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Relações de gênero nas séries iniciais

Confira aqui uma observação das relações de gênero nas séries iniciais.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

INTRODUÇÃO

Ao participarmos do Projeto Universidade-Escola Pública como alunas pesquisadoras na 1ª série (2º ano) do Ensino Fundamental surgiu o interesse e a escolha do tema “Relações de Gênero nas séries Iniciais do Ensino Fundamental”. Nossa vivência em sala de aula despertou a curiosidade e nos fez voltar a esse tema ao observarmos algumas atitudes de educadores que insistiam em reproduzir os padrões de gênero comumente estabelecidos de forma quase que mecânica, sem relativizá-los. Percebíamos isso ao vermos educadores separarem/determinarem o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”, como por exemplo, as cores das folhas de sulfite permitidas eram rosa para as meninas e azul para os meninos. Nas brincadeiras, somente as meninas poderiam utilizar as bonecas e somente aos meninos ficavam reservados os carrinhos.

Percebíamos também que quando alguns destes alunos ultrapassavam o limite daquilo que era rigidamente estabelecido, considerado “masculino” ou “feminino”, eram firmemente reprimidos com uma bronca, com uma atitude de ridicularização diante dos colegas da classe ou ainda eram simplesmente ignorados pelos educadores.

Em um dos casos observados, um aluno, sempre que passava por alguma experiência de confronto, crítica ou ao alvo de piada entre os colegas, defendia-se por meio de atitudes agressivas, utilizando palavras como veado, bichinha, mulherzinha ao confrontá-los. Curiosamente esse mesmo aluno apresentava atitudes consideradas como “comportamento feminino”. Tal situação era reiteradamente ignorada pela professora responsável por aquela turma.

Constatávamos, assim, um paradoxo entre e as práticas em sala de aula dos educadores que pudemos observar e as orientações contidas nos PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais. Para melhor colocar o problema, selecionamos os seguintes excertos:

As manifestações de sexualidade afloram em todas as faixas etárias. Ignorar, ocultar ou reprimir são as respostas mais habituais dadas pelos profissionais da escola. [...] A sexualidade, assim como a inteligência, será construída a partir de possibilidades individuais e de sua interação com o meio e a cultura. Os adultos reagem, de uma forma ou de outra, aos primeiros movimentos exploratórios que a criança faz em seu corpo e aos jogos sexuais com outras crianças. As crianças recebem então, desde muito cedo, uma qualificação ou “julgamento” do mundo adulto em que está imersa, permeado de valores de crenças que são atribuídos à sua busca de prazer, o que comporá a sua vida psíquica. [...] A escola deve informar e discutir os diferentes tabus, preconceitos, crenças e atitudes existentes na sociedade, buscando, se não uma isenção total, o que é impossível de se conseguir, uma condição de maior distanciamento pessoal por parte dos professores para empreender essa tarefa. [...] Para isso, o professor deve se mostrar disponível para conversar a respeito das questões apresentadas, não emitir juízo de valor sobre as colocações feitas pelos alunos e responder as perguntas de forma direta e esclarecedora. [...] Em relação às questões de gênero, por exemplo, o professor deve transmitir, pela sua conduta, a equidade entre os gêneros e a dignidade de cada um individualmente. Ao orientar todas as discussões, deve, ele próprio respeitar a opinião de cada aluno e ao mesmo tempo garantir o respeito e a participação de todos. (PCN, p. 77, 81, 83, 84, 1997)

Colocando de modo mais direto, percebíamos que, a prática de alguns professores em sala de aula (percebidos em nossos estágios, em nossas vivências nas escolas) e as orientações dos PCN eram conflitantes, o que gerou o interesse que acabou tornando-se objeto de estudo desse trabalho.

Como recorte, procuramos analisar especificamente o volume 10 dos PCN ao mesmo tempo em que observamos a postura de alguns educadores das séries/anos iniciais do Ensino Fundamental diante das manifestações da sexualidade na sala de aula e nos padrões de comportamento por eles transmitidos no que diz respeito às relações de gênero.

Para tanto, buscamos inicialmente discutir (capítulo I), baseado na literatura específica, o que entendemos sobre relações de gênero, marcando assim o ponto de partida, o lugar de onde analisamos o objeto já apresentado.

A necessidade de uma educação mais consciente sobre o tema nos levou ao desenvolvimento do segundo capitulo: Sexualidade e Relações de Gênero nos PCN. Dessa forma, poderíamos obter elementos mais consistentes para entender a forma como as orientações do documento chegam às vezes, no seu “destino final”, que é a sala de aula. Além disso, acreditamos ser nas escolas o lugar por excelência onde se instalam os mecanismos dos dispositivos da sexualidade, através de tecnologias do sexo, os corpos dos estudantes podem ser controlados e administrados, como afirma Louro (1999).

No terceiro capitulo, fizemos uma reflexão acerca de questões metodológicas a serem utilizadas numa pesquisa mais ampla, a ser desenvolvida posteriormente.

A ideia inicial era – após deixar explícito o que nosso trabalho entende por relações de gênero e analisar o que os PCN sugerem –, ir para “o campo”, isso é, as escolas, para observar o que lá acontece de fato: como as sugestões dos PCN saem “do papel” e chegam “às realidades locais” e como os/as professores/as, alunos/as e pais lidam com essas questões.

