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Maioridade Penal e o ECA

É impossível discutir redução da maioridade penal sem nos remetermos ao ECA.

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Impossível discutir redução da maioridade penal sem nos remetermos ao ECA. Criado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente institui a responsabilidade penal a partir dos 18 anos. Este marco foi estipulado por critérios políticos que se articulam a um processo de maturação neurológica e psicológica que depende muito do ambiente social onde se vive. Antes disso, os adolescentes têm dificuldade de entender a irreversibilidade dos seus atos. Podemos explicar o comportamento dos adolescentes, mas não justificá-los. Se ele comete um ato infracional deve responder por isso. E a resposta do próprio Estatuto é punitivo associado ao estabelecimento de um processo socioeducativo. As medidas contidas no ECA são a Prestação de Serviços à Comunidade, Liberdade Assistida, Semiliberdade, Internação Provisória e Internação.

Antes do Estatuto, havia um código de menores onde estava definido que crianças abandonadas ou que cometiam atos infratores teriam que ter suas vidas transformadas pelo Estado. Todas eram recolhidas para uma mesma instituição, as Febem’s. O ECA surgiu para romper com isso, estipulando que toda criança e adolescente são iguais, independente da classe social. A proposta, porém, ainda não está bem compreendida pela sociedade, tampouco sendo aplicada como deveria. O que se vê nas atuais unidades de internação é que as medidas socioeducativas voltadas para os adolescentes infratores não estão sendo implementadas de acordo com o Estatuto. Não podemos dizer que o Estatuto falhou na possibilidade de reduzir o índice de adolescentes infratores porque ainda não foi aplicado de acordo. Por enquanto a sociedade é que fracassou na aplicação dos mecanismos estabelecidos.

A Constituição

Entre os projetos que tramitaram no Congresso Nacional esteve a proposta de emenda da constituição (PEC 26) de autoria do Senador Íris Rezende (PMDB/GO) que “alteraria o artigo 228 da Constituição Federal, para reduzir a idade prevista para a imputabilidade penal, nas condições que estabelece”. Contrário à redução, o juiz da 37ª Vara Criminal, Geraldo Prado, chamou a atenção para os direitos fundamentais da criança e do adolescente. “Toda criança e todo adolescente tem os mesmos direitos fundamentais que os adultos e, além desses, outros especiais”, considera. Entre os direitos especiais garantidos na constituição para os adolescentes e as crianças, está o de não serem responsabilizados criminalmente antes dos 18 anos. Independentemente do grau de conscientização ou maturidade de um adolescente, os constituintes entendem que a punição criminal é um castigo enorme para alguém nessa faixa etária, por mais grave que seja o ato que venha a praticar. Além do que, não podemos nos esquecer que trata-se de uma cláusula pétrea, ou seja, regra que não admite retrocesso.

O debate da responsabilidade penal esbarra também na questão do sistema prisional. Pesquisas do censo penitenciário revelam que as unidades de internação têm índices de reincidência menores do que as prisões. Os dados não são precisos, mas em 1995/96, a Febem registrou cerca de 65% de reincidentes enquanto que nas penitenciárias o índice foi de 80%. Já em 2003, o índice caiu para 30%, chegando a 12% nas unidades mais próximas do perfil do ECA. Os números comprovam que o caminho é investir no sistema socioeducativo, ao invés de superlotar as penitenciárias brasileiras.

Reduzir não trará nenhum benefício, a não ser um retrocesso no campo dos direitos. Temos que reorganizar o sistema em função do adolescente enquanto sujeito de direito.

O movimento de direitos humanos se posiciona contra a redução da maioridade penal no Brasil. Existe uma Frente Parlamentar que prioriza a discussão sobre criança e adolescente intervindo no Congresso Nacional em favor do ECA.

Reduzir a idade penal diminui a violência? NÃO.

Ninguém quer nem aguenta mais a violência urbana brasileira. Todo mundo tem uma história para contar: alguma forma de violência que aconteceu com você ou com uma pessoa próxima. A violência tem muitas faces: às vezes está perto, dentro de casa. Outras, está longe. Em algumas vezes é física, outras vezes é psicológica: uma palavra grosseira, um gesto, um olhar, o preconceito e a humilhação. No nosso país, tem sido cada vez mais fácil o acesso das pessoas às armas de fogo, o que aumenta o número de vítimas por uso destas armas, causando muita dor e sofrimento. Por isso, precisamos entender a violência e enfrentar as suas causas.

A violência tem muitas causas: somos o país com a quarta pior concentração de renda do mundo; as cidades brasileiras estão degradadas (as pessoas moram e vivem mal, não têm acesso a lazer, cultura e serviços de boa qualidade); está cada vez mais difícil conseguir um bom trabalho; falta educação de qualidade e os direitos da maioria não são garantidos; a corrupção nos deixa desanimados; temos cada vez menos tempo para dedicar à infância e à juventude; a natureza está sendo destruída e isso nos faz falta; a cultura das pessoas está cada vez mais individualista, falta solidariedade e visão de comunidade; muita gente sofre com a falta de perspectivas...

