluralizadora nas referidas concordâncias. Um ensino de gramática produtivo poderia levar em consideração a gramática implícita como ponto de partida, desde que os colegas professores comecem a analisar as diferentes regras gramaticais empregadas – tão legítimas quanto às legitimadas - pelos alunos nos processos interativos. Para tratar a gramática numa perspectiva ideológica é preciso atentar para o discurso produzido sobre essa disciplina, identificando quem o produz para quem e para que. Gnerre (1991) aponta que “A separação entre a variedade culta ou padrão das outras é tão profunda devido a vários motivos; a variedade culta é associada à escrita, é associada à tradição gramatical, é inventariada nos dicionários e é portadora legítima de uma tradição cultural e de uma identidade nacional.”

Tomando emprestado este trecho, acredito que é possível formar a base do quadro a ser traçado. A vinculação da gramática à escrita diz respeito a uma tradição que consiste no registro e sistematização de uma variedade eleita como padrão pela classe que detêm o poder, e cujo objetivo era (ou será ainda?) a comunicação entre os membros dessa classe através de um código específico que exclui a classe estigmatizada de dominada.

O argumento utilizado para justificar a gramática era (é) a legitimidade dos valores de uma cultura que caracterizava (caracteriza) uma identidade nacional – ou seria parte de uma identidade nacional? Os discursos com os quais nos deparamos nos diversos níveis de ensino: fundamental, médio e superior não são diferentes dessa tradição. Falas como “os alunos não sabem português”, “a gramática normativa serve para não deixar as pessoas transformarem a língua numa barbárie”, “se continuar assim, o que será da nossa língua?” nada mais são do que uma reprodução (perpetuação) de um sistema de referência construído no decorrer da nossa história. Entretanto, é de se admitir que os fatos não são tão simples. A gramática normativa, tradicionalmente entendida e enraizada na maioria das escolas brasileiras, assume o papel de manutenção de uma ideologia que se propõe a que os indivíduos não se reconheçam como cidadãos capazes de assumirem a protagonização de seus papéis na construção de uma sociedade alternativa e, pior, não se reconheçam como sujeitos.

O aluno pertencente às classes menos favorecidas durante as primeiras séries depara-se com um arsenal de conceitos, regras e nomes estranhos que precisam ser memorizados e reproduzidos nas avaliações, pois a nota comprovará se esse aluno está aprendendo ou não à língua portuguesa. De fato, não é difícil verificar, já ao final do ensino fundamental, do ensino médio e até do superior, o aluno se vendo como um incapaz de aprender a língua e, embutido nesta constatação, a ideia de que ele, aluno, ocupa uma posição social “inferior”. Se, de fato, houvesse o objetivo de ensinar a gramática normativa, o procedimento ou metodologia seria outro: a criação de condições efetivas de acesso aos textos escritos na variedade padrão atentando para as regras específicas dessa variedade, que dão forma aos conteúdos referências. O que verificamos, portanto, é um discurso de que é preciso ensinar a gramática normativa para que as pessoas falem, escrevam, leiam e ouçam melhor, o que de fato não ocorre.

Pelo contrário, deparamo-nos com a sonegação dessa gramática, à qual chamamos de normativa, ao nosso povo. Os conteúdos aprendidos no processo de formação dos professores de língua portuguesa apresentam-se fragmentados e de difícil acesso, uma vez que o normativo confunde-se com o descritivo e, para enlouquecer os mais sensíveis, a aprendizagem não se desloca para os usos da linguagem. O óbvio, tão próximo, parece inatingível: só aprendemos a aprimorar a nossa capacidade de interagir através da leitura e a produção dos textos, pois foi assim que aprendemos desde crianças, ouvindo e falando. Ler e escrever, portanto, são apenas modalidades de interação numa sociedade grafocêntrica como a nossa. Semelhante à gramática normativa, o discurso da gramática descritiva tradicional apresenta o resultado de uma pesquisa como algo definitivo e, ainda, sem uma fundamentação teórica explícita. Atrelada aos princípios apontados por Gnerre, a Gramática Tradicional e outras que incorporaram algumas noções do estruturalismo e do gerativismo, vê a língua como estática e imutável, assim como sua descrição: inquestionável.

