Uma Antropologia da Cultura*II: O homem, que realidade é essa?[1]
Antropologia filosófica, essência do homem, relações estabelecidas pelos homens,...O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
O ser humano é o centro das atenções de várias ciências. E mesmo assim permanece uma incógnita. A antropologia é uma das veredas a partir de onde se pode entender esse ser tão complexo que somos nós mesmos, mas ao mesmo tempo “somos inevitavelmente centro de perspectiva em relação a nós mesmos” (CHARDIN, 1986, p. 25)
Iniciemos nos colocamos um problema não da antropologia cultural, mas da antropologia filosófica. Nossa indagação inicial não se refere ao Homem em suas relações e produções, mas em sua essência: constatamos sua/nossa existência e por isso queremos saber o que é essa realidade à qual chamamos de Homem ou de ser humano. Notemos que é sempre “o homem concreto, condicionado, que pergunta pela essência do homem. Já trazemos conosco a nós mesmos, a nossa situação, a nossa experiência, o nosso horizonte de compreensão. Esse horizonte não deve ser excluído, pois ele é a condição da pergunta” (RABUSKE, 1999, p. 17). Ou seja, não negamos as relações e produções – a cultura – para indagarmos e respondermos pela essência humana.
Essa indagação, sobre o que é o Homem, não exclui a percepção das relações estabelecidas pelos humanos. Aliás é essa teia de relações que explica e possibilita a indagação cultural. Além disso esse é um dos pontos de referência na perspectiva evolucionista teilhardiana, como nos diz o célebre jesuíta: “à nossa volta, no espaço de algumas gerações, laços econômicos, e culturais de toda espécie se estabelecem e se vão multiplicando em progressão geométrica” (CHARDIN, 1986, p. 278). E a partir dessa multiplicação de laços se desenvolvem e se definem os laços culturais e mais se define a essência humana.
O Homem é um existente que tem consciência de si e do mundo que o circunda. Mas isso não é suficiente para explicá-lo. O Homem é mais do que isso, ele é complexo, pois é insatisfeito; é insatisfeito porque pensa e faz escolhas. O padre Batista Mondin, assim coloca a questão:
“Eis uma constatação indiscutível: o homem é uma realidade extremamente complexa. Isso é verdade, antes de tudo, na ordem das ações. Ele exerce atividades, de todo gênero: conhece, estuda, escreve, fala, trabalha, joga, reza, canta, ama, sofre, diverte-se, come, etc. E cada uma destas atividades suscita questões e problemas de difícil solução. Mas a complexidade acentua-se ainda mais quando se passa do plano da ação ao do ser. Então nos perguntamos: quem é este indivíduo singular que chamamos Eu e que qualificamos como pessoa? O que é que permite a seu corpo explicar as mencionadas atividades, muitas das quais transcendem tão abertamente os confins da materialidade?” (MONDIN, 1981, p. 55)
A resposta do autor é a afirmação do problema: Ele é um “enorme emaranhado de problemas”. Esse emaranhado de problemas ocorre, entre outros, pelo fato de que o Homem não se satisfaz. Sendo insatisfeito lança-se, constantemente, em novas experiências a fim de modificar o que o circunda. E modificando seu ambiente, modifica-se a si mesmo. A partir disso podemos dizer que, para entendermos o Homem, é necessária a
“Compreensão de todas as formas vitais e da natureza da própria vida. Em outras palavras, faz-se necessário um conhecimento acerca do dinamismo vital que é comum aos homens e aos animais dos mais simples aos mais complexos. Interessa ao estudioso da antropologia física conhecer os mecanismos vitais todos, desde os processos de reprodução e de genética ao da conservação. Não menos importante para um estudo desse tipo é o conhecimento da geografia O homem é um animal terrestre e o mundo físico é uma condição síne qua non para sua sobrevivência”. (MELLO, 1982, p. 37)
Isso nos leva a afirmação de que o Homem é diferente de todas as demais realidades. Aliás o Homem é o único que consegue perceber essa diferença. Ele percebe-se no mundo dando-lhe significado ou criando significado para a existência dos existentes. E como conseqüência dessa significação, o homem cria funções e utilizações para as realidades com as quais se relaciona. Isso implica dizer que o Homem manipula o mundo recriando-o de acordo com as circunstâncias ou necessidades.