 Entretanto, em decorrência dos limites que um TCC nos coloca, achamos por bem[1] limitar – sem danos para nossa reflexão acadêmica –, o escopo do estudo, restringindo-a ao plano teórico.

Nas considerações finais, retomamos de forma sintética e analítica as descobertas da pesquisa, indicando possíveis caminhos de continuidade para as reflexões iniciais que aqui deixamos registradas.

1. CAPÍTULO I: CONCEITO DE RELAÇÕES DE GÊNERO

“A verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos” (Marcel Proust)

Nesse capítulo, procuramos problematizar a expressão relações de gênero. O debate teórico sobre gênero tem sido marcado pelo contraste entre pelo menos duas grandes posições: uma, essencialista, mais estritamente ligada a questões biológicas e naturais para explicar comportamentos, diferenças, relações e hierarquias entre mulheres e homens; e outra que entende gênero como organização e construção social dessas relações. Entre essas duas grandes tendências, há uma gama de possibilidades que assumem formas diferenciadas e subsidiam explicações tanto biológicas quanto construcionistas.

Nicholson (2000) resumiu essas formas de entender e utilizar o conceito de gênero em três categorias: o determinismo biológico, o fundacionalismo biológico e o construcionismo social. Falamos em determinismo biológico quando um fenômeno específico é considerado inteiramente como consequência de fatores biológicos (NICHOLSON, 2000). Uma explicação determinista biológica considera, por exemplo, que todas as mulheres, independentemente de seu contexto cultural, são maternais, sensíveis e ligadas à casa, à vida doméstica, ao cuidado dos filhos, pois todas possuem um corpo que reproduz.

O fundacionalismo biológico é uma categoria intermediária, que tem fundamento na biologia e ao mesmo tempo na construção social.   Segundo Nicholson (2000, p.12-13), “o fundacionalismo biológico permite que os dados da biologia coexistam com aspectos da personalidade e comportamento”. No entanto, essa forma de entender o gênero não explica diferenças existentes entre as mulheres (e entre os homens) em intersecção com outras categorias como classe, raça, idade, fazendo com que o gênero represente o que elas/es têm em comum e raça e classe o que têm de diferente. É uma explicação simplista e essencialista. Simplista porque não abrange a complexidade existente ao pensarmos o gênero em intersecção com essas outras categorias; e essencialista porque admite que as características das mulheres são comuns, independentemente do contexto em que estão, que existe uma essência feminina.

O construcionismo social surge nos anos 1980 e entende gênero como uma construção social, cultural e histórica. Não há características que emanam dos corpos masculinos e femininos essencializando o que é ser mulher e o que é ser homem. Ser mulher ou ser homem na abordagem construcionista social depende de outros fatores, como classe, raça/etnia, da sociedade em que ela vive, do tempo histórico, da idade, entre outras coisas.

No Brasil, o termo relações de gênero aportou na década de 1980, por meio do movimento feminista, quando pesquisadoras brasileiras, ao entrarem em contato com estudos internacionais, foram inspiradas a tomar conhecimento e a estudar a construção social deste conceito, questionando o que é “natural” para cada sexo. (AUAD, 2006).

Atualmente a discussão acerca do tema tem extrapolado os limites de questões exclusivamente feministas atingindo a questão do gênero. Entretanto, muitos estudos ainda tendem a desconsiderar a diferença entre sexo e gênero, deixando de lado a enorme complexidade do assunto, que, para avançar em amplitude e profundidade, necessitam avançar para além das questões estritamente biológicas.

A título de exemplo, podemos citar Elizalde (2006), que, ao traçar o mapa dominante dos estudos sobre a juventude na Argentina, afirma que a categoria “classe social” tem sido por excelência a chave de leitura e interpretação da multiplicidade de práticas, discursos e valores associados ao universo juvenil.

O mesmo não acontece com a categoria gênero, uma vez que, mesmo quando utilizada em pesquisas, ou tem sua relevância diminuída por parte dos estudos, ou é entendida como sinônimo de diferença sexual ou ainda, é reduzida à condição de dado demográfico. Mesmo quando as mulheres surgem como foco central nas pesquisas, aparecem na condição de corpos biologizados – em estudos sobre saúde sexual e reprodutiva (vida sexual, procriação juvenil, anticoncepção de emergência, etc.) ou relacionada como par saúde/enfermidade (bulimia e anorexia, HIV, etc.). Não são consideradas como prioridades, nesses casos, as práticas juvenis da esfera privada, doméstica ou pessoal, onde as mulheres jovens, principalmente das camadas populares – experimentam ou resistem à aplicação de papéis tradicionais ou de prescrições moralizantes associadas ao gênero e à sexualidade. (ELIZALDE, 2006)

Assim, se pretendemos destacar a importância da categoria gênero, acreditamos ser, em primeiro lugar, importante distingui-lo de sexo. Por meio de nossas leituras, chegamos à conclusão que sexo diz respeito às características biológicas de homens e mulheres, ou seja, as características específicas dos aparelhos reprodutores femininos e masculinos, ao seu funcionamento e aos caracteres sexuais secundários decorrentes dos hormônios. Gênero refere-se às relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres que são o resultado de uma construção social do papel do homem e da mulher a partir das diferenças sexuais.

