Regimes de Historicidade e a Crise do Tempo: reflexões a partir de François Hartog
Breve análise sobre Regimes de Historicidade e a Crise do Tempo: reflexões a partir de François Hartog.
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O objeto desta resenha é a introdução de Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo (2013), que é intitulada “Ordens do tempo, regimes de historicidade”. Publicado inicialmente em 2003, o livro aborda acerca da “crise” do tempo em suas amplas vertentes representativas tanto socialmente quanto historicamente. A autoria da obra é de François Hartog, diretor de pesquisas na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde, desde o ano de 1987, ocupa a cátedra de Historiografia Antiga e Moderna.
Na introdução da obra, o historiador apresenta suas considerações iniciais acerca do tempo histórico, suas ordens, suas especificidades, seus regimes e suas “crises”. As ordens do tempo, que variariam de acordo com os lugares e as épocas, submeter-nos-iam ao seu ímpeto de forma imperiosa. O termo ordem do tempo, já empregado desde a filosofia grega antiga, contribuiria para esclarecer a expressão regimes de historicidade que, segundo Hartog (2013), seriam as combinações das noções de passado, presente e futuro. Nesse sentido, o autor aponta ainda que as relações sociais com o tempo são debatidas desde a Antiguidade, com Anaximandro e Heródoto, passando até a contemporaneidade, com Foucault e Pomian. O tempo, ainda mais de forma recente, passou a ser o centro das preocupações investigativas, a partir, principalmente, dos trabalhos de Michel de Certeau e de Paul Ricœur.
Marcada pela queda do muro de Berlim em 1989, pela desintegração da União Soviética em 1991 e pelo aparecimento de múltiplos fundamentalismos, a história recente, de acordo com Hartog (2013), abalou as relações sociais com o tempo, que teve sua ordem posta em questão tanto no Ocidente quanto no Oriente. Na Europa, muito antes desses acontecimentos, o “estado de instabilidade definitiva” (FEBVRE, 1992), e a consequente “crise” do tempo, havia se iniciado com a eclosão das duas Grandes Guerras Mundiais e com a bipartição do tempo em dois abismos ou eras, no sentido de Valéry (1957), que seria dinamizado em um passado olhado como a-didático e a-exemplar; e um futuro marcado pela sua incerteza (HARTOG, 2013).
Em virtude disso, já na primeira metade do século XX, partindo de Febvre (1992), Hartog (2013, p. 21) afirma que a aceleração da vida e “a urgência, sob pena de não se compreender mais nada do mundo mundializado de amanhã, já de hoje, era olhar, não para trás, em direção ao que acabava de acontecer, mas diante de si, para frente”. Uma das consequências disso foi a criação de uma “brecha (gap) entre o passado e o futuro”, entendido como um “estranho entremeio no tempo histórico, onde se toma consciência de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda” (ARENDT, 1972, p. 19 apud HARTOG, 2013, p. 22). Como apontado por Hartog (2013), com seu conceito, Arendt (1972) traz a suspensão aparente do tempo histórico, que havia surgido no século XVIII, de acordo com Koselleck (2006). Nesse caminho, Arendt (2013), em Origens do totalitarismo, ainda aponta que o conceito moderno de história, estruturado na noção de processo, teria desmoronado. De fato, essa interpretação de história desmoronou.
Nessa direção, com o desenrolar do tempo e da ampliação de um “estado de instabilidade definitiva” (FEBVRE, 1992), as ideologias e as experienciações do tempo, dinamizadas nas categorias meta-históricas de espaços de experiência e horizontes de expectativas (KOSELLECK, 2006; HARTOG, 2013), também teriam entrado em crise, sendo transpassados por dois abismos temporais, no sentido de Valéry (1957).