“Não é preciso ser um homem para perceber os objetos e as forças ‘em círculo’ ao redor de si. Todos os animais, como nós mesmos, estão em situação idêntica. Mas é próprio do Homem ocupar na Natureza uma posição tal, que essa convergência de linhas não seja apenas visual, mas também estrutural.[...]. Em virtude da qualidade e das propriedades biológicas do Pensamento, encontramo-nos colocados num ponto singular, sobre um nó, que domina toda a fração do Cosmo atualmente aberta à nossa experiência. Centro de perspectiva, o Homem é simultaneamente centro e construção do Universo”. (CHARDIN, 1986, p. 26, grifo nosso)
Ocupando o seu espaço o homem cria o mundo. Ao ponto de Laplantine (2000) dizer que: “Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, [...] faz tanta questão, é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos.” (LAPLANTINE, 2000, p. 21, grifo nosso). Organizando o mundo e se recriando o Homem se apresenta a si mesmo como um espetáculo a ser apreciado. “Ao contrário dos animais que se transformam corporalmente para se adaptarem às mudanças do meio ambiente em que vivem , nós transformamos os ambientes em que vivemos para adaptá-los a nós” (BRANDÃO, 2008, p. 27, grifos nossos).
O Homem está no mundo reconhecendo-o. E faz isso porque se sente capaz de agir, reproduzindo-o. Aliás o mundo só é mundo porque assim o determina o Homem. Embora com realidade objetiva independente, o mundo só é o que é, deixando de ser apenas natureza, porque o Homem lhe dá essa significação.
“Desde que existe, o Homem se oferece como espetáculo a si próprio. Com efeito, há dezenas de séculos ele só se olha a si mesmo. E no entanto mal começa a adquirir uma visão científica de sua significação na Física do Mundo. Não nos admiremos dessa lentidão no despertar. Muitas vezes, nada é tão difícil de se perceber quanto aquilo que deveria ‘saltar-nos aos olhos’. Não necessita a criança de urna educação para separar as imagens que assediam a sua retina recém-aberta? Ao Homem também, para descobrir o Homem até o fim, foi necessária toda uma série de ‘sentidos’, cuja gradual aquisição, conforme veremos, abrange e expande a própria história das lutas do Espírito”. (CHARDIN, 1986, p. 26).
Inicialmente o Homem toma consciência de si e do fato de estar no mundo. Conseqüentemente se percebe completamente diferente dos demais existentes; passa, então a dar sentido à existência dos existentes. Dá sentido porque pensa, porque se socializa e porque manipula os elementos da realidade; gera cultura e transcende à realidade humana.
Podemos dizer que praticamente todas as correntes de filosofia procuram dar uma explicação para esta realidade à que se chama Homem. Dessas explicações um ponto parece ser comum e sobre o qual as vozes se fazem unânimes: o fato do homem ser pensante e a partir disso ser capaz de manipular o mundo em que se insere. Podemos dizer que essas são características eminentemente humanas ou distintivas do Homem.
Ressaltemos que o Pensar não é só o que se entende etimologicamente: capacidade de pesar, avaliar. Pensar refere-se também à capacidade de fazer escolhas o que implica em ser capaz de agir consciente e responsavelmente – ponto de partida para a criação da moral. Aliás, o Homem avalia, justamente, para fazer escolhas e poder agir. Portanto o Homem é aquele que avalia e escolhe, e faz isso a partir de um processo reflexivo que exige uma postura introspectiva e ativa. A introspecção deriva da capacidade de abstração, capacidade de representar todas as realidades; e a ação resulta da consciência, sabendo o que e porque realiza o que faz. Na verdade quando dizemos que o Homem é capaz de pensar pretendemos afirmar que ele é capaz de se comunicar a respeito das realidades com as quais não está em contato imediato. Ele pode representá-las, mentalmente no processo de reflexão/abstração. Essa representação pode ganhar as mais diferentes formas, desde a artística, como a música, até as ciências e a religião; tudo o que recebe a classificação de cultura.
Outra característica do Homem é a da sociabilidade. A sociabilidade, ou a capacidade de viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser uma das melhores caracterizações do Homem. Diferentemente do que ocorre com outras espécies, o Homem não se associa por instinto, mas por vontade. O Homem não é dependente, mas senhor da sociedade; não está nela devido aos instintos, mas por que assim o quer.
Entretanto aqui precisa se fazer uma ressalva. Não nos parece que o Homem seja, essencialmente, um ser social, mas se faz social a partir de suas necessidades e para superar seus medos. Sendo assim a sociedade humana estaria assentada sobre os pilares do medo e das necessidades. A vontade de viver em grupo se deve ao fato de que o ser humano é limitado, o que significa dizer que tem necessidades e tem medo: do que não conhece e do que já conhece. O medo em relação ao mundo, ao desconhecido provocam no Homem a consciência de sua limitação e daí a percepção de necessidades. Em razão disso decide-se por viver em grupo, pois o grupo, a sociedade é um fator de segurança.