Ao fazer a discussão em torno da construção social dos papéis sexuais em nossa sociedade e das relações de gênero nela existentes, Cabral e Diaz nos mostram que

O papel do homem e da mulher é constituído culturalmente e muda conforme a sociedade e o tempo. Esse papel começa a ser construído desde que o(a) bebê está na barriga da mãe, quando a família, de acordo com a expectativa que traz, começa a preparar o enxoval de acordo com o sexo. Dessa forma, cor de rosa para as meninas e azul para os meninos. No momento do nascimento de um bebê, a primeira coisa que se identifica é o sexo –  menina ou menino – e a partir desse momento ele/ela começa a receber mensagens sobre o que a sociedade espera dele/dela. Isso significa que, por ter genitais femininos ou masculinos, eles/elas são ensinados pelo pai, mãe, família, escola, mídia, sociedade em geral, diferentes modos de pensar, de sentir, de atuar. [...] as relações de gênero são produto de um processo pedagógico que se inicia no nascimento e continua ao longo de toda a vida, reforçando a desigualdade existente entre homens e mulheres, principalmente em torno de quatro eixos: a sexualidade, a reprodução, a divisão sexual do trabalho e o âmbito público/cidadania. (CABRAL; DIAZ, 1998, p.142)

Portanto a construção do que é pertencer a cada sexo acontece de acordo com padrões que são previamente estabelecidos socialmente, regras impostas partindo das diferenças biológicas do sexo. Sendo assim, “gênero” pode ser entendido como “sexo” social. O gênero – como um conjunto de idéias e representações sobre o feminino –, cria uma determinada percepção sobre o sexo anatômico. Assim, ter pênis ou ter vagina (ser menina, homem, mulher ou menino) determina quais serão as informações utilizadas para organizar os sujeitos em uma desigual (e irreal) escala de valores (AUAD, 2006, pg. 21).

Além disso, esses valores, normas e papéis vivenciados pelos homens e pelas mulheres de determinado grupo social específico estão em permanente reconstrução, uma vez que acompanham/respondem/refletem a dinâmica da sociedade a que dizem respeito.

 Esse processo dinâmico – de contínua e incessante (re)construção e (re)significação –, esses valores produzidos, não são estabelecidos dentro do corpo social de modo homogêneo, mas sim distinta e hierarquizadamente. De acordo com Traverso-Yépez e Pinheiro,

O conceito de gênero consolidado na expressão relações de gênero representa a aceitação de que a masculinidade e a feminilidade transcendem a questão da anatomia sexual, remetendo a redes de significação que envolvem diversas dimensões da vida das pessoas. [...] É a esse processo de incorporação [de normas e valores sócio-culturais] que se aplica a expressão socialização de gênero. Considerando o processo de socialização como permanente e sempre inconcluso, diríamos que as categorias de gênero são permanentemente reconstruídas pelas pessoas em suas interações e com elas os valores, papéis, atribuições e normas de interação entre os sexos. Nessa perspectiva, as relações de gênero permeiam, dinamicamente, todo o tecido social, manifestando-se de formas específicas nos diferentes grupos sociais, ainda que mantendo, geralmente, a hierarquização como marca. [...] Certamente, reproduzem-se, também, as contradições e dissonâncias existentes, abrindo-se margem para possíveis rupturas ou subversões. [...] Consequentemente, as relações de gênero situadas sempre em contextos sociais específicos demarcam espaços, delimitam possibilidades e configuram matizes ou modelos de interação entre as pessoas, implicando pressões sobre aquelas que as transgridem ou subvertem.  (TRAVERSO-YÉPEZ; PINHEIRO, 2005, p. 148-149)

Outro aspecto importante que vem à tona por meio da discussão do conceito gênero é o seu aspecto relacional, ou seja, falar de mulheres significa ao mesmo tempo falar de homens. “Esse uso rejeita a validade interpretativa de esferas separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tinha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo” (Scott, 1995, p.75). Essa maneira de entender o conceito de gênero rejeita qualquer explicação biológica, utilizando o termo como forma de indicar construções culturais. Para a autora, gênero é uma “categoria social imposta sobre um corpo sexuado”.

Essa definição entende que o gênero molda a nossa forma de ver e entender o corpo e que tanto o corpo quanto categorias como mulher e homem, masculino e feminino tornam-se objetos de investigação. Como já dito anteriormente, reforçamos que não existe uma essência natural nessas categorias, e sim uma construção.

Nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa –, é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada. (BRITZMAN, 1996, p.74)

Na mesma linha de raciocínio, nos servimos ainda das considerações feitas por Telles, ao afirmar que

[...] acreditar que todas as meninas agirão de uma forma determinada, e diversa do modo de agir dos meninos em geral, é acreditar em uma visão polar, determinista e hierarquizada. Significados de gênero são construções sociais, históricas e culturais que têm a ver com construções de práticas descoladas do sexo da pessoa e mais ligadas às representações de masculino e feminino na sociedade e às relações que partem da forma como essas representações são construídas, em contextos diferenciados e em relação com outras categorias. Não há como produzir um saber coerente a respeito da masculinidade ou da feminilidade; essa tarefa seria impossível, pois elas não são objetos coerentes sobre o qual se possa produzir uma ciência generalizadora. (TELLES, 2005, p. 05)

Assim, baseados nas argumentações aqui desenvolvidas, por meio do pensamento dos diversos autores selecionados acerca do tema, finalizamos esse capítulo, advogando que aquilo que entendemos como comportamentos, atitudes, “coisas de homem” ou “de mulher” estão totalmente desvinculados do biológico (órgãos genitais) uma vez que os entendemos como construções – criações feitas por grupos de determinada sociedade, que os colocam e os impõem aos demais membros daquele grupo.