Enquanto isso, os meios de comunicação incentivam o consumo de tudo. Dizem o que é bom e bonito e o que precisa ser comprado. O Sistema todo quer que você compre e se comporte de acordo com um padrão, porém a maioria da sociedade está “fora do padrão”, a maioria não é branca, nem é rica e nem parece com os rostos que vemos na TV. Isso gera baixa autoestima e alienação as pessoas se sentem mal e sozinhas em seus problemas. A partir daí, constroem suas estratégias de vida e se comportam de um determinado jeito.

Por isso, nos preocupamos com a violência na rua, mas também com a violência que começa em casa, nas relações das pessoas e nas comunidades. É a partir destas relações que podemos também enfrentar a violência urbana, porque, para o crime existir, é necessário encontrar um ambiente cultural, social, político e econômico favorável. As violências estão todas ligadas e se alimentam: do pequeno delito ao crime organizado.

A juventude é a maior vítima da violência. Ao contrário do que se pensa, a juventude não mata mais, e sim morre mais, especialmente, a juventude pobre, negra e que mora nas periferias das grandes cidades. Isso nos faz o segundo país do mundo em número de mortes violentas de jovens. Esta é a tragédia brasileira: um país que está matando sua juventude, sua energia e, com ela, muitas possibilidades e sonhos de mudar a sociedade.

Tem muita gente ganhando com a violência. Todo o investimento brasileiro em segurança (público e privado) já é quase o mesmo que o aplicado (público e privado) em educação. Para cada trabalhador da segurança pública, existem três de segurança privada. Ganham os donos das empresas que vendem serviços de segurança para os poucos que podem “pagar” - ganham os donos de milícias e aqueles que organizam esquemas paralelos de segurança ilegal.

O número de adultos presos no Brasil dobrou na última década. Pelas estimativas, o Brasil teve em 2007 cerca de 460 mil presos. Se continuar assim, teremos 1 milhão de presos em 2017. A maioria tem entre 18 e 30 anos. Também o número de adolescentes nas instituições de internação (as antigas FEBEMs) triplicou nos últimos 10 anos (já são mais de 15 mil no país inteiro). Ou seja, o país está “prendendo” mais e prendendo mais os jovens. Porém, prender mais não resultou em diminuição da violência, ao contrário. Primeiro: a causa da violência não está relacionada somente à “pena” que será aplicada a quem cometeu um crime. Segundo: a prisão não melhora a sociedade nem as pessoas. O sistema prisional hoje não cumpre todas as determinações da lei e “piora” a pessoa, com raras exceções. Todos sofrem, o preso sai marcado, precisando de um esforço muito maior para mudar a relação dele com o mundo e com as pessoas.

É por este motivo que também não é certo colocar adolescentes e adultos juntos no sistema prisional. O adolescente está numa fase especial da vida, em desenvolvimento, e por isso mais suscetível ao ambiente e às relações que o cercam. Quase todos os países do mundo tratam de forma diferenciada os adolescentes dos adultos. A redução da idade penal, então, não seria um avanço, e sim um retrocesso.

É preciso que a infância (0 a 11 anos) e a adolescência (12 a 18) possam ter as condições para desenvolver suas melhores potencialidades. Todo mundo nasce com potencial, que pode ser desenvolvido até a hora da morte, porém, sabemos que é nesta fase - infância e adolescência - que o desenvolvimento é mais intenso. Especialistas dizem que tudo o que acontece com uma criança até os 10 anos fica gravado na mente, e a adolescência é um período difícil da vida cheio de medos, contradições, incertezas. Por isso, precisamos de uma lei específica para crianças e adolescentes.

Tem muita gente que fala mal do ECA sem sequer conhecê-lo. O Estatuto diz que todas as crianças e adolescentes têm direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. O Estatuto diz ainda que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público efetivar estes direitos. Isso, por acaso, é proteger demais?

Além disso, estabelece que a partir dos 12 anos qualquer pessoa que tenha feito um ato contra a lei deve ser responsabilizada. Porém, o sistema de responsabilização dos adolescentes é diferente do sistema dos adultos e tem que ser assim, para buscar uma medida que eduque o adolescente, para que ele construa outra relação com sua vida e busque alternativas. Ninguém quer impunidade para quem cometeu um ato contra a lei. A responsabilização faz parte do processo de aprendizado dos adolescentes. O tratamento é diferenciado não porque o adolescente não sabe o que está fazendo até mesmo uma criança de 5 anos sabe quando faz uma coisa errada, mas sim devido à condição peculiar de desenvolvimento em que se encontra e o que queremos com isso: possibilitar a ele um recomeço de vida ou fazê-lo sofrer pelos erros cometidos?

