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A ARTE DE PARTEJAR E A VIDA NO ALTO PURUS

Breve análise sobre a arte de partejar e a vida no alto purus.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

Observa-se que a vida no Alto Purus não é tão simples quanto se pode imaginar. Nesse meio vivem as parteiras, mulheres que aprendem desde cedo a lidar com a vida de outras pessoas no seu início, e, por vezes, no fim. Elas assumem compromissos que estão para além de suas responsabilidades sociais. Mas elas não veem dessa forma, pois encaram a arte de partejar como missão divina; e a Deus não se questiona, se cumpre. Quando pressionada pelas autoridades municipais por não levar a parturiente primeiro ao hospital ao invés de atendê­-la em sua própria residência, a parteira prefere o silêncio. Esse silêncio pode ter muitos significados: que não estava ajudando o poder municipal, e sim a comadre, vizinha, amiga, parenta; que se o pessoal da saúde tivesse realmente preocupado com a gestante teria encontrado formas de chegar até ela e ofere­cer os serviços públicos de que a mulher grávida necessita; que toda ajuda é bem-vinda quando se está a sofrer; mas também pode não significar nada.

Pode não significar nada porque a parteira não busca significados quando na relação entre ela e a gestante entra um terceiro elemento, o Estado. Para ela, ou o poder público faz ou não faz. Na beira do rio, ou seja, na zona rural, não há tempo para pensar em condições adequadas ou em condições seme­lhantes ao que se tem nos hospitais da cidade para uma criança nascer; não porque as pessoas sejam incapazes, ou destituídas das melhores características humanas. Isso ocorre simplesmen­te porque as coisas são o que são, e aos olhos de uma mulher grávida o que importa é a vinda de seu filho ao mundo; a família pensa do mesmo jeito. A parteira não é diferente dos demais ribeirinhos, e seu compromisso é com a vida. E isso é tudo! Em sua vida cotidiana, ela é mulher índia, não índia, cabocla, ne­gra, branca, amarela, brasileira, peruana; ela é mãe, avó, esposa, irmã, tia, sobrinha, prima, comadre, madrinha, “mãe véia”, vi­zinha, farinheira, lavradora, colonheira, pescadora, coletora, ex­trativista, caçadora, seringueira. Enfrenta todos os problemas de comunidades isoladas nos altos rios amazônicos. Mas, se a chamam, ela pode ser benzedeira, curandeira, orientadora es­piritual católica ou evangélica. E na hora de atender uma ges­tante que sofre com as dores do parto, a parteira usa toda a sua experiência para se concentrar única e exclusivamente no parto, na nova vida que vai nascer. Sua viagem é para o interior de si: reza, ora, faz simpatia, magia. Em algum momento de sua vida, ela aprendeu técnicas básicas profiláticas ou higiê­nicas utilizadas pela medicina moderna. Isso parece pouco, mas faz diferença.

Pode-se dizer que se trata da coexistência de um saber empírico, aprendido com os mais velhos, com extratos da ciên­cia médica e da enfermagem modernas. Essa aprendizagem se dá sem alardes e sem chamados explícitos ou sem inscrições de candidatos (as) a alunos (as); os pequenos segredos são transmitidos por gestos silenciosos. Às vezes, uma simples reza ou oração constitui-se numa ferramenta pedagógica podero­síssima na construção e transmissão do saber da parteira. Uma menina de olhar desconfiado, de cócoras no canto da sala, com os braços em volta dos joelhos, acompanha toda a movimenta­ção da casa: a mãe sente as primeiras dores, cochicha ao ouvi­do do pai, que sai sorrateiramente com um chapéu de palha na cabeça, cigarro forte aceso entre os dedos, terçado, facão, na outra mão e vai chamar a parteira. Minutos depois (isso quando mulher grávida e parteira moram na mesma comunidade, pois se a parteira mora distante, ela vem para a casa da parturiente com uns dias de antecedência), chegam os dois, pai e parteira, calados. Ela vem rezando em espírito, às vezes percebe-se ape­nas leve mexer dos lábios; entra na casa e lava as mãos enquan­to coloca uma panela ou lata com água para ferver, esteriliza a tesoura com água quente e álcool. Outra mulher da casa dá-lhe assistência e entrega-lhe panos e demais objetos de que ela ne­cessite. A parteira tranquiliza a mulher buchuda, a parturiente, e, ao verificar se o bebê está em posição correta, dá início aos procedimentos para “pegar o menino”. Os homens (só são cha­mados se algo der errado ou se houver necessidade de maior força física) geralmente ficam em rodinha, fumando do lado de fora, na espreita de escutar o choro da criança e, tão logo isso acontece, abrem uma garrafa de cachaça para finalizar o ritual do parto em tom de comemoração. Aos poucos, aquela meni­ninha introspectiva que parecia amedrontada, demonstra sinais de interesse pela arte de partejar.

A coexistência de saberes nos domínios da parteira al­topuruense se amplia com cursos de parteiras na região; tais cursos visam regular a prática da arte de partejar desenvolvida pelas parteiras locais. O poder dos cursos em si é mínimo, pois sua duração é pequena, mas os desdobramentos deles são mui­to importantes devido à divulgação de materiais voltados para o assunto. Assim, os manuais de parteiras, e cartilhas voltadas para a saúde de um modo geral, têm um raio mais amplo na regulação das práticas, ainda que a parteira negue a influência desses materiais na construção do seu saber. Esses materiais chegam aos lugares mais remotos do país. Embora não sejam amplamente divulgados nas comunidades, pois, mesmo sen­do públicos, entram nos domínios privados e são guardados nos fundos de baús e malas das lideranças mais tradicionais e se tornam relíquias, objetos de pequenos segredos, mesmo no interior das famílias. O largo espaço entre as campanhas de divulgação desses materiais pelo poder público agrava essa si­tuação.

Agora, independentemente das responsabilidades pú­blicas, das relações de poder estabelecidas, e das consequên­cias de tal realidade em termos macros, esses materiais possibi­litam outras relações com o saber. Como disse, esses materiais entram para o rol dos pequenos segredos no interior das casas onde eles se encontram. Mas, uma vez descobertos pelo gênio curioso das crianças, que inicialmente se admiram com as ima­gens e posteriormente se aventuram a ler as primeiras palavras e a conhecer o corpo humano, a parteira, geralmente, a mulher mais experiente da casa, toma as devidas providências e sele­ciona silenciosamente sua aprendiz de parteira. Em muitos ca­sos, no início, a jovem não percebe o ato pedagógico da anciã. É, talvez, por isso que nas conversas com as parteiras do Alto Purus, apresentadas anteriormente, muitas das atuais parteiras não sabem detalhar como aprenderam a arte de partejar, dizem apenas que aprenderam vendo alguém ou que é dom de Deus.

Referências

ARAÚJO, A.S. Parteiras no Alto Purus: vida & saber. Rio Branco-AC: Edufac, 2019.

BRENES, Anayansi Correa. Bruxas, comadres ou parteiras: a obscura história das mulheres e a ciência; dos contornos do conflito parteiras e parteiros franceses. Belo Horizonte: Coopmed/Pelicano, 2005.


Adelmar Santos de Araújo - Professor pesquisador no Centro de Educação Popular e Pesquisas Econômicas e Sociais – CEPPES. Pós-doutorando em História, Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2015). Mestre em Educação, Bacharelado e Licenciado em História pela História Universidade Federal de Goiás (2009). Membro do Grupo de Pesquisa La Folie: História da Loucura. Autor de livros e artigos publicados.


Publicado por: Adelmar Santos de Araújo

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