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Educação e política em Demerval Saviavi

Educação e política em Demerval Saviavi, "para muitos professores, é um pouco escandaloso falar em política e em educação no mesmo texto", A especificidade da Educação e da Política, Competência técnica e Compromisso político na Educação, Saviani e a espe

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Introdução

Lembra-nos Gandin (2001, p. 101) que, "para muitos professores, é um pouco escandaloso falar em política e em educação no mesmo texto". Entretanto a classe magisterial é visivelmente avessa à política, conquanto tenha adquirido certo nível de organização nos últimos anos, mas durante a maior parte da história brasileria os termos educação e política não eram pronunciados juntos. A conseqüência é o baixo interesse em discutir a temática, reforçado pela construção permanente do lugar-comum "política e religião não se discute", que, por conseguinte, estariam reservadas à esfera individual, ao Estado ou à Igreja, mas não à educação, de modo que somente a partir da Abertura Política é que o debate circulou fora do meio acadêmico, em fins dos anos 1970.

O presente artigo procura apresentar a contribuição de um dos teóricos mais importantes da educação brasileira, reconhecido internacionalmente por ser o formulador da pedagogia histórico-crítica, a qual fundamenta inúmeras experiências no campo pedagógico e educacional. Aqui se discutirão os pontos de convergência entre duas temáticas que constituem dimensões inseparáveis, porém distintas: "Educação" e "Política", ressaltando em primeiro lugar a necessidade de defini-las no intuito de identificá-las na atividade do professor - para quem este artigo está dirigido -, visto que admite sejam inerentes a sua atividade. Isso posto, passamos a discutir a especificidade da educação (prática educativa) e a dimensão política da educação, partindo do que venha a ser cada uma e trazendo à tona as relações que mantêm entre si e que configuram duas faces da atividade docente.

A especificidade da Educação e da Política

Demerval Saviani, professor da Universidade Federal de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Cnpq, buscou esclarecer, no campo da teoria educacional, as relações entre a educação e a política, além do alcance da atuação política na prática educativa e qual seria a especificidade da educação - certamente uma contribuição da mais importantes. Dentre suas principais obras destacam-se: Educação: do senso comum à consciência filosófica (1980), Escola e democracia (1983) e Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (1991).

Em sua obra de maior repercussão no Brasil, Escola e Democracia, Demerval Saviani afirma não existir uma identidade entre educação e política, embora ambas se constituam em fenômenos inseparáveis e prevaleça a distinção entre a dimensão política na educação e a dimensão da prática educativa. Mas então como captar sua intervenção recíproca? O autor em questão fornece o primeiro passo: especificá-las.

Saviani assegura que a interferência da política na educação e vice-versa só pode ser captada quando as concebemos como distintas entre si, o que torna necessário especificá-las:

a) a educação, alicerçada na persuasão (consenso, compreensão), acaba sendo uma "relação de hegemonia" e sua especificidade se define pelo caráter de uma relação travada entre contrários não-antagônicos;

b) a política, alicerçada na dissuasão (dissenso, repressão), por outro lado, é uma "relação de dominação" e sua especificidade se define pelo caráter de uma relação travada entre contrários antagônicos.

Por contrários não-antagônicos pode-se entender os conteúdos das disciplinas escolares ou o conhecimento em si, os quais esclarecem-nos acerca de um determinado objeto, e, portanto, são considerados "neutros", isto é, não concorreriam para outros fins que não o desenvolvimento e aperfeiçoamento da humanidade ao longo do tempo. Para que isso se realize, devem concorrer o esforço intencional voltado à construção de consensos baseados nos resultados da pesquisa científica. Sob outra ótica, os conhecimentos de geometria ensindos pelo professor, por exemplo, não entrariam em conflito com os conhecimentos cartográficos.

Os contrários antagônicos, por sua vez, referem-se a saberes não necessariamente externos às disciplinas escolares, mas que decorrem da crítica social realizada sobre os conteúdos, o que pode ser interpretado erroneamente como uma ação que ocorre posteriormente à prática educativa, mas que em verdade ocorre simultaneamente a ela. São os contrários antagônicos que, por outro lado, geram conflito entre si, pois estão comprometidos com uma certa visão do mundo que se procura impor às pessoas, os educandos, promovendo e lançado mão, segundo Saviani, do dissenso e da repressão e, como constituem-se em conhecimentos parciais e interessados, orientam a prática educativa, conferindo-lhe um sentido, uma razão ou um porquê. Demerval Saviani, porém, faz ressalva de que a dimensão política da educação não escapa ou se divorcia da especificidade da prática pedagógica, sob pena de não se fazer educação, mas outra coisa.