Por isso, o ECA prevê seis medidas socioeducativas (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação), que devem ser aplicadas de acordo com a capacidade de cumpri-las, as circunstâncias do fato e a gravidade da infração. Além disso, mais comum é que o adolescente inicie a prática de atos ilícitos por um de menor gravidade, como um pequeno furto, por exemplo. Assim, se o Estatuto fosse implementado, nesta ocasião deveria ter sido aplicada a ele uma medida eficaz, que prevenisse a reincidência. Há municípios brasileiros onde isso acontece e os resultados têm sido bastante positivos. O sistema dos adolescentes também é mais ágil. É mais fácil processar um ato cometido por um adolescente que processar o mesmo ato se cometido por um adulto. Tanto o adolescente quanto o adulto tem direito à defesa. Infelizmente, muitos brasileiros não podem pagar advogado e não têm defensor público. Pense que o sentido da medida é buscar a educação daquele adolescente e permitir que ele elabore um novo projeto de vida. Três anos é muito tempo para a vida de um adolescente. É o tempo necessário para alguém, numa fase tão intensa como é a adolescência, refazer seus caminhos. Além do mais, não podemos nos esquecer que o objetivo da medida é tentar colaborar para que a pessoa refaça sua vida e não fazê-la ter mais raiva e ódio da sociedade. Por isso é necessário que haja, nas unidades de internação, um projeto pedagógico que vá nesse sentido, de ressocializá-lo.

O Estatuto diz que a cada seis meses o adolescente privado de liberdade será avaliado para analisar os   progressos de sua educação e de sua capacidade de exercer sua liberdade. Assim, ele poderá passar bem mais do que três anos no sistema socioeducativo, por exemplo, saindo da internação e indo para a semiliberdade. Isso é o que está na lei, que deve ser cumprida e para cumpri-la precisamos de recursos públicos, participação da comunidade, um Judiciário comprometido com a cidadania e muita competência técnica. Enfim, precisamos de uma nova visão e de um outro projeto que permita a participação ativa dos adolescentes.

Mudar a lei não adianta de nada, ou melhor, muda, só que para pior. Imagina o que seria colocar hoje mais de 10 mil adolescentes no sistema prisional? Aí seriam necessários mais gastos com presídios, quando é muito mais barato e proveitoso para o adolescente e para a sociedade manter uma vaga na escola ou em um programa socioeducativo em meio aberto do que uma vaga em uma instituição de restrição de liberdade. Mudar a lei é ilusão ou falta de seriedade. É ilusão, porque o problema da violência não é de lei. Pode ser falta de seriedade de alguns políticos para ganharem votos com o sofrimento da população. Se há impunidade no Brasil, o problema é outro: é policial, judicial, político... Mudar a lei, prender mais, matar as pessoas, nada disso vai resolver a violência urbana, nem garantir paz, nem diminuir o sofrimento enorme que é ter sido vítima de violência. Ninguém vai deixar de cometer crime por causa do tamanho do tempo de prisão. Prender mais hoje é garantia de aumentar o número de pessoas que cometem crimes amanhã.

Precisamos é fazer muito mais, do que simplesmente mudar a lei,porque a situação é urgente e não podemos esperar só por mudanças de longo prazo. Precisamos de uma outra segurança pública: mais investimentos, melhores salários para ter os melhores quadros na Polícia, mais inteligência contra o crime organizado, evitar a corrupção e a ilegalidade no meio policial. É necessário colocar as prefeituras para debater com a sociedade a segurança.

As ações preventivas podem, na maioria das vezes, ser executadas pelos municípios (projetos de cultura, esporte e lazer). Devemos envolver as comunidades no debate, é preciso disputar cada criança e adolescente com o sistema que os leva para o caminho do tráfico e da violência. Precisamos de educação de qualidade em tempo integral (dentro e fora da e s c o l a ) . Precisamos de profissionalização e oferta de trabalho. O Judiciário e o sistema penal também precisam pensar seus desafios e serem mais criativos: investir mais em outras formas de enfrentar a violência. Também é necessário mudar o foco e não olhar somente para o agressor. É urgente atender as vítimas da violência no seu sofrimento. Tudo isso são políticas públicas. Sem políticas públicas de qualidade não teremos direitos. Sem direitos, a violência acha o caminho livre para prosperar.

Enfim, podemos oferecer um outro projeto de país para a adolescência e a juventude. Não um país que prenda mais, mas um país que permita que as pessoas andem sem medo pelas ruas.

Precisamos tratar a questão com mais seriedade. Não podemos querer para o filho dos outros, algo que não queremos para nosso filho. Todos somos responsáveis pelo que acontece com a infância e adolescência. Não precisamos de mais prisão para os jovens, precisamos de mais direitos respeitados, mais justiça e mais solidariedade. A paz não vem do medo. Vem da justiça, da solidariedade, do respeito mútuo, do sentimento de responsabilidade pelo próximo e pelo mundo. 


Publicado por: Aparecida de Fátima Garcia Oliveira

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