Além disso, tais comportamentos são aceitos (ou não) de formas desiguais pelos indivíduos daquela sociedade, desencadeando constantes conflitos, revisões, aceitações e recusas – mais ou menos violentas de acordo com a sociedade/momento histórico –, o que em outras palavras, significa relações de poder.

Dito isso, procuraremos a seguir, observar como as orientações dos PCN frente a discussão feita nesse capítulo.

2. CAPÍTULO II - Sexualidade e Relações de Gênero nos PCN

Saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições em vez de perdermos tanto tempo com as identidades e as coerências. (José Saramago)

Elaborados em 1997, pelo Ministério da Educação, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, os PCN possuem, grosso modo, o objetivo de nortear e garantir a formação básica comum em todo o território brasileiro, apontando os referenciais de qualidade para a educação.

Em relação ao ensino de 1ª a 4ª série, os PCN são constituídos de 10 volumes: 1- Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais; 2- Língua Portuguesa; 3- Matemática; 4- Ciências Naturais; 5- História e Geografia; 6- Arte; 7- Educação Física; 8- Apresentação dos Temas Transversais e Ética; 9- Meio Ambiente e Saúde; 10- Pluralidade Cultural e Orientação Sexual.

Uma das justificativas da inclusão da Orientação Sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais como um dos temas transversais a ser trabalhado na escola é que

A partir de meados dos anos 1980, a demanda por trabalhos na área da sexualidade nas escolas aumentou devido à preocupação dos educadores com o grande crescimento da gravidez indesejada entre as adolescentes e com o risco de contaminação pelo HIV. (PCN, 1997, p. 77)

Percebemos aí a preocupação do Estado pela saúde dos educandos, salientando, conforme observa Altmann, que

[...] a sexualidade é um “negócio de Estado”, tema de interesse público, pois a conduta sexual da população diz respeito à saúde pública, à natalidade, à vitalidade das descendências e da espécie, o que por sua vez, está relacionado à produção de riquezas, à capacidade de trabalho, ao povoamento e à força de uma sociedade. (ALTMANN, 2001, p.122)

A parte dedicada às “Relações de Gênero” – volume 10 dos PCN –, possui pouco mais de uma página e explica que “o conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações culturais e sociais” (PCN, 1997, p. 98), sugerindo aos professores abordarem a parte histórica (nos conteúdos de História), promover discussões sobre valores, comportamentos em diferentes culturas em momentos históricos diferentes. Como propostas de conteúdos a serem trabalhados, temos:

  • a diversidade de comportamento de homens e mulheres em função da época e do local onde vivem;
  • a relatividade das concepções tradicionalmente associadas ao masculino e ao feminino;
  • o respeito pelo outro sexo, na figura das pessoas com as quais se convive;
  • o respeito às muitas e variadas expressões do feminino e do masculino.

Por conta do que expomos até o momento, achamos importante destacar que, mesmo definindo-se como apenas um “referencial curricular” com uma proposta “aberta e flexível”, deixando a critério dos professores e dos gestores escolares inseri-los ou não em planos de aula e em projetos pedagógicos, percebemos alguns problemas, ainda que potenciais.

O primeiro deles consiste em ter toda a riqueza de possibilidades de exploração e discussão acenadas pelas orientações contidas nos PCN perdidas, reduzidas à sua dimensão biológica ou ainda (o que é mais perigoso a nosso ver) formatadas segundo opiniões individuais, ou de um grupo de professores, sendo transformadas, assim, em prescrições morais, onde, uma vez estabelecida a norma, corrigem-se os desvios, resultando exatamente no contrário daquilo que o documento em questão propõe.

Pensamos ser importante considerar esse risco por conta da própria história de vida de cada educador(a), de sua postura frente à enorme quantidade de questões que a discussão sobre a sexualidade coloca, daquilo que ele pessoalmente acha certo/errado, tolerável ou não, uma vez que acreditamos ser impossível uma posição “neutra” sobre o assunto em questão.

Além disso, há também a falta de (in)formação dos professores frente a temas tão complexos.

Segundo os próprios PCN, para a maioria dos/as educadores/as “... as crianças são seres ‘puros’ e ‘inocentes’ que não têm sexualidade a expressar...” (PCN, 2000, p.81), o que é reafirmado em estudo (RIBEIRO; SOUZA; SOUZA, 2004) feito sobre narrativas de professoras das séries iniciais do Ensino Fundamental ao participarem do curso “Discutindo e refletindo sexualidade-AIDS” na cidade de Rio Grande/RS:

Em qual série (ou em que idade se deve “falar” sobre questões vinculadas a sexualidade, como o corpo, as identidades de gênero e sexuais, as práticas genitais, o desejo, o prazer, por exemplo, e se essas questões fazem parte dos conteúdos escolares (RIBEIRO; SOUZA; SOUZA, 2004, p. 122)

Segundo esse estudo, a preocupação geral desses/as professores/as (e porque não dizer, o medo?) é despertar a sexualidade das crianças “antes da hora”, pois

[...] os discursos presentes na escola e em outras instâncias sociais apontam para a criança como ser inocente e assexuada. Portanto caso elas venham a falar sobre sexualidade com as crianças, estarão despertando-as precocemente para o assunto, uma vez que o conhecimento poderá estimulá-las a ter experiências sexuais. (RIBEIRO; SOUZA; SOUZA, 2004, p. 122).

