O CONCEITO GEOGRÁFICO DE BAIRRO
Análise sobre o processo de “bairrização” da cidade do Rio de Janeiro.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Primeiras palavras
A organização político-administrativa do município do Rio de Janeiro privilegia a subdivisão do território carioca em bairros. Na verdade, a cidade é composta por nove subprefeituras que subdividem-se em 33 regiões administrativas (que equivalem aos distritos em boa parte dos municípios brasileiros). As Regiões Administrativas, por sua vez, são compostas por um ou mais bairros. Mas, o que é um bairro? Quais foram os critérios que a municipalidade utilizou para criar os distintos bairros da cidade? Será que estes critérios ainda vigoram? O presente texto tem como meta responder tais questões e, igualmente, propor critérios qualitativos para a o processo de “bairrização” da cidade do Rio de Janeiro.
O Decreto n.º 3158 de 23 d e julho de 1981 e a divisão da cidade em bairros
A divisão oficial da cidade do Rio de Janeiro em bairros ocorreu apenas em 1981, por meio do Decreto n.º 3158 de 23 d e julho de 1981, tendo por base conceitual a noção geográfica de bairro defendida por uma conceituada pesquisadora (SOARES,1990). Este estudo foi elaborado pela professora Maria Therezinha Segadas Soares, em 1962, no âmbito da geografia clássica (SOARES, 1962), embasada na abordagem do geógrafo francês Pierre Monbeig (1957), segundo o qual uma cidade é um conjunto de bairros dos quais cada um tem sua própria fisionomia, resultante da função de seus habitantes e de sua idade. Todos esses bairros, mais ou menos integrados entre si, formam a cidade. Para Monbeig, um bairro urbano tem uma feição que só a ele pertence, uma vida particular, uma alma. Influenciada por tal noção, Soares (1990, p. 105) arrola:
a noção de bairro é de origem popular, tirada da linguagem corrente. Para o habitante de uma cidade, o bairro constitui, no interior da mesma, um conjunto que tem sua própria originalidade (...). A noção popular de bairro é muito mais geográfica e rica, uma vez que se baseia em um sentimento coletivo de seus habitantes.
No zoneamento da cidade em bairros, Soares (1962; 1990) considera importante o papel das elevações, uma vez que pode separar partes da cidade, isolando-as das outras. Para a pesquisadora, essa característica física pode contribuir para que um lugar adquira individualidade de bairro. Nesta abordagem, os elementos que poderiam contribuir para a individualização de um bairro – além do relevo – seria o conteúdo social, a paisagem urbana e a função. As forças do passado e os fatores do presente, igualmente, coadunam para a constituição de um bairro. Muitas vezes, no entanto, a administração municipal não utiliza esse critério, desconsiderando bairros autenticamente eleitos por seus moradores, como é o caso de Ilha de Guaratiba (FERNANDES, 2015).
Segundo o pesquisador Marcelo Lopes de Souza (1989), que se debruça sobre o conceito de bairro enquanto categoria de análise, este não pode ser definido negligenciando sua individualidade e a vida de relações que o dinamiza. Neste sentido, “qualquer bairro é, simultaneamente, uma realidade objetiva e subjetiva/intersubjetiva” (SOUZA, 1989, p. 148). Em sua abordagem fenomenológica, “estas duas dimensões interpenetram-se” (SOUZA, 1989, p. 148). Como todo lugar, o bairro é vivido e experimentado por seus moradores, compondo estes (moradores e bairro), um ente inseparável (SCHUTZ, 1979; TUAN,1980; 1983; 2012; 2013; MELLO, 1991; 2000; FERNANDES, 2010; 2014 a; HALLEY, 2014). Em sua proposta de visão holística, dialogando com o humanismo em geografia, Souza (1989, p. 149-150) pontua:
O bairro possui uma identidade intersubjetivamente aceita pelos seus moradores (...). Um olhar fenomenológico sobre a constituição dos bairros evidencia que o bairro corresponde a uma certa parcela da cidade que, por força das relações sociais, constitui para o indivíduo um espaço vivido e sentido. O reconhecimento e o sentimento em relação ao bairro, advém do fato de ser ele o lugar onde nascemos, onde se encontra a nossa casa, a casa dos nossos amigos, a praça que frequentamos (...). Esta gama de sentimentos é imprescindível para a identidade de um bairro.