Em síntese, segue-se que na atividade do professor, em especial, convergem duas dimensões importantes para a manutenção da estrutura social: o saber educacional, disciplinar, intelectivo e o saber político, sectário, dogmático. São dimensões que representam disputas em torno de saberes complementares entre si. Se a origem desses saberes é teórica ou prática, não vem ao caso, porque a atividade docente mescla tais saberes essenciais à prática social e bem evidentes nas relações sociais travadas nas instituições escolares. Interessa ressaltar que: educação e política se interpenetram e não estão isentas uma da outra; que, por mais neutra que pareça a prática docente, ela carrega um sentido político quando tomada em relação ao todo, ainda que esse sentido não se revele, não seja intencional e passe despercebido pelo professor e demais educadores. Particularmente em relação à política, ela mesmo traz seu potencial educativo para a prática concreta, que geralmente se converte em uma forma de educação complementar ao que viemos definindo como prática (especificamente) educativa.

Disso se conclui que "as relações entre educação e política se dão na forma de autonomia relativa e dependência recíproca" (SAVIANI, 1983, p. 92-93), com a educação se subordinando à política e esta exercendo uma função educativa, uma vez que em uma sociedade de classe a prática política subordina a prática educativa, pois o primado da política reduz a margem de autonomia da educação - essa foi uma constatação de Demerval Saviani que é extremamente atual.

Competência técnica e Compromisso político na Educação

A prática educativa é uma ação coletiva destinada a cumprir os fins específicos da educação, os quais variam segundo as concepções pedagógicas vigentes em cada época e, principalmente, as opções políticas que com elas se afinam. Logo, os fins da educação dependem do papel que lhe é atribuído pela sociedade organizada e seus problemas, ambos pertencentes a contextos históricos específicos, nos quais a educação assume uma função política, mas somente enquanto prática especificamente pedagógica, momento em que realiza sua contribuição política, ainda que condicionada por uma autonomia relativa em face da política, como foi dito antes.

Na obra Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, Demerval Saviani explora novamente a problemática, e a relação, por vezes sutil,  entre educação e política ao discutir a competência política e o compromisso técnico.

Sendo a prática educativa do professor uma atividade com "um sentido político em si" - observado e desvelado na análise dessa prática "como um momento de uma totalidade concreta" (SAVIANI, 2003, p. 27), - o compromisso político assume vital importância, porque confere um rumo à competência técnica, a qual corresponde à habilidade para realizar uma ação: "(...) a competência técnica significa o conhecimento, o domínio das formas adequadas de agir: é, pois, o saber-fazer". (Ibid., p. 36). Assim, a competência técnica é uma das formas para se realizar o compromisso político. "A competência é mediação, isto quer dizer que ela está entre, no meio, no interior do compromisso político. (...) ela é, pois, instrumento, ou seja, ela não se justifica por si mesma, mas tem o seu sentido, a sua razão de ser no compromisso político" (Ibid., p. 34-35).

Um exemplo de compromisso político que requer o contributo da prática educativa refere-se à superação do quadro de desintegração cultural brasileira identificada por Saviani ao final da década de 1970, quando observou a existência de diferentes graus de participação dos grupos (sociais) no usufruto dos bens culturais - o que era uma conquista de toda a sociedade vinha sendo acessada por apenas uma pequena fração dela. Fato reconhecido até os dias de hoje, fazendo com que se defenda que "é preciso reconhecer a importância de se lutar pela apropriação da cultura produzida historicamente, pois constitui direito do trabalhador ao consumo de algo que é produzido sempre à custa de seus esforços, nesta e em todas as gerações" (PARO, 2001, p. 133).

As frases acima sintetizam o compromisso político eminente, defendido por Demerval Saviani, de garantir às populações, principalmente dos grandes centros, o acesso ao saber escolar. Isso em um tempo marcado pelo altos índices de analfabetismo, semi-analfabetismo e muitas dificuldades de acesso e permanência na escola, num Brasil em processo de urbanização e crescimento industrial intensos no Eixo Rio-São Paulo, com grande parcela da população necessitando organizar-se para exigir do poder público direitos básicos como: educação, moradia, saneamento e segurança, dentre outros, incluindo a participação política, ou seja,  direitos políticos, enfim, a democratização da sociedade.

Seguindo Saviani, à educação caberia desempenhar, então, "o papel de reforçamento dos laços sociais, na medida em que for capaz de sistematizar a tendência à inovação", o que só seria possível "voltando-se para as formas de convivência que se desenvolvem no seio dos diversos grupos sociais estimulando-os na sua originalidade e promovendo o intercâmbio entre eles" (SAVIANI, 1986, p. 131). (O termo inovação designa mudança, novidade.)