2.1 Orientação sexual nos currículos escolares – um pouco de história

Em nosso país a educação sexual na escola iniciou-se a partir de um deslocamento no campo discursivo sobre a sexualidade de crianças e adolescentes. Nos anos 20 e 30, os problemas de “desvios sexuais” deixam de ser percebidos como crime para serem percebidos como doenças. (ALTMANN, 2001). A escola passa a ser tida como um espaço de intervenção preventiva, devendo cuidar da sexualidade de crianças e adolescentes a fim de produzir comportamentos “normais”. (VIDAL, 1998)

Nas décadas de 60 e 70, a penetração da educação sexual formal na escola enfrentou fluxos e refluxos. Como mostra Rosemberg (1985), na segunda metade dos anos 1960, algumas escolas públicas desenvolveram experiência de educação sexual. Todavia elas deixam de existir em 1970 após um pronunciamento da Comissão Nacional de Moral e Civismo dando parecer contrário a um projeto de lei de 1968 que propunha inclusão obrigatória da Educação Sexual nos currículos escolares. Em 1975, a posição oficial brasileira afirma ser a família a principal pela educação sexual, podendo as escolas inserir ou não a educação sexual em programas de saúde, o que corrobora o que já discutimos anteriormente, ou seja, a sexualidade reduzida à sua dimensão biológica, como uma questão de “saúde” (e doença). Durante os anos 1980 a polêmica continuou.

Atualmente estas expectativas se modificaram. Helena Altmann cita em seu artigo que de acordo com uma pesquisa feita pelo Data Folha em 1993 concluiu que 82% dos adultos que têm filhos aprovam a realização de orientação sexual nas escolas” (ALTMANN, 2000, p. 579).

Aqui, podemos levantar mais problemas. O primeiro reside em não ficar claro qual é o teor e a extensão da orientação sexual que os adultos querem para seus filhos. Seriam apenas questões estritamente biológicas, tais como “como nasce uma criança?” ou “as doenças sexualmente transmissíveis?” Será que os pais acham que devam ser incluídas questões como “como utilizar métodos anticoncepcionais para evitar uma gravidez indesejada e assim fazer uso do seu próprio corpo como bem lhe aprouver?” Seria tranquilo aos pais saberem que, ainda no início da escolaridade de seus filhos, eles já começam a discutir questões tais como “a perenidade dos padrões de comportamento e dos papéis sexuais que experimentamos nesse momento (e que com certeza sofrerão transformações) em nossa sociedade” ou ainda “a importância da tolerância à diversidade sexual como respeito aos indivíduos” – pressuposto fundamental para o exercício efetiva na cidadania, palavra tão cara aos discursos pedagógicos em voga?

Além dos pais, temos que refletir sobre o professor(a) inserido nesse delicado contexto. Até que ponto os educadores(as) estão preparados para lidar com as questões acima levantadas? Até que ponto está claro para eles e para a escola como um todo, sua área de atuação quando o assunto é sexualidade? Em outras palavras, até onde ir, com os/as alunos/as nessas questões?

Longe de pretender responder a todos esses questionamentos, nossa intenção é, ao contrário, convidar o leitor à reflexão, apontando algumas das inúmeras dimensões do problema objeto de nosso trabalho.

Continuando nessa direção, nosso estudo ousaria propor um estudo mais aprofundado, que, partindo das preocupações teóricas acima explicitadas, procurasse entender como isso é percebido em situações concretas, específicas, abordadas em mais detalhes a seguir.

3. CAPÍTULO III – Questões teórico-metodológicas

[...] pesquisar é um processo de criação e não de mera constatação. (Marisa Vorraber Costa)

3.1        A pesquisa qualitativa

Ao contrário da quantitativa, a pesquisa qualitativa incide em pequeno número de indivíduos, porém em profundidade, de modo a tentar compreender como aquele grupo percebe, vivencia, significa ou é significado por determinadas ideias. Por conta dessas características, acreditamos ser essa a abordagem mais adequada para o estudo que o presente trabalho indica, ainda que, infelizmente, não o desenvolva em termos práticos.

E por que razão manteríamos nosso trabalho no nível de um exercício única e exclusivamente teórico? Isso devido a duas questões. Primeiramente, porque seria ingênuo, pretensioso e pouco científico de nossa parte acreditar possível, por meio de uma única pesquisa – ainda mais no nível de um trabalho de conclusão de curso –, afirmar que “os professores da rede pública têm essa ou aquela forma de ver as sugestões referentes à orientação sexual dos PCN”, negando, desse modo, a pluralidade de visões acerca do problema, que é inclusive, aquilo que vimos tentando mostrar até aqui.

Em segundo lugar, embora essa parte não venha a ser levada a cabo, em termos empíricos, acreditamos ser um exercício acadêmico que possa, inclusive, nos auxiliar em futuros estudos.

