O Imaginário da identidade, as duas visões literariamente problematizadoras dos processos indenitários derivados da imigração presentes nos romances: Relato de um certo Oriente e a Chave da Casa
Análise sobre as duas visões literariamente problematizadoras dos processos indenitários derivados da imigração presentes nos romances: Relato de um certo Oriente e a Chave da Casa.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
Na obra Relato de um certo Oriente de Milton Hatoum, podemos identificar como característica literária a utilização de uma narrativa oral, diversificada e não linear. Em outras palavras, o texto é contado por um narrador, cuja participação também se faz presente no enredo da história, trazendo o relato de memórias vividas duas décadas antes. Os relatos são contados em oito capítulos, diversificados entre narradores/personagens que assumem o protagonismo ao decorrer do texto, na medida em que adquirem relevância ou detêm informações convenientes ao enredo. A não-linearidade da obra passa a ser notada aos poucos, pois o autor espalha entre capítulos e personagens – sem seguir uma cronologia textual linear – informações, memórias e lugares, nas quais a relevância somente pode ser notada conforme o desfecho da história.
A história se passa em Manaus, capital do Estado do Amazonas, cidade marcada pela sua diversidade cultural, linguística e sobretudo por se tratar de uma região fronteiriça e de mata, haja em vista que ali se localiza a estimada Floresta Amazônica, ou pelo menos grande parte dela. Por volta dos anos 1950, uma família de imigrantes libaneses chega a Manaus, e ali se instalam por tempo indeterminado. O casal Emilie – matriarca da família e personagem importantíssima na saga – e um muçulmano chamado na trama apenas de Pai, são os personagens chefes da família, constituída ainda por seis filhos, dois deles adotados, sendo que um destes é a narradora do início da história e o outro se torna destinatário de uma carta escrita pela primeira, que relata a história inteira da obra.
O enredo da obra traz, em seu início, a narradora – a filha adotiva – viajando de volta para a cidade onde passou sua infância e foi criada (Manaus), cerca de vinte anos após partir. A mesma havia permanecido internada em uma clínica de repouso na cidade de São Paulo neste período. O motivo da viagem era reencontrar-se com sua mãe adotiva, Emilie, mas também relembrar acontecimentos de sua infância e de sua família. No entanto, quando chega a cidade, já é tarde demais, pois sua mãe adotiva havia morrido na noite anterior. Inicia-se então, uma busca por uma reconstrução do passado em sua memória, através de lembranças de lugares, pessoas, vozes e momentos especiais. O intuito desta reconstrução de memórias tinha também por objetivo, informar através de uma carta, o seu irmão adotivo que estava a residir em Barcelona, não apenas da morte de Emilie, mas também das lembranças resgatadas da juventude em família.
Os personagens Hindié Conceição: amiga presente de Emilie, Soraya Angela: filha de Samara Délia, uma das irmãs da narradora e filha biológica de Emilie, que acaba por ser atropelada, o que traz uma certa tensão ao contexto da obra, o fotógrafo alemão Dorner: amigo da família e personagem que contribui com o enredo através de suas memórias, principalmente a respeito do marido de Emilie, e também sobre a morte por suicídio de Emir, irmão da matriarca. Entre outros personagens como Hakim, outro irmão de Emilie, que também aparece constantemente na obra, podemos identificar a forma como Milton Hatoum constrói, através de personagens complexos e espalhados pelos capítulos do texto, uma espécie de colcha de retalhos onde cada fala, personagem, relato ou memória, se conectam e se complementam no decorrer da leitura.
No que diz respeito a característica da narrativa contemporânea brasileira, podemos encontrar traços bem definidos desta mistura de tendências que caracterizam este paradigma literário, sobretudo quando encontramos na obra de Milton Hatoum, temas cotidianos e regionalistas, uma forma de texto escrito em versos longos, como uma prosa urbana e intimista, bem como a utilização de uma literatura se não inovadora, diferente, no que diz respeito a não-linearidade do enredo, o conjunto de minicontos distribuídos pelos capítulos, e uma dose de tensão, angústia e romancismo, característico da literatura pós-moderna, a qual privilegia a crise existencial vivida pelos indivíduos em contrapartida da identidade.