Podemos dizer que, embora um ser sectário o Homem se socializa, não por ser sociável, mas porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por medo de não sobreviver procura a ajuda dos semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Assim sendo a vida social é um meio pelo qual o Homem tira proveito da fraqueza de outros para se fazer forte. Mas a sociedade é um caminho para o isolamento, como afirma Nietzsche, dizendo que todo homem : “elite aspira instintivamente à sua torre de marfim, onde está livre da massa, do povo, da multidão, onde pode esquecer a regra ‘homem’, sendo ele próprio uma exceção a essa regra” (NIETZSCHE, [2005] (a), p. 43)
Com isso também podemos dizer que outra característica do Homem é a maldade. Essa característica recebe o seguinte comentário de Nietzsche: “ver sofrer; faz bem; fazer sofrer melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiadamente humano” (NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64). E o pensador alemão ainda acrescenta:
“É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representar-se com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres; por outro lado [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a ‘deificação’ da crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior”. (NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64. Grifo nosso).
A partir da referência à “alegria festiva” podemos acrescentar mais uma característica ao Homem: ser alegre ou festivo. E com isso voltamos à sociabilidade. Desde os primórdios, o Homem procurou meios de criar artifícios para o agrupamento. Entre eles estão a música, as artes e a religião, utilizadas em momentos festivos. Os momentos de festa possuem várias conotações: desde a comemoração pelas colheitas até o ato de tripudiar o inimigo derrotado. A festa ocorre, portanto não só porque o Homem é capaz de se alegrar, mas como recurso ou meio para significar algo. Festeja-se a colheita bem sucedida, e isso dá alegria pela certeza da fartura, ou o inimigo vencido, pela certeza de não ter sido derrotado. Uma demonstração da festa como comemoração pela derrota do inimigo pode ser lida nos contos 22 e 23 da Ilíada (HOMERO, [1980?]), quando Aquiles arrasta o corpo de Heitor e clama pela glória de ter morto o príncipe dos troianos.
O Homem, portanto, caracteriza-se como esse emaranhado de aspectos e dimensões. Não se esgota ou limita-se a esta ou àquela dimensão, mas é um emaranhado rizomático de capacidades e possibilidades. Em razão disso podemos dizer que o Homem não é, mas constrói-se cotidianamente a partir de um elemento que lhe é essencial: a cultura ou as manifestações culturais.
Referências
A BIBLIA DE JERUSALÉM. 4 reim. São Paulo: Paulinas, 1989
ANTROPOLOGIA http://www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html> acesso: 18/10/2008
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educação. In. SILVA, René Marc da Costa (Org). Cultura popular e educação. Brasília: Salto para o futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008.
CARNEIRO, Neri P. As Múltiplas Inteligências e Inteligência Musical. Disponível em <http://www.webartigos.com/articles/6198/1/as-multiplas-inteligencias-e-inteligencia-musical/pagina1.html> Publicado em www.webartigos.com em 20/05/2008
CHARDIN, P. Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1986
COUCEIRO, Sylvia. Os desafios da história cultural. In. BURITY, Cultura e Identidade: perspectivas insterdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002
DA MATTA, Roberto. Carnaval, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
HOMERO A Ilíada, São Paulo: Europa-América. [1980?]
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 12 reimp da 1 ed, (1988), São Paulo: Brasiliense, 2000.
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural iniciação, teoria e temas. Petrópolis: Vozes, 1982
MONDIN. Batista. Introdução à filosofia. Problemas, sistemas, autores e obras. São Paulo: Paulinas, 1981
________________. O Homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1982
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Escala, [2005] (a)
________________. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Escala, [2005] (b)
RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica 7 ed. Petrópolis: Vozes, 1999
SILVA, René Marc da Costa (Org). Cultura popular e educação. Brasília: Salto para o futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008.
TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002.
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* Texto preparado como material complementar às aulas de Antropologia Cultural, ministradas aos alunos do 2º período de Administração de Empresas, da FAP, durante o primeiro semestre de 2009. Esta leitura se completa com Uma Antropologia da Cultura I e Uma Antropologia da Cultura III
[1] Já tratamos dessa temática em uma discussão sobre múltiplas inteligências e inteligência musical. Artigo publicado e disponível em: http://www.webartigos.com/articles/6198/1/as-multiplas-inteligencias-e-inteligencia-musical/pagina1.html
Neri de Paula Carneiro - Mestre em Educação (UFMS). Especialista em Educação; Especialista em Didática do Ensino Superior; Especialista em Teologia; Professor de História e Filosofia na rede estadual, em Rolim de Moura – RO. Filósofo; Teólogo; Historiador; Professor de Filosofia e Ética na Faculdade de Pimenta Bueno (FAP). Jornalista, produtor e apresentador de programa radiofônico.
Publicado por: NERI DE PAULA CARNEIRO
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