Tendo explicitado esse passo de nosso trabalho, pretendemos nesse capítulo esboçar um apanhado geral sobre a pesquisa qualitativa, as discussões em torno da utilização de entrevistas e ainda, um esquema de como seria o trabalho de campo para a viabilização do estudo proposto, uma vez que seria esse o caminho teórico-metodológico adotado para o aprofundamento das questões levantadas ao final do capítulo anterior.  Iniciamos, assim, salientando que o termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível que, após esse tirocínio, o autor interpreta e traduz em um texto, zelosamente escrito, com perspicácia e competência científicas, os significados patentes ou ocultos do seu objeto de pesquisa. (Chizzotti, 2003, p. 221)

Numa incursão sobre a utilização e desenvolvimento da pesquisa qualitativa na pesquisa, Chizzotti (2003) traça cinco grandes marcos.

O primeiro deles remonta ao final do século XIX quando estudiosos, interessados em compreender os problemas da sociedade (estamos falando da Europa ocidental nesse momento) voltaram-se, por exemplo, para as condições dos operários franceses, das condições de vida do pobres londrinos, entre outros.

Como segundo marco, adentrando do século XX, temos como exemplo os estudos antropológicos procuravam estudar e comparar as formas de organização e funcionamento de diversas sociedades, como as pessoas que dela fazem parte vivem e como atribuem significados a essas formas de se constituírem.

Um terceiro marco, período entre o final da II Guerra e a década de 1970, conceitos como objetividade, validade e fidedignidade são questionados, “reconhecendo-se a relevância do sujeito, dos valores dos significados e intenções da pesquisa, afirmando a interdependência entre a teoria e a prática, a importância da invenção criadora, do contexto dos dados e da inclusão da voz dos atores sociais.” (Chizzotti, 2003, p.228)

No quarto marco – décadas de 1970 e 1980 –, percebe-se uma fusão interdisciplinar nas ciências humanas em geral (como exemplo, estudos que se utilizam de diversas áreas do conhecimento ao mesmo tempo, tais como sociologia, história, antropologia e psicologia) ao mesmo tempo que novos temas e problemas são levados em consideração: classe, gênero, etnia, e assim por diante.

Como quinto e último marco, a partir dos anos 1990, o autor nos coloca que a posição do social do autor da pesquisa, a onipotência descritiva do texto científico, a transcrição objetiva da realidade são postas em questão: o pesquisador está marcado pela realidade social, toda observação está possuída de uma teoria [...] As pesquisas [...] recorrem ao pós-modernismo, como crítica política às relações de poder e dominação, que subjazem às relações de classe, gênero, raça, etnicidade, colonialismo e culturas, para desmistificar a neutralidade e apresentar múltiplos focos de coerção e poder que uma investigação acurada descobre. (CHIZZOTTI, 2003, p. 230-231)

Assim, tendo em vista que o objetivo da pesquisa que propomos é o de perceber o problema entre o que os PCN sugerem, como isso chega até a escola e como os professores, pais e alunos lidam com as questões já anteriormente levantadas, acreditamos ser a pesquisa qualitativa a que mais atendem nossas demandas, já que é esse tipo de pesquisa que trabalha com o particular, com o subjetivo, com os significados e as relações de poder circunscritos ao lugar específico que dele se ocupa.

É por meio da pesquisa qualitativa que conseguiríamos – dentro dos rigores que uma pesquisa científica exige –, observar um lugar concreto, no tempo e no espaço, sem abstrações generalizantes que pouco diriam a respeito dos problemas específicos que percebemos nas escolas em que trabalhamos (conforme descrevemos na introdução desse trabalho) com os professores e a clientela específica daquele local.

Assim procedendo, para tratar de professores e pais reais e não abstratos, utilizaríamos entrevistas. Essa técnica, típica de estudos qualitativos, levanta uma série de outras questões, que desenvolveremos a seguir.

3.2 A utilização de entrevistas

Podemos afirmar que as entrevistas são formas de coletar informações que não seriam possíveis de serem obtidas utilizando-se outras técnicas, por exemplo, por meio da pesquisa bibliográfica.

A preparação das entrevistas é uma etapa fundamental para o sucesso da pesquisa e essa fase, anterior a atividade de campo propriamente dita pressupõe: a escolha do(s) entrevistado(os), sua(s) disponibilidade(s) e a criação de condições favoráveis a uma situação de confiabilidade do entrevistado em relação ao entrevistador.

Isso é importante porque o entrevistado pode se sentir policiado, criticado (julgado), o que pode comprometer os dados a serem obtidos. Isso se torna particularmente importante quando se estuda, por exemplo, violência doméstica, comportamentos sexuais, perseguições políticas, etc.

Assim, o anonimato deve ser garantido – por escrito, inclusive, sob a forma de um “contrato” – à pessoa que concede a entrevista, de forma que a pesquisa seja utilizada sem nenhum prejuízo ao informante.

Obviamente, a elaboração das questões faz parte dessa etapa preliminar e é de extrema importância para o sucesso da entrevista que o pesquisador tenha muito claro o objetivo de seu estudo porque à medida que as respostas começam a aparecer, novos dados provavelmente tenderão a alterar o projeto original.