Saviani e a especificidade da Educação Escolar

Levando-se em conta que a sociedade coloca a exigência do domínio de deteminado tipo de conhecimento, o conhecimento sistematizado, a tarefa da educação será a de viabilizar o acesso a esse bem cultural que "integra o conjunto dos meios de produção" (SAVIANI, 2003, p. 143), razão pela qual socializar o conhecimento vem a ser uma ação política, pois em toda sociedade que se democratiza surge a necessidade de difundir o conhecimento às diferentes camadas sociais. Esse entendimento aparece já nas primeiras produções teóricas de Saviani - que conviveu com a ditadura militar no Brasil -, mas cuja principal contribuição se orquestra com uma sociedade já em processo de democratização, a exigir uma instrumentalização da população para uma nova realidade, onde o conhecimento é peça-chave tanto para a formação do cidadão quanto para a sua inserção no mercado de bens de consumo. Na melhor hipótese, a população receberia uma formação adequada à participação política através do tão almejado voto direto, alvo da Campanha das "Diretas Já" (1984), anos mais tarde. Aqui se inicia a construção, ainda que no campo teórico, do encontro positivo entre o conhecimento e a participação em cada cidadão.

Adotando a ótica do professor, Demerval Saviani (1983) entendeu, em suas "onze teses sobre educação e política", que a realização da educação, em sua especificidade, cumpre sua função política. Logo, é na transmissão-assimilação do saber sistematizado que a educação exerce essa função: "a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É, pois, realizando-se na especificidade que lhe é própria, que a educação cumpre sua função política. (...) [Por outro lado], ao se dissolver a especificidade da contribuição pedagógica anula-se, em conseqüência, a sua importância política" (SAVIANI, 1983, p. 92).

Vale registrar que Saviani (2003, p. 15) aponta como especificidade da educação escolar a "transmissão-assimilação do saber sistematizado", que é "a atividade nuclear da escola". Quer dizer: ao se falar em educação, a preocupação com o ensinar e o aprender sobre o saber sistematizado deve se fazer presente e se constituir no cerne de uma prática pedagógica compromissada - politicamente - com a socialização (ampla) do conhecimento escolar.

A "pedagogia dos conteúdos"

Voltando à obra Escola e Democracia, observamos que a referência à "teoria da curvatura da vara" serve para justificar o posicionamento de Saviani relativo a um aspecto favorável à pedagogia tradicional: a valorização dos conteúdos. Na leitura de Gadotti (2004, p. 104), "Sua expectativa é que, com essa inflexão, a vara atinja, com o tempo, o ponto correto, que também não está em nenhum dos dois tipos de pedagogia [da Escola Nova ou da Tradicional], mas na 'valorização dos conteúdos' e na 'natureza específica da educação'".

A preocupação com "os conteúdos" rendeu à sua teoria pedagógica histórico-crítica a alcunha de "pedagogia dos conteúdos", criada por José Carlos Libâneo (1985, p. 72): "a pedagogia dos conteúdos, de sentido crítico-social, afirma que a emancipação das camadas populares requer o domínio dos conhecimentos escolares como requisito essencial para a compreensão da prática social, vale dizer, do movimento de desenvolvimento histórico do povo".

Considerações finais

Com Demerval Saviani, podemos distinguir o domínio da competência técnica - a transmissão do saber - na sua relação com o compromisso político de promover a "socialização do saber sistematizado" (SAVIANI, id., p. 14), que é concreto, objetivo: implica no engajamento do professor e demais educadores na implementação de projetos de mudança da sociedade. Porquanto, explica Gandin (Id., p. 54), "uma educação existe sempre para algo, não existe em si mesma, mas está relacionada a uma concepção de sociedade, à construção de uma sociedade", que, no caso, é a sociedade democrática que nasce em fins da década de 1980 e continua a ser buscada atualmente no sentido de sua plenitude no cenário nacional (democracia social, econômica e não apenas política).


GADOTTI, Moacir. A preocupação com a especificidade da educação: a "pedagogia dos conteúdos". In: Pensamento pedagógico brasileiro. 8. ed. São Paulo: Ática, 2004. p. 99-113. (Série fundamentos, 19).

_____________ . Demerval Saviani: a especificidade da prática pedagógica. In: História das idéias pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005. p. 264-266. (Série educação).

GANDIN, Danilo. Educação política na escola. In: Escola e transformação social. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 101-112.

LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. 16. ed. São Paulo: Loyola, 1999. (Col. Educar, v. 1).

PARO, Vitor Henrique. Políticas educacionais: considerações sobre o discurso genérico e a abstração da realidade. In: Escritos sobre educação. São Paulo: Xamã, 2001. p. 121-139.

SAVIANI, Demerval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1983.

_____________ . Educação brasileira: problemas. In: Educação: do senso comum à consciência filosófica. 8. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986. p. 120-132. (Col. Educação contemporânea).

_____________ . Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. (Col. Educação contemporânea).


Publicado por: ARTHUR BRENO STÜRMER

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