Embora aponte a intersubjetividade como elemento essencial para a caracterização de um bairro, Souza (1989) não ignora sua dimensão objetiva. Para ele, é imperativo que as duas dimensões que constituem o bairro interajam no sentido de despertar nos moradores um sentimento de pertencimento ao seu bairro que o geógrafo, baseado em Tuan (1980), nomeia de bairrofilia (SOUZA, 1989, p. 151).
Ilha de Guaratiba: um bairro afetivamente recortado por seus moradores
Para os gestores municipais, Ilha de Guaratiba não possui o status de bairro da cidade do Rio de Janeiro. Mas, será que seus moradores comungam com esta ideia? Ou será que os guaratibanos consideram seu lugar um bairro? Acompanhemos o que diz o Sr. Bento acerca de seu “bairro vivido”:
Ilha de Guaratiba é o meu bairro. Nosso lugar é diferente de todos os outros da cidade. Tente achar no Rio de Janeiro um bairro que possua características semelhantes ao nosso? Até hoje eu não entendo o porquê da prefeitura não reconhecer Ilha de Guaratiba como um bairro. Quando preencho um formulário qualquer ou quando me perguntam acerca do bairro onde resido, respondo sempre que moro em Ilha de Guaratiba (Sr. Bento – feirante – 67 anos).
Como aponta o Sr. Bento nas linhas anteriores, Ilha de Guaratiba ainda não mereceu por parte do poder público uma demarcação oficial para seus limites de bairro. Assim como a Cinelândia: nome nunca oficialmente lavrado, mas consagrado nos corações e mentes e na boca do povo, Ilha de Guaratiba representa um bairro afetivamente recortado pelos guaratibanos. Um outro exemplo relacionado aos bairros eleitos e recortados afetivamente por seus moradores pode ser vislumbrado em Bandeira (1999). Em sua monografia de especialização, a geógrafa elabora um estudo sobre Mallet, nome de um bairro não-oficial da Zona Oeste do Rio de Janeiro, incorporado oficialmente aos bairros de Realengo e Magalhães Bastos. Mallet possui população predominante de classe média, sendo um bairro residencial com um vibrante comércio. Apesar de não ser reconhecido pela Prefeitura do Rio como um bairro, assim como Ilha de Guaratiba, Mallet foi alçado a tal patamar de recorte afetivo por parte de seus moradores.
A respeito da temática bairro, o geógrafo Marcelo José Lopes de Souza (1989, p. 150) entende que, cônscia ou inconscientemente, as pessoas “sempre demarcam seus bairros a partir de marcos referenciais” que estabeleceram, “produzindo uma herança simbólica que passam de geração a geração”. Para Souza, os limites do bairro podem até ser imprecisos ou variar de pessoa para pessoa. Esta variação, defende Souza (1989), não deve ser muito grande, caso contrário, dificilmente estaremos diante de um bairro, uma vez que não haverá suporte para uma identidade compartilhada por seus moradores (SOUZA, 1989; 2003).
Como vemos, o bairro geográfico não é aquele demarcado por um limite político que não considera suas especificidades físicas e humanas. Um bairro de fato é aquele reconhecido, recortado e eleito por seus moradores (SOUZA, 1989; HALLEY, 2014). “Na rolança do tempo”, contudo, como defendeu Mário Lago (1976) em seu livro, esta perspectiva sofreu grande impacto mesmo no interior da cidade do Rio de Janeiro. Um bairro como a Tijuca passou a ter limites ampliados por conta da ganância dos especuladores imobiliários e, nesta onda, singram moradores de bairros mais ou menos distantes como Praça da Bandeira, Estácio, Rio Comprido, Andaraí e, entre outros, até Vila Isabel e Grajaú. Hodiernamente, a perda dos laços de vizinhança, a renda e o medo do outro alteraram os limites dos bairros. No caso da Tijuca, status e renda carrearam para limites tênues e fluidos. Com efeito, os limites variam de órgão para órgão e de pessoa para pessoa. As paróquias estabeleceram os limites mais remotos e tradicionais no contexto da cidade por meio ou a partir das sesmarias e engenhos e suas capelas. A Prefeitura e seu IPTU utiliza uma outra divisão. Os Correios possuem uma demarcação própria dos bairros. A CEG uma outra e assim por diante.