Nesse sentido, o pesquisador tem a frente o difícil exercício de manter o equilíbrio entre não perder o foco de seu estudo ao mesmo tempo em que permite determinada abertura para a incorporação de novos elementos que a enriqueçam. Afinal de contas, é para isso que ele lança mão das entrevistas.

Nas Ciências Sociais em geral, as formas de entrevistas mais utilizadas são: estruturada, semi-estruturada, aberta, entrevistas com grupos focais e história de vida. (NOGUEIRA-MARTINS e BÓGUS, 2004). Baseados nos argumentos das autoras, sintetizamos as informações, de modo bastante simplificado, no seguinte quadro:  

Comentando o quadro acima, informamos que, os dados faltantes nas colunas “vantagens” e “desvantagens” devem-se ao fato das autoras, ao comentarem sobre os vários tipos de entrevistas, não os mencionaram. Além disso, como toda a esquematização, as linhas que separam um tipo de entrevista da outra são tênues. Muitas vezes, elas podem ser – dependendo do tipo de pesquisa – complementares, e, sendo assim, não são excludentes. No geral, temos:

  • Entrevista projetiva: centrada em técnicas visuais, utiliza-se de recursos visuais. O entrevistador mostra, por exemplo, cartões, filmes, fotos ou vídeos ao informante que, “provocado” pelo estímulo, dá seu parecer sobre o tema. O pesquisador consegue evitar assim, respostas diretas (“sim” ou “não”) sobre o assunto pesquisado;
  • História de vida completa: o pesquisador, por meio da entrevista, retrata todo o conjunto das experiências vivido pelo entrevistado, de forma retrospectiva, muitas vezes, inclusive, em tom de confidência. É possível nesse tipo de entrevista captar dimensões sociais numa perspectiva individual.
  • História de vida (tópica): focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência vivida por uma ou várias pessoas.
  • Grupo focal: o entrevistador (moderador) apresenta um tema relativo à pesquisa para um pequeno grupo de pessoas, que se identificam com este tema e sobre ele discutem. O moderador intervém quando necessário para a discussão não sair do foco da pesquisa.
  • Entrevistas fechadas: parte de um questionário pré-estabelecido e estruturado, onde a intenção é obter uma comparação nas respostas e proporciona uma maior liberdade nas respostas em razão do anonimato;
  • Entrevistas semi-estruturadas: as questões embasadas em hipóteses e teorias relativas à pesquisa, onde há uma interação com o entrevistado. Há questões previamente construídas. Porém, esse tipo de entrevista permite a incorporação de novas questões, dependendo do que o entrevistado apresenta, durante a conversa. 
  • Entrevistas abertas: a entrevista inicia com uma questão tema da pesquisa e o entrevistado fala de suas experiências e opiniões relacionadas ao tema, onde o entrevistador colhe uma quantidade e diversidade maior de informações. Diferentemente do tipo anterior, a entrevista aberta tem o mínimo de interferência do pesquisador, sendo que o entrevistado é livre para desenvolver mais ou menos seus argumentos de acordo com a sua própria vontade.

Há ainda duas considerações que achamos necessário fazer com relação às entrevistas: a postura do entrevistador e o problema das transcrições.

De acordo com Boni e Quaresma (2005), quando o pesquisador está na posição de entrevistador, deve ser rigoroso na escolha das técnicas que serão utilizadas, para que elas o auxiliem no desenvolvimento de sua pesquisa, pois uma técnica de entrevista mal elaborada pode comprometer todo o encaminhamento e a conclusão deste trabalho.

As autoras relatam que para uma entrevista ser bem sucedida um dos pontos principais é o entrevistador ter completo domínio do tema/questões/recursos que serão utilizados, porém usando uma linguagem muito simples, clara e objetiva, falando de igual pra igual com o entrevistado deixando-o à vontade, evitando constrangimentos facilitando a construção/exposição de relações/opiniões de sua vida referente à pesquisa.

Outro ponto essencial é o respeito ao entrevistado (pois cada um tem uma história de vida diferente com suas particularidades e singularidades) desde o cumprimento do local e horário marcado, garantia de sigilo como também o respeito de sua cultura e valores,  mostrando-se atento ao seu relato estimulando-o com gestos, sinais verbais, mostrando-se empático. Em alguns momentos da entrevista poderão desencadear-se demonstrações de fragilidade, lembranças dolorosas ou mesmo alívio por ter a oportunidade de desabafar sentimentos reprimidos que pode ser considerara como uma autoanálise provocada e acompanhada (reação inconsciente do pesquisado e sem ser este o objetivo/intenção do pesquisador). (BONI; QUARESMA, 2005: NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004)

De acordo com Nogueira-Martins e Bógus

[...] as   duas   principais  formas de registro suscitam muitas discussões entre os especialistas a respeito de seus defeitos e virtudes.   São elas: a gravação direta e a anotação durante a entrevista.   A  gravação tem a vantagem de registrar todas   as   expressões orais, deixando o entrevistador livre para prestar toda a sua atenção ao entrevistado. Por outro lado, ela só registra as expressões orais, deixando de lado as  expressões  faciais, os  gestos,  as mudanças  de   postura e pode representar, para alguns entrevistados, um fator constrangedor.  (NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004, p. 50)

Na visão de Boni e Quaresma (2005), além do constrangimento do gravador, em alguns casos o entrevistado poderá interpretar, assumindo/incorporando um personagem que ele supõe ideal aos objetivos da entrevista/entrevistador.