Encontramos também atributos de uma literatura migrante, cuja afirmação se distancia do aspecto indenitário nacional, e repousa em uma ênfase ao drama migrante, que consiste nas dificuldades pessoais, na diversidade cultural de uma nova morada, na visão de uma nova realidade mundana, bem como a íntima exploração das relações familiares. A identidade cultural toma um espaço mais relevante na literatura migrante e sobretudo na obra de Milton Hatoum, onde podemos encontrar constantemente menções à casa, a loja, aos artefatos da família que tomam importância não por seu valor em si, mas sim pelo valor sentimental que representam, e obviamente pelas memórias que resgatam àquele que os valoriza. O tema geral da obra é justamente este: a família e seus dramas, relatado sob a experiência íntima das memórias da narradora.
Por outro lado, a obra A Chave da Casa, de Tatiana Salem Levy, percorre um caminho semelhante à obra de Milton Hatoum, mesmo com uma diferença geracional de publicação de quase vinte anos. A semelhança entre as obras é notada pelo tema, pela forma em que se dá o enredo, e sobretudo pela escrita não-linear, compondo uma colcha de retalhos que envolvem situações, lugares, vidas e personagens que dão sentido a obra, à exemplo de Relato de um certo Oriente. A questão da identidade se evidencia na obra desde o início: “Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra — mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?[1]. Este trecho corresponde ao cerne de toda a obra, cujo o enredo e a problemática giram em torno desta questão indenitária da autora.
Resumidamente, trata-se um romance que traz consigo não só o drama existencial íntimo da personagem principal, mas também características peculiares à literatura migrante, como as relações familiares e as dificuldades enfrentadas por estes que buscaram uma nova vida longe de sua terra natal, porém sem abdicar de seus costumes culturais. O início do texto traz a narradora – personagem principal – relatando suas angústias, tristezas e limitações, com um ar tanto quanto depressivo, assemelhando-se à uma crise existencial pessoal. Durante a trama, a autora dá pistas sobre os motivos pelos quais, a própria, narradora/personagem/autora passou a vivenciar esses sentimentos negativos, como a morte de sua mãe por doença, o relacionamento abusivo com um namorado tanto quanto agressivo, as lembranças familiares e a busca por uma identidade.
Neste cenário de amargura, abatimento e procrastinação, surge algo que parece trazer uma luz no fim do túnel, ou ao menos despertar a curiosidade desta jovem: a chave de uma casa antiga deixada por seu avô, casa esta que está situada na Turquia, terra natal de seus antepassados. O fato de seu avô ter guardado a chave daquela antiga casa revela, pelo menos aparentemente, que o mesmo ansiava por regressar ao lugar que há tanto tempo deixara para trás. Este acontecimento, ou a lembrança dele, projeta na personagem uma série de lembranças e acontecimentos de sua vida, que são contadas ao decorrer da obra. A autora instiga o leitor a supor que a personagem, de fato, viaja até o local da casa antiga, e no percurso desta viagem, remonta um conjunto de memórias que alternam entre um passado mais distante e outras épocas, como a da vida adulta da personagem.
Para além das memórias, a chave da casa antiga possuía um significado especial para a personagem, pois representava uma identificação muito forte às origens culturais e à terra pátria de seu avô, que mesmo depois de tanto tempo longe, guardou-a, no intuito de um dia poder retornar. A possibilidade de resgatar ou adquirir uma suposta identidade era de grande valor sentimental para a personagem, pois suas lembranças a respeito das terras em que esteve nunca foram de acolhimento, e sim de rejeição. Seus antepassados judeu-turcos foram expulsos de Portugal na época da inquisição. Seu avô, de origem judaica, teve de deixar a Turquia por intolerância religiosa, vindo procurar abrigo no Brasil. Seus pais, foram exilados em Portugal por serem adeptos ao comunismo, em um momento político de Guerra Fria e Governo Civil-Militar no Brasil.