Em prosseguimento, visualizemos, o depoimento do funcionário público Marcos Sardinha em relação ao seu lugar de moradia:
O Túnel da Grota Funda facilitou, tanto o acesso ao nosso lugar, quanto o nosso acesso aos diferentes pontos da cidade. Para mim, Ilha de Guaratiba é um bairro estratégico na Zona Oeste. Eu acredito que Ilha de Guaratiba é o ponto convergente da Zona Oeste. O nosso bairro está próximo do Recreio dos Bandeirantes, das Vargens (Vargem Grande e Vargem Pequena), da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá – bem como de Campo Grande e adjacências. Ilha de Guaratiba está para a Zona Oeste assim como o Méier está para a Zona Norte. Neste sentido, o túnel só agrega valor ao bairro, uma vez que facilita a nossa locomoção e nos tira do nosso histórico isolamento por conta da Serra da Grota Funda que dividia a Zona Oeste em duas partes (Marcos Sardinha – 36 anos – funcionário público).
Nas palavras acima, Marcos Sardinha não só considera Ilha de Guaratiba um bairro, como eleva a localidade à condição de “ponto convergente da Zona Oeste”. A opinião do referido morador baseia-se, obviamente, na localização estratégica do lugar, estabelecido entre bairros da Zona Oeste Tradicional (Santa Cruz, Campo Grande e adjacências) – situados a oeste das elevações pertencentes ao Maciço da Pedra Branca – e os demais bairros da Zona Oeste litorânea (Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca...), posicionados a sudeste da Serra Geral de Guaratiba (TARGINO e MONTEIRO, 2000). Tudo isto conflui para estabelecer vantagens locacionais referendadas pelo morador. O túnel vem na esteira da ambição de transformar o lugar em um bairro residencial no bojo do pensado Recreio de Guaratiba, defendido desde a administração César Maia, integrando a Baixada de Guaratiba à faixa litorânea de alta renda da cidade.
As distintas “Guaratibas”
Os registros de Guaratiba remontam a 1579, ano de inauguração da sesmaria do mesmo nome. Seus domínios atuais coincidem com os limites estabelecidos por meio do decreto 3158 de 1881 – documento que instituiu a R. A. de Guaratiba – sendo esta composta por três bairros oficiais (Guaratiba, Barra de Guaratiba e Pedra de Guaratiba).
Além dos três bairros citados acima, no interior de Guaratiba (o mais extenso bairro da cidade), há um outro bairro eleito por seus moradores, o qual a prefeitura não reconhece como tal, cujos limites são fluidos e existencialmente demarcados: Ilha de Guaratiba.
As “Guaratibas”, portanto, são representadas por uma região ampla no bojo do território carioca. Apesar da amplidão desta área, constatamos em pesquisas qualitativas que – em Ilha de Guaratiba – há um forte vínculo entre os guaratibanos e seu universo vivido, fato que comprova a bairrofilia do lugar e fortalece a identidade do bairro eleito por seus moradores. Os residentes da Barra de Guaratiba, por exemplo, se orgulham de ser chamados de “barreiros”. Nas demais localidades de Guaratiba, não há uma denominação específica para os residentes. Os moradores de Ilha de Guaratiba, no entanto, se orgulham de fato de serem chamados e (re)conhecidos como guaratibanos. O guará, outro exemplo, não é evocado como símbolo em Guaratiba como um todo. Em Ilha de Guaratiba, contudo, a ave simboliza um retorno ao seu passado e uma veneração à sua natureza.
