Stasis (στάσις) e Pólemos (πόλεμος): sobre o grego e a guerra na Politeia (Πολιτεία) de Platão
Análise da dinâmica entre stasis e pólemos e sua respectiva importância, em Platão.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Um dos textos mais conhecidos de Platão, senão o mais conhecido, é a República, obra magna que abrange os mais diversos temas abordados pela filosofia deste autor, desde a política e a ética até a metafísica. É diante da eminência de tal trabalho que se desenvolveram inúmeras investigações e análises acerca do diálogo no qual o personagem Sócrates constrói nos discursos a cidade “ideal”, discursos nos quais se apresentam também a alegoria da caverna e o mito de Er, que são entre os trechos mais famosos desta obra em dez livros.
Frente à riqueza de detalhes do texto e de sua densidade, muitos aspectos e trechos assumem um relevante papel na construção argumentativa do diálogo de que se trata. É diante de tal problemática que o artigo educativo em questão resolve abordar a diferenciação conceitual explicitada por Platão, no livro V, acerca da guerra contra os amigos e da guerra contra os inimigos. É por meio desta abordagem de Platão que, em seu projeto argumentativo, se situa a importância do grego e da Hélade, se mostrando, portanto, como um conjunto de passagens de fundamental importância para a compreensão de toda a fundação da Kallipolis, a chamada cidade “ideal” da Politeia, título original da conhecida República (que se trata da tradução latina) de Platão. Portanto, analisar-se-á a dinâmica entre stasis e pólemos e sua respectiva importância no lugar da Hélade, em Platão.
No diálogo, Sócrates desenvolve, em sua exposição para Glaucão (e outros participantes), comentários acerca de como se comportar na guerra, como organizar um povo diante de sua postura frente aos mortos em combate e sobre a escravização dos inimigos. A figura socrática inicia os argumentos acerca da Hélade, do ser grego e do bárbaro em 469b-469c (p. 257, 2000):
Em primeiro lugar, no que entende com a escravidão: será justo escravizarem helenos, cidades helenas, em vez de impedirem, na medida do possível, que outros o façam e se habituarem a poupar a raça helênica, como meio preventivo para não virem a ser escravizados pelos bárbaros?
É nesta passagem que o argumento toma forma, de maneira que, responde e sintetiza Burton: “Os inimigos derrotados devem ser tratados com respeito. Se forem gregos, não devem ser escravizados, e suas terras não devem ser destruídas. Se forem bárbaros, não é preciso tanto.” (p. 174, 2013).
É a partir de tal problemática que a personagem de Sócrates delineia sua distinção, na passagem 470c “(...) o que afirmo é que os povos helenos são aparentados e consangüíneos, enquanto para eles os bárbaros são estranhos e sem nenhuma relação de parentesco.” (p. 259, 2000). Esta distinção funciona, portanto, como justificadora da conduta política e bélica na Hélade e fora dela, de forma que muitos comentadores viram nesta passagem uma possível influência da paz de Antalcides, de 387 a. C., que marcou um momento de estipulação da paz entre as poleis gregas tal como após a Guerra do Peloponeso.
Outrossim, é com uma distinção entre gregos e bárbaros feita explicitamente no corpo do texto, e com a descrição de uma relação de iguais e diferentes, que Sócrates fundamenta a sua distinção entre “stasis” (στάσις) e “pólemos” (πόλεμος) em 470b (PLATÃO, p. 259, 2000).:
O que me parece é que, se dois nomes são pronunciados: guerra (πόλεμος) e sedição (στάσις), é por serem distintos e corresponderem a coisas diferentes, a saber: de uma parte aliado e consagüíneo, e de outra, indiferente e estrangeiro. A luta entre parentes chama-se sedição; entre estrangeiros, guerra.
Traduz-se, aqui, “pólemos” por guerra, e “stasis” por sedição: a primeira como um confronto bélico entre grupos que são estrangeiros e indiferentes entre si; a segunda como um confronto interno de um grupo “consangüíneo” e naturalmente aliado, sendo, por definição da palavra, uma espécie de revolta, motim ou guerra civil na qual os iguais se digladiam. Platão, por meio da figura de Sócrates ainda explicita em um caso específico uma sedição em 470c-470d: “Porém, lutarem helenos contra helenos, sempre que assim procederem, diremos que deviam ser amigos naturais, mas que nesse caso a Hélade está doente e dividida, sendo preciso dar o nome de discórdia a essa dissensão.” (p. 259, 2000).
É demonstrando a diferença entre os conflitos que Sócrates revela sua intenção em todo este movimento argumentativo: é desvelando a natureza de tais conflitos que ilumina-se a diferença entre as relações na Hélade com a Hélade, ou seja, a relação dos gregos entre si e com outros povos. É por meio desta exposição que Sócrates questiona Glaucão sobre onde este gostaria de fundar sua cidade, em 470e: “E então? Perguntei: a cidade que pretendes fundar não fará parte da Hélade?” (p. 260, 2000).
É com a confirmação do interlocutor que Sócrates conclui esta etapa da argumentação da constituição da cidade “ideal”, com uma síntese das vantagens de tal cidade fazer parte da Hélade, ou seja, ser uma cidade grega, de povo grego, o que pode ser encontrado em 471a-471b (PLATÃO, p. 260, 2000):
Assim sendo, na qualidade de helenos não devastarão o solo da Hélade ou incendiarão casas, nem considerarão como inimigos os moradores de determinada cidade, homens, mulheres e crianças, mas apenas uns poucos, os causadores, propriamente, do dissídio. Por isso mesmo, ne hão de querer devastar-lhes o território nem destruir-lhes as casas, pois contam lá com muitos amigos, só prolongando a luta até o instante em que os culpados sejam obrigados pelas vítimas inocentes a dar-lhes satisfações.
Por conseguinte, após todo este movimento argumentativo de afirmação da identidade grega da cidade ideal e de suas relações com o mundo, insere-se, portanto, um novo arco discursivo, o da viabilidade da instauração da sociedade “ideal”, que não será tratado no presente artigo.
Deve-se concluir, que, é diante da diferenciação de gregos e bárbaros que Platão se torna capaz de cunhar dois aspectos importantes de sua obra: a diferenciação entre guerra e sedição; e, por consequência, a importância da situação topográfica da cidade “ideal” nos contornos da Hélade, tendo em vista a política externa da cidade frente a outras poleis. É, para Sócrates, consequentemente, a Helade um lugar privilegiado para a localização da Kallipolis, pois, é em solo grego que a cidade floresce, de maneira que não sofrerá com guerras (pólemos), mas com dissenções (stasis), afinal, trata-se de uma cidade de gregos entre outras cidades gregas. Tal localização se torna vantajosa pois, é diante de seus amigos naturais que o povo da cidade “ideal” irá resolver seus conflitos, embora bélicos, impedindo a devastação e a destruição desenfreada, restringindo sua duração até a responsabilização dos culpados do conflito, como pode-se observar no trecho (471a-471b) citado anteriormente.
Referências:
BURTON, Neel. O Mundo de Platão: a vida e obra de um dos maiores filósofos de todos os tempos. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.
PLATO. Platonis Opera. Oxford University Press, 1903.
Publicado por: José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho
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