A herança desta história familiar emigrante e imigrante refletiu diretamente na vida da personagem/autora, pois a mesma havia nascido em Portugal, morava no Brasil e sua fisionomia evidenciava a descendência turca. Este desarranjo cultural e identitário criou uma problematização íntima na autora, trazendo a questão chave: afinal, quem sou eu? Aonde eu pertenço? Neste sentido, a chave da casa representava uma espécie de esperança para buscar aquilo que tanto lhe faltava: sua identidade. No decorrer desta viagem de memórias, a narradora discorre sobre sua vida, contemplando um conjunto de sentimentos e acontecimentos que a levaram a escrever, mesmo de “mãos atadas”, estes episódios marcantes. Dentre os episódios, tomam importância dois em particular: a morte de sua mãe enferma; e a revelação da morte/assassinato de seu namorado, aparentemente cometido pela mesma.
Esta temática segue-se por toda a trama, envolvendo diferentes situações, personagens, diálogos e memórias. Ao fim da leitura, observa-se algumas questões interpretativas sobre a história, como o uso da imaginação ou do subconsciente, no intuito de reconstituir uma história de vida. Ressalta-se também a tendência pendular da obra no que concerne ao tempo, isto é, um movimento não cronológico que flutua entre passado/presente/futuro. Estes dois elementos sugerem uma interpretação de algo interessante sobre a obra, indicando se tratar de uma obra póstuma, ou seja, a narradora está na verdade relatando a sua vida como um todo, através de suas lembranças, sentimentos, sonhos, pecados, paixões. Algumas passagens do texto reforçam este argumento, e nos faz questionar inclusive se a narradora viajou de volta à casa de seu avô.
De maneira geral, a obra de Tatiana Salem Levy representa justamente o que podemos chamar de literatura contemporânea brasileira, a partir de sua multiplicidade de tendências; criatividade não-cronológica no modo como a obra é escrita; utilização de uma poesia intimista; e a característica pós-modernista que envolve o questionamento existencial individual. Assim como Relato de um certo Oriente, observa-se peculiaridades da literatura migrante na obra, como a exposição das dificuldades sofridas pelos emigrantes, a constante menção a convivência nas relações familiares e o resgate de uma suposta identidade cultural que reflete os sentimentos de pertencimento e acolhimento.
Dada a análise das obras Relato de um certo Oriente e A chave da casa, bem como suas características relacionadas à tema, escrita, relação com a literatura migrante e a literatura contemporânea brasileira, traremos algumas passagens de ambos os textos no intuito de corroborar com a análise e compreender sua interpretação.
Iniciaremos com as passagens da primeira obra analisada, Relato de um certo Oriente:
“A conversa com os animais, os sonhos de Emilie, o passeio ao mercado na hora que o sol revela tantos matizes do verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulher que permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento. Sim, com certeza Emilie já lhe havia contado algo a nosso respeito. A mulher sabia que éramos irmãos e que Emilie nos havia adotado. Talvez já soubesse da existência dos quatro filhos de Emilie: Hakim e Samara Délia, que passaram a ser nossos tios, e os outros dois, inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo e uma língua de fogo.”[2]
“A vida começa verdadeiramente com a memória, e naquela manhã ensolarada e fatídica, tu te lembras perfeitamente das quatro pulseiras de ouro no braço direito de Emilie e do seu vestido bordado com flores; que privilégio, o de poder recordar tudo isso.”[3]
“Para meu avô, para todos nós, a aquisição exigente do relógio foi um mistério durante muito tempo [...] Eu também sempre fui ávida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelo relógio. Sabia que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos.”[4]
“Tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia. Devia ter uns três anos quando apontava para o céu escuro e dizia “é a luz da noite”. [...] Foi Emir quem armou o maior escândalo ao saber que sua irmã aspirava à vida do claustro: ele irrompeu no convento sem a menor reverência ao ambiente austero, gritando o nome de Emilie e exigindo, com o dedo em riste, a sua presença na sala da Irmã Superiora; viu, enfim, a irmã entrar no recinto, toda vestida de branco e o rosto delimitado por um plissado de organdi; essa visão, mais que a fuga, talvez o tenha levado a tomar a atitude que tomou: sacou do bolso um revólver e encostou o cano nas têmporas ameaçando suicidar-se caso ela não abandonasse o convento. Emilie ajoelhou-se a seus pés e a Irmã Superiora intercedeu: que partisse com o irmão, Deus a receberia em qualquer lugar do mundo se a sua vocação fosse servir ao Senhor. Foi um golpe terrível na vida de Emilie. Ela concordou em deixar o convento naquele dia, mas suplicou que a deixassem rezar o resto da manhã e tocar ao meio-dia o sino anunciando o fim das orações. Foi a Vice-Superiora, Irmã Virginie Boulad, quem atribuiu à Emilie a tarefa de puxar doze vezes a corda do sino pendurado no teto do corredor contíguo ao claustro. Essa atribuição fora fruto do fascínio de Emilie por um relógio negro que maculava uma das paredes brancas da sala da Vice-Superiora.”[5]
“Dorner relutava em aceitar meu temor à floresta, e observava que o morador de Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de uma prisão singular: aberta, mas unicamente para ela mesma. “Sair dessa cidade”, dizia Dorner, “significa sair de um espaço, mas sobretudo de um tempo. Já imaginaste o privilégio de alguém que ao deixar o porto de sua cidade pode conviver com outro tempo ?” Aos que lhe perguntavam se realmente havia mudado de profissão, respondia: “Apenas alterei o rumo do olhar; antes, fixava um olho num fragmento do mundo exterior e acionava um botão. Agora é o olhar da reflexão que me interessa”. Sei (e creio que todos aqui sabem) que ele passou a vida anotando suas impressões acerca da vida amazônica. O comportamento ético de seus habitantes e tudo o que diz respeito à identidade e ao convívio entre brancos, caboclos e índios eram seus temas prediletos.”[6]
“Mas nem nas nossas conversas nem na correspondência que mantivemos ele replicou as minhas insinuações a respeito da morte de Emir. Talvez por respeitar o pacto com Emilie, já que um suicídio pode abalar várias gerações de uma família. Sempre pensei que os assuntos nebulosos eram decifrados por ela, e ninguém ousava pronunciar uma sílaba sem o seu assentimento; todos os nossos fracassos e nossas fraquezas, quando não podiam ser evitados ou premeditados, ficavam restritos ao espaço fechado da Parisiense ou da casa nova.”[7]
“Eu não procurava as causas do seu desânimo. Teria sido uma busca impossível, pois vivíamos entregues a um apego mútuo, e qualquer sintoma de abalo e de lassidão que tomava conta de um logo contaminava o outro. Essa contaminação de angústias, a minha idolatria por Emilie, a sua intromissão na minha vida, tudo se acentuava pelo fato de eu compreender quando ela falava na sua língua. Porque, ao conversar comigo, minha mãe não traduzia, não tateava as palavras, não demorava na escolha de um verbo, não resvalava na sintaxe. E eu sentia isso: cheia de prazer, soberana, despreendida de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o afeto: o olhar, o gesto e a fala. Quando lhe comuniquei diante dos outros irmãos a minha decisão de ir embora daqui, ela expressou sua surpresa com uma torrente verbal que só nós dois entendemos. Percebi que alguma perversão havia na sua atitude. Indefesos, atordoados, quem sabe nos odiando, meus irmãos foram excluídos, banidos do pátio. E eu pensava: ensinou a mim e a nenhum outro, para sermos confidentes, para ficarmos sozinhos na hora da separação. Ela não falava para proibir, condenar ou censurar, mas para que eu sentisse com toda a intensidade, como uma explosão detonada só dentro de mim, a dor da separação. Naquele início de tarde, contrariando o hábito sagrado da sesta, ela não cedeu ao sono. Esperou os dois filhos subirem para o quarto e, a sós comigo, entregou-se de vez à cantilena da despedida. Às vezes emudecia, debruçava-se sobre meu corpo, com a ponta dos dedos contornava meus olhos; alisava-me as sobrancelhas e os pômulos, cerrava meus olhos triscando a pele do dorso da mão nos meus cílios, e juntando os cinco dedos da mão que me acariciava, repousava-os no seu coração. Depois se afastava lentamente, sem desviar os olhos de mim. Eu aspirava o ar denso do mormaço impregnado por um bafo de almíscar e, quase esvanecido, entregava-me à dolorosa sensação de uma saudade antecipada, imaginando-me a bordo de um navio que não mais retornaria a essas águas [...] Foi uma tarde inteira de promessas e confidências entremeadas de chamegos e risos. Mas, quando ríamos, era a vida mesma que parecia interromper seu curso, porque era um riso convulsivo, engrolado, quase nefasto. Os pedidos que lhe fiz foram cumpridos à risca. Ela convenceu meu pai de que eu devia continuar meus estudos no outro lado do país, e que para isso era necessário enviar-me uma mesada cuja quantia