Considerações finais
Em 1981, por ocasião do decreto que instituiu os logradouros oficiais do município do Rio de Janeiro, eram 153 bairros reconhecidos pela municipalidade. Hodiernamente, no entanto, não há consenso sobre o número de bairros da cidade. Enquanto alguns estudos supervisionados pela prefeitura destacam os 160 bairros oficiais da cidade (TARGINO E MONTEIRO, 2000), outros afirmam serem 168 os lugares que merecem a distinção de bairros (SUBPREFEITURAS DO RIO DE JANEIRO). Em meio a esta confusão, ocorrem casos como o de Ilha de Guaratiba que – segundo a lei municipal 6.601 do dia 31 de maio de 2019 – passa a ser o mais novo bairro da cidade do Rio de Janeiro (FERNANDES, 2019). Neste ínterim, o prefeito sanciona uma lei ordinária que cria um novo bairro carioca sem, no entanto, estabelecer os seus limites físicos e/ou existenciais. Como um bairro poderia existir oficialmente sem estar no mapa do município? Bom! Este é o caso de Ilha de Guaratiba que, embora mereça ser reconhecido oficialmente como bairro, em seus 441 anos de história e geografia – jamais dependeu do poder público para se mostrar um bairro geográfico eleito por quem realmente importa quais sejam os seus moradores.
Referências
BANDEIRA, Lucia Batista. Mallet - Um Bairro Eleito e demarcado Afetivamente. Monografia de especialização em políticas territoriais no estado do Rio de Janeiro - UERJ: Rio de Janeiro, 1999.
FERNANDES, Marcio Luis. Decodificando geografias pretéritas e hodiernas de Ilha de Guaratiba (Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro: PPGEO/UERJ, 2010. 99 f.
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______. Ilha de Guaratiba: um lugar descortinado por seus moradores desaguando no Rio olímpico (Tese de doutorado). Rio de Janeiro: PPGEO/UERJ, 2015. 189 f.
______. Um lugar do Rio: sobre as geografias de Ilha de Guaratiba. Novas Edições Acadêmicas. Rio de Janeiro, 2017. 260 p.
______. Ilha de Guaratiba: o mais novo bairro da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2019. Disponível em: https://www.webartigos. com/artigos/ilha-de-guaratuba-o-mais-novo-bairro-da-cidade-do-rio-de-janeiro/ 163167. Acesso em 28 de fevereiro de 2020.
HALLEY, Bruno Maia. O Bairro e os enredos do lugar. In: Revista Geograficidade. v.4, n.1, Verão 2014. Niterói: UFF, 201. p. 43 – 57.
LAGO, Mário. Na Rolança do tempo. Editora Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro, 1976.
MELLO, João Baptista Ferreira de. O Rio de Janeiro dos Compositores da Música Popular Brasileira – 1928/1991 – uma introdução à geografia humanística. 1991. 300 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1991.
______. Dos Espaços da Escuridão aos Lugares de Extrema Luminosidade – O Universo da Estrela Marlene como e documento para a construção de conceitos geográficos. 2000. Paginação irregular Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.
MONBEIG, Pierre. Novos estudos de geografia humana brasileira. Difusão europeia do livro: São Paulo, 1957.
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 319 p.
SOARES, Maria Therezinha de Segadas Soares. Aspectos da geografia carioca. Conselho nacional de geografia: Rio de Janeiro, 1962.
______. O conceito geográfico de bairro e sua exemplificação na cidade do Rio de Janeiro. In: BERNANDES, Lysia; SOARES, Maria Therezinha de Segadas. Rio de Janeiro – Cidade e Região. Biblioteca Carioca: Rio de Janeiro, 1990. p. 105-120.
SUBPREFEITURAS DO RIO DE JANEIRO. Disponível em: https://www.orio dejaneiro.com/subprefeituras-htm/. Acesso em 28/02/2020.
TARGINO, Tânia; MONTEIRO, Neide Carvalho. Atlas Escolar da Cidade de Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Educação: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2000. 41p.
TUAN, Yu Fu. Topofilia: Um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1980. 288 p.
______. Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. 250 p.
______. Topofilia: Um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. Londrina: Eduel, 2012. 344 p.
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Publicado por: Marcio Luis Fernandes
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