A história, escrevia François Furet em 1995, voltou a ser “esse túnel no qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o indivíduo democrático vê tremer em suas bases, no fim do século XX, a divindade história: angústia que ele vai ter de conjurar. A essa ameaça de incerteza se une, no seu espírito, o escândalo de um futuro fechado” (FURET, 1995, p. 808 apud HARTOG, 2013, p. 20).
A partir desse período, o ideal moderno de progresso passou a ser, cada vez mais, questionado, com destaque para as considerações de Franz Rosenzweig, Walter Benjamin e Gershon Sholem. Em meio a essa crise ideológica e a essas novas visões da história, ainda potencializadas pela crise econômica dos anos 1970, segundo Hartog (2013), a saída adotada por jovens insurgentes, por exemplo, foi voltar-se para o passado, seja ele possibilitado a partir da rememoração de acontecimentos históricos, como a Resistência e a vitória vietnamita contra a França e os Estados Unidos; ou até mesmo pelo retorno a pensadores clássicos, como Freud, Marx e Kant. Talvez uma repaginação pedagógica do conceito antigo de história? Talvez...
Nesse contexto, não é à toa que, a partir dos anos 1980, os estudos sobre memória e patrimônio popularizaram-se no amplo cenário mundial. Nesse período, por consequência, houve também a renovação e a multiplicação de museus e lugares de memória – estudados por Nora. Nesse sentido, Hartog (2013) aponta que os debates sobre história e memória se iniciaram em 1982, com a publicação da obra Zakhor: História Judaica e Memória Judaica (1992), do historiador Yosef Yerushalmi. Nesse primeiro embate entre história e memória, atribuiu-se vantagens à segunda, em virtude da valorização das testemunhas de eventos traumáticos.
O autor de Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo (2013) também aponta que, irrompendo nos anos 1980 na França, a história do tempo presente surgiu nesse contexto processual de graves crimes contra a humanidade. Para realizar uma investigação em torno do surgimento dessa história, Hartog (2013) adota a noção de regime de historicidade, em uma tentativa de estabelecer um diálogo entre a antropologia e a história, como pretendido por Lévi-Strauss (2008) desde 1949. Afirmamos que entender a complexidade da realidade história a partir de uma interdisciplinaridade é a melhor estratégia a ser adotada.
Hartog (2013) ainda aponta que o regime de historicidade, em sua diversidade, poderia ser compreendido a partir de dois modos, um restrito e um amplo. O primeiro tentaria entender como a sociedade trata seu e do seu passado. Já o segundo serviria para analisar a tomada de consciência de si de um determinado agrupamento humano. Entender a diversidade de abordagens e os modos do regime de historicidade também é uma ferramenta muito válida.
Sendo resultado de elaborações de diagnósticos sobre o tempo presente, a obra Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo (2013), desde a sua primeira publicação no ano de 2003, traz contribuições fundamentais para esses debates. A partir da exposição de uma “crise” na percepção atual do tempo e de suas ramificações sócio-históricas, o autor apresenta conceitos substanciais para a compreensão do mundo contemporâneo em seu próprio regime de historicidade, por exemplo. Nesse sentido, a leitura desse livro é importante por fornecer bases sólidas para as ações do historiador que precisam estar estruturadas em noções de distanciamento e alteridade. Assim, por meio dos contributos dessa obra, é possível um novo olhar para o tempo e sua historicidade, ainda que em contextos de crises históricas e/ou atuais.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. La crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das Letras, 2013.
FEBVRE, Lucien. Combater pour l'histoire. Paris: Armand Colin, 1992.
FURET, François. Le passé d'une illusion: essai sur l'idée communiste au XXe siècle. Paris: Robert Laffont; Calmman-Lévy, 1995.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Puc-Rio, 2006.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “História e etnologia”. In: __________. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2008. cap. 1. p. 13-40.
VALÉRY, Paul. Œuvres. Paris: Gallimard, 1957.
YERUSHALMI, Yossef Haym. Zakhor: História Judaica e Memória Judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Publicado por: Lucas Barroso

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