ela mesma estipulou. Nunca me escreveu uma linha, mas trocávamos fotos por correspondência, sabendo ser essa a única maneira de preservar uma idolatria à distância. A última frase que me disse no finzinho daquela tarde (antes que a casa mergulhasse na azáfama do crepúsculo com a chegada de parentes e amigos que participavam do jantar e da jogatina ao redor do narguilé) foi: “Guardo dentro de mim teus olhos”. Enviou-me fotografias durante quase vinte e cinco anos, e através das fotos eu tentava decifrar os enigmas e as apreensões de sua vida, e a metamorfose do seu corpo. Soube da morte do meu pai ao receber uma fotografia em que ela estava sentada na cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta por um lençol branco, onde meu pai costumava sentar-se ao lado dela nas manhãs dos domingos e feriados. No dedo da mão esquerda vi dois anéis de ouro, e os olhos negros brilhavam por trás do véu de tule que escondia a metade do rosto. Foi a penúltima fotografia enviada por ela, há uns oito anos. Pouco tempo depois da morte do meu pai, recebi as duas últimas, no mesmo envelope; numa delas, via-se no primeiro plano o seu rosto ainda sem rugas, com a cabeça envolta por uma mantilha de fios prateados; talvez por causa da intensidade do flash ou da profusão de chamas das velas e círios que ondulavam em volta de seu corpo, a mantilha e as mechas de cabelos se espalhavam sobre a testa e escorriam nos ombros como folhas de cardo fosforescentes.”[8]
“Foi doloroso não ter visto Emilie, aceitar com resignação a impossibilidade de um encontro, eu que adiei tantas vezes essa viagem, presa na armadilha do dia a dia, ao fim de cada ano pensando: já é tempo de ir vê-la, de saciar essa ânsia, de enfronhar-me com ela no fundo da rede. Nos últimos anos não tive notícias dela, mas sabia que Hindié seguia passo a passo a vida de Emilie. Quando o último filho deixou o sobrado, ela fez questão de morar sozinha, e até pediu à Anastácia Socorro para ajudá-la a tomar essa decisão. A lavadeira voltou para o interior, mas nas festas natalinas retornava à cidade para participar de um almoço que reunia a família. Emilie costumava dizer a Hindié que a solidão e a velhice se amparam mutuamente antes do fim, e que um velho solitário refugia-se no passado, que é vasto e não poucas vezes gratificante. 72
Ela chamou por Emilie olhando para os janelões fechados do quarto que dava para o pátio, e só depois notou dois rastros vermelhos mais ou menos paralelos e encontrou a tartaruga Sálua ciscando a soleira da porta da copa. Era o único bicho que parecia estar vivo, tinha a carapaça manchada de pintas encarnadas, eram manchas e filetes escuros espalhados no piso da copa e que conduziram Hindié através do corredor até a guarita do telefone. Emilie estava inerte, já quase sem vida, e o fio do telefone estava enroscado no pescoço e nos cabelos dela; o auricular sumia na sua mão direita, e a outra mão cobria os seus olhos. Lembrei-me assustada de que, de manhãzinha, antes de sair de casa, havia escutado o telefone tocar duas ou três vezes. Talvez tenha sido o último apelo de Emilie, a sua maneira de me encontrar e dizer adeus.”[9]
“Mas não era só o odor que singularizava a presença de Hindié Conceição na manhã do nosso encontro. Além do vestido escuro, o timbre da voz, as mãos que desfiavam os cabelos cacheados, os lábios que sumiam na boca, como se esta os engolisse, e os momentos de silêncio também formavam o ritual do luto. A dor e a tristeza transpareciam nos gestos desalinhados, como uma reação intrépida para que ela não minguasse ou capitulasse diante da morte da amiga. E eu, que me recusei a velar o corpo de Emilie, ouvi de Hindié a narração de cenas e diálogos; ela gesticulava muito, falava com uma voz meio travada, e quando nos olhos estriavam uns fios vermelhos ela saía da cadeira e vinha me abraçar e beijar. Aqueles olhos graúdos ainda ardiam na manhã do domingo, e os cabelos amarelados e soltos pareciam imprimir no rosto dela uma aflição bem próxima do desespero.”[10]
“Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com um outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. E o passado era como um perseguidor invisível, uma mão transparente acenando para mim, gravitando em torno de épocas e lugares situados muito longe da minha breve permanência na cidade. Para te revelar (numa carta que seria a compilação abreviada de uma vida) que Emilie se foi para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbrido que Emilie inventava todos os dias.”[11]
Passagens da segunda obra analisada, A Chave da Casa:
“Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar.”[12]
“Um sopro que me paralisa. Uma espécie de fardo. Pesado. Mais do que isso: bruto, acimentado, capaz de me tirar todas as possibilidades de movimento, amarrando as articulações uma à outra, colando todos os espaços vazios do meu corpo. Não que eu seja uma pessoa triste. Não se trata de ser ou não ser feliz, mas de uma herança que trago comigo e da qual quero me livrar.”[13]
“Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal. Não teria sido menos penoso, menos amargo, se não tivéssemos sido obrigados a fazer esse longo percurso? Por que tivemos de sair de um lugar para voltar ao mesmo lugar? Nasci no exílio, onde meus pais estavam sem querer estar. Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parir, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical. Teria para sempre a cicatriz do meu nascimento, um traço reto e em relevo unindo o vão entre os seios ao púbis. Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra — mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?”[14]
“Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram. E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante.”[15]
“Essa viagem é uma mentira: nunca saí da minha cama fétida. Meu corpo apodrece a cada dia, as pústulas corroem minha própria carne e em pouco tempo serei apenas osso. Tenho as pernas em chagas purulentas, a carne viva. Como poderia fazer essa viagem?”[16]
“Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram, mas nós duas (só nós duas) sabemos ser outro o motivo da minha paralisia. Conto (crio) essa história para dar algum sentido à imobilidade, para dar uma resposta ao mundo e, de alguma forma, a mim mesma, mas nós duas (só nós duas) conhecemos a verdade. Eu não nasci assim. Não nasci numa cadeira de rodas, não nasci velha. Nenhum passado veio me assoprar nos ombros. Eu fiquei assim. Fui perdendo a mobilidade depois que você se foi. Depois que conheci a morte e ela me encarou com seus olhos de pedra. Foi a morte (a sua) que me tirou, um a um, os movimentos do corpo. Que me deixou paralisada nessa cama fétida de onde hoje não consigo sair.”[17]
“Eu sei, mãe, mesmo que não encontre a palavra certa, que meu corpo não é só de mim.”[18]
“Poderia argumentar que há ainda muitas coisas que não fizemos juntas. Que quando estiver triste não terei colo quente para me receber. Que quando tiver medo não poderei me esconder atrás da sua saia. Que não terei a quem dizer te amo infinitas vezes sem medo algum, sem receio. Porque só o nosso amor não tem medo. Poderia argumentar que há coisas que nunca lhe disse, coisas que quero dizer. Que você também deve ter histórias para me contar. Que quero você ao meu lado para ouvir as aventuras que ainda viverei. [...] Mas recuso os argumentos que não venham de mim mesma. E é por isso que grito, esperneio: não parta! Não é justo! E é por isso que berro, enquanto espanco o seu caixão de madeira polida: tirem a minha mãe daí! Lanço as mãos ao ar como os que não têm razão, como os únicos que têm razão, e repito: abram o caixão! Mas estão todos sem jeito e envergonhados: coitadinha dela, era tão próxima da mãe. Eles sentem pena, mas não me ouvem.”[19]
“Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você.”[20]
“Queria ser eu nos noticiários do dia seguinte: jovem mata namorado durante briga do casal. Tudo planejado, a briga, o local, a arma, o motivo do crime (legítima defesa: ele me matou primeiro)”[21]
“Você não demorou para voltar, você não aguentava a sua solidão quando eu estava bem com a minha. Apareceu no corredor com o sorriso sarcástico de sempre, uma cerveja e um cigarro numa das mãos e um CD na outra. Desligou o som e disse: vou botar aquela música que você adora. Concordei, sorrindo, gostando da ideia, sem saber ainda que música seria. Você veio para perto de mim e começou a me acariciar o pescoço, afastando meu cabelo comprido, e me beijou e encostou a cerveja gelada nos meus seios e derramou um pouco de cerveja nos meus seios e me chupou o seio e perguntou: quer dizer que dançar é como fazer sexo? Eu ri, riso de bêbada, riso alegre, riso feliz. Hein, quer dizer que dançar é como fazer sexo? Ri mais e mais. Você jogou a cerveja toda em cima de mim, me deu um banho de cerveja gelada e se afastou. Então, pude ouvir a música, a nossa música. My baby shot me down. Você tinha o olhar que me aterrorizava. Bang bang. Você mirou em mim e atirou, você nem precisava de arma, você atirava e atirava e atirava e tinha as mãos livres. Você me acertou e já não pude dançar, já não pude me mexer. Você se foi, me deixou novamente sozinha e eu nem soube por quê. Estirada no chão até o amanhecer, chorei a minha própria morte.”[22]