Outra dificuldade em relação à entrevista gravada é a sua transcrição para o papel. Essa operação é bastante trabalhosa, consumindo muitas horas e produzindo um resultado inicial onde as informações aparecem ainda indiferenciadas, sendo difícil distinguir as menos importantes daquelas realmente centrais. (NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004, p.50-51)

O entrevistador deve-se observar, ler o que esta implícito nas reações, expressões, gestos, olhares, entonações na voz, risos e silêncios do entrevistado, se possível anotar durante ou no término para auxiliar na transcrição das gravações para que esta descrição não se resuma a um ato mecânico de passar para o papel somente palavras. O pesquisador deve ser fiel ao conteúdo e ao transcrever tomar o cuidado de não trocar palavras ou inverter a ordem das questões, por isto recomenda-se que estas transcrições sejam feitas pelo próprio pesquisador/entrevistador. (BONI; QUARESMA, 2005)

É citado também que em algumas pesquisas podem ser feitas entrevistas por pesquisadores ocasionais, “pessoas instruídas com técnicas de pesquisa e que têm acesso a certo grupo que deseja pesquisar”, porém não recomendado, pois estes entrevistadores podem não possuírem os pontos principais citados pelas autoras como fundamental para o sucesso da entrevista, deixando passar informações importantes para análise do material. (BONI; QUARESMA, 2005, p.76)

Ao finalizar o relatório de pesquisa é dever do pesquisador ser claro nas informações e relatos, explicar minuciosamente em que contexto o entrevistado está inserido, sua condição social, sua relação com o tema da pesquisa, suas reações na hora da entrevista, enfim, o leitor tem que conseguir visualizar todo o caminho percorrido pelo pesquisador.

Todas as questões metodológicas descritas e discutidas nessa capítulo seriam, assim, procedimentos que utilizaríamos como ferramentas, para elaborar a pesquisa proposta nesse nosso trabalho.

4.  CONSIDERAÇÕES

Não são as respostas que movem o mundo. São as perguntas.[2]

Conforme já dito na introdução desse trabalho, acreditamos ser possível definir nosso estudo, grosso modo, como um exercício acadêmico, com incidência nos aspectos metodológicos, que deixa como resultado – para nós, bastante importante –, indicações para posteriores estudos, especificamente no que diz respeito à educação, à problemática em torno do desenvolvimento da sexualidade de indivíduos ainda no começo de suas existências e a importância do respeito a esse complexo processo, num exercício diário de cidadania.

Fica claro para nós, após todo o processo que culmina com esse trabalho, que ao educarmos, fazemos incontáveis intervenções na vida dos alunos e que muitas dessas intervenções nos escapam da consciência, porque não estão presentes no planejamento de nossas aulas, mas fazem parte da visão de mundo que temos.

Procuramos apontar aqui que a nossa sexualidade (e o conjunto de valores que ela traz consigo, que nunca é estático, pois é socialmente construído e assim está sempre, em maior ou menos grau, em transformação) vai conosco para a sala de aula e deixa também suas marcas naqueles com os quais nos relacionamos.

Esse processo, também ocorre de modo inverso. Não procuramos julgar, nem crucificar um professor/a que vê seus valores questionados/postos à prova, por comportamentos “estranhos” diferentes daqueles com os quais ele/ela sabe lidar, ao se deparar com alunos e alunas que não se comportam de acordo com o que ele/ela espera. Queremos dizer com isso, que o professor/a é também posto à prova, deslocado, interpelado a todo instante, a cada turma nova com a qual ele/ela trabalha.

O “perigoso”, para nós, não é o professor/a não saber o que fazer com as situação às quais ele se vê obrigado a agir, cotidianamente. O complicado, para nós, é o fato de que essa situação, grande parte das vezes, é respondida com o desrespeito ao aluno – que pode aparecer sobre a forma de ironia, repressão, ridicularização e até mesmo recusa em lidar com o fato, que é quando o professor/a o ignora, “não vendo” o que acontece sob seus olhos. Ora, desrespeito ao aluno é exatamente o contrário ao exercício da cidadania, tema tão caro e tão presente nos discursos sobre educação.

Acreditamos não ser o caso dos profissionais da educação, a partir das sugestões contidas nos PCN, estarem obrigados a mudar de opinião acerca de seus valores. Entretanto, achamos fundamental, caso comprometidos com a cidadania e com a ética, que eles respeitem a opinião de seus alunos, bem como contribuam, através de sua prática na escola, para a criação de um ambiente de respeito mútuo entre todos dentro daquele espaço.

Era esse, em suma, o desejo que moveu o presente estudo. A questão fundamental, “como os professores/as lidam com as questões de gênero e sexualidade em sua prática docente?”, longe de ter sido respondida, permanece em aberto, mas de certa forma, por meio do exercício que aqui nos dispusemos a fazer, tentamos formular a pergunta, da forma o mais acadêmica possível.

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[1] Inclusive, com a anuência do nosso orientador.

[2] Parafraseando o comercial do Canal Futura. (http://www.youtube.com/watch?v=xg8UG9I8hmw) acessado em 01/dez/2010, às 13h19min.


Publicado por: Fernanda Vedrossi

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