O texto é produzido de tal forma que as hipóteses, as teses e os argumentos inexistem, dessa forma não convidam o leitor a compartilhar opiniões e posicionamentos, caracterizando-se como um discurso único e irrefutável, discurso onde ficam escondidas as complexidades próprias do objeto de investigação científica. Ideologicamente, o discurso das referidas gramáticas parece objetivar a perpetuação da ideia de que tudo está pronto e não é preciso pensar de forma alternativa. Nas escolas, em sua maioria, ainda encontramos o compêndio gramatical como a melhor solução para se aprender língua.

Compêndios esses que apenas apresentam alguns resultados de pesquisas, mas que dimensionam como inquestionáveis e hegemônicos. Não é demais acrescentar que muitos professores de todos os níveis de ensino assumem o mesmo discurso e a mesma postura metodológica como se fossem donos de um saber irrefutável, as complexidades, que deveriam ser estudadas e que proporcionam o aprimoramento intelectual do indivíduo, são simplesmente deixadas de lado.

Os discursos sobre a gramática implícita também têm um cunho ideológico. Os alunos das classes menos favorecidas aprendem a variedade não padrão, conhecendo, portanto, uma gramática que não está de acordo com o padrão linguístico estabelecido. Dessa forma, os conceitos certo e errado passam a prevalecer no espaço escolar, quem não fala como o padrão estabelecido fala errado, ou seja, a grande maioria do nosso povo.

Conclusão

O discurso escolar, pautado na imutabilidade da língua, articula três pontos centrais da ideologia dominante:

1 – a gramática normativa é a língua portuguesa;

2 – quem não aprende a gramática normativa não aprende a língua portuguesa;

3 – o falar em desacordo com a gramática normativa (falar da maioria do nosso povo) é estigmatizado como desvios.

Esta articulação cria uma situação artificial, na qual o aluno se vê em um espaço onde o seu código linguístico que o permite interagir em todas as situações, é desprezado. Desprezada a sua linguagem, desprezado o seu ser sujeito. Estas sucintas considerações possuem como objetivo chamar a atenção para a importância da gramática na formação de habilidades de leitura e escrita. Entendendo a nossa disciplina – gramática – nas perspectivas aqui apresentadas, acredito que será significativo dar mais um passo adiante para formar leitores e produtores de textos de uma maneira mais adequada e coerente. A tarefa não é fácil, pois será preciso ultrapassar os limites de um sistema de referência constituído no decurso histórico. Todavia, se foi a linguagem que o constituiu, é essa mesma linguagem que há de proporcionar as condições alternativas, e necessárias, para a constituição de um outro sistema de referência.

Bibliografia

1. Abaurre, Maria Bernadete Marques;Raquel Salek Fiad; Maria Laura Trindade Mayrink-Sabinson. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1997.

2. Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 8ª ed., 1997.3. _____________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997

4. Benveniste, E. Problemas de linguística geral. Vol.I. Campinas: Pontes, 2000.5.

5. _____________. ______________________. Vol.II. Campinas:Pontes, 2000.

6. Bowman, Alan K. e Woolf, Greg (org.) Cultura escrita e poder no mundo antigo. São Paulo: Ática, 1994.

7. Britto, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1997.

8. Chomsky, Noam. Linguagem e pensamento. Petrópolis, RJ: Vozes, s.d.

9. Desbordes, Françoise. Concepções sobre a escrita na Roma Antiga. São Paulo: Ática,1995.

10.Eco, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática,1991.

11.Franchi, Carlos. Linguagem: atividade constitutiva. Cadernos de estudos linguísticos 22:9 IEL/Unicamp.

12.Geraldi, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed., 1995.13.___________________. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996.


Publicado por: Ricardo Santos David

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.