“Entre nós não havia amor. Havia medo.”[23]
“Então, continuei a lhe contar. Contei como tinha sido a viagem à Turquia, as pessoas que tinha encontrado, a casa que não estava mais lá. Contei que tinha feito esse percurso para tentar sair do lugar, porque havia muito eu não me levantava da cama, no Brasil. Contei também da morte da minha mãe, da dor, do luto. Disse-lhe que falo com ela ainda hoje. Falo com os mortos, afirmei, com os mortos que me acompanham. E depois contei do amor que me matou: um dia eu amei um homem, e esse homem me matou. Contei da violência, dos rasgos que ele fez na minha carne, e mostrei as marcas, as cicatrizes todas. E disse: se o amor é isso, prefiro não amar. Então ele me abraçou, deitou ao meu lado no sofá, e ficamos os dois agarrados, espremidos num espaço menor do que os nossos corpos juntos. E, enrolando os cachos do meu cabelo, ele disse: não, o amor não é isso. Não tenhas medo.”[24]
“E assim pude partir em paz, voltar para o Brasil com a certeza de que a minha relação com Portugal não era mais uma relação com o passado, nem do passado.”[25]
“Meu avô entra no quarto reclamando do cheiro acre e perguntando se estou pronta para a viagem. [...] Ele insiste, quer saber se estou pronta ou não. Chamo-o para perto e, receoso, ele se senta ao meu lado. Vejo o quanto está envelhecido e pela primeira vez penso que não há diferença entre seu rosto e suas mãos, são todos a mesma pele murcha. Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave. Ele estica o olhar e vê o mesmo que eu. Ele me encara, e já não preciso dizer nada. Pego a chave, assopro a poeira em que está mergulhada e, esticando o braço, alcanço a mão do meu avô. Seguroa com força, e permanecemos com as mãos coladas, a chave entre nosso suor, selando e separando as nossas histórias.”[26]
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Anna Caroline. O Narrador e a memória em A chave da casa. Brasília: Monografia de conclusão de curso, 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 out, 2020.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
PIMENTEL, Daiane Carneiro. Estudo do multiperspectivismo narrativo de Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. vol. 8. n. 1. P. 163-177. Florianópolis: Anuário de Literatura, 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 out, 2020.
QUEIROZ, Ana Patrícia Cavalcanti. “Relato de um certo Oriente” de Milton Hatoum: a (in) visibilidade dos tradutores. vol. 26. p. 161-177 São Paulo: TradTerm, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 out, 2020
SOERENSEN, Claudiana. Memória e ficção no romance histórico A Chave da casa. vol. 8. n. 1. Florianópolis: Revista Landa, 2019. Disponível em: . Acesso em: 20 out, 2020.
[1] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 16.
[2] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 7.
[3] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 12.
[4] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 15-16.
[5] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 18.
[6] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 44.
[7] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 45-46.
[8] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 54-55.
[9] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 73.
[10] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 74.
[11] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 87.
[12] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 7.
[13] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 7.
[14] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 16.
[15] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 9.
[16] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 63.
[17] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 37.
[18] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 31.
[19] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 44.
[20] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 111.
[21] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 109.
[22] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 112.
[23] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 106.
[24] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 121.
[25] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 123.
[26] LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 124
Por Matheus Bino Teixeira
Publicado por: Matheus Bino Teixeira
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