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Considerações sobre o capitalismo comercial na Holanda

Estudo sobre o capitalismo comercial na Holanda

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Os Países Baixos, como o próprio nome já indica, é uma região de baixa altitude em que a maior parte da sua região está localizada abaixo da linha do mar (cerca de 36%). Localiza-se ao norte da Europa continental e é banhada pelo Mar do Norte, em um território pequeno, marcado por redes de rios e canais fluviais, uma alta urbanização e grande densidade populacional — em 1627, cerca de metade da população vivia nas cidades — desde o período medieval (FIORI, 2012; BRAUDEL, 1967; TENENTI, 1997). Como afirma Braudel (1967), “comparadas com o resto da Europa, as pequenas Províncias Unidas revelavam-se superurbanizada, superorganizadas, precisamente por causa da densidade da sua população” (BRAUDEL, 1967, p. 162–163).

Vinculada ao Sacro Império Romano-Germânico desde longa data, durante o Império de Carlos V, a Holanda fazia parte das Dezessete Províncias (que incluíam também a Bélgica e Luxemburgo). Com a morte do imperador, em 1558, e a divisão do Império, os Países Baixos são cedidos a ala espanhola dos Habsburgo, e passam a fazer parte do Império Espanhol de Felipe II. Durante a Idade Média a fraqueza do poder centralizador do Sacro Império deu à região certa autonomia que, aliado às suas características geográficas e demográficas, criou boas condições para o desenvolvimento urbano, artesanal e do comércio (TENETI, 1997). A formação da Holanda como um centro comercial e artesanal e um entreposto mercantil, fez com que se desenvolvesse nas grandes cidades uma forte burguesia. Quando passou para o domínio espanhol, o papel centralizador, feudal e católico do absolutismo espanhol levaria a rebelião holandesa e a busca pela autonomia, que não significou outra coisa senão poder gerir livremente seus próprios negócios empresariais.

O capitalismo comercial holandês e o seu século de ouro[1], isto é, o período de hegemonia holandesa no comércio europeu e mundial, insere-se num amplo período de transição do feudalismo ao capitalismo (séculos XIV-XVIII), em que o feudalismo vive a sua crise final e o capitalismo seu estágio inicial e prematuro sob a forma dominante do capital comercial (a era do capitalismo comercial). A transição, em história, é sempre um período em que o velho ainda não morreu, e o novo ainda não está suficiente maduro para moldar a sociedade à sua maneira (FALCON, RODRIGUES, 2006; HOBSBAWM, 1977).

Pode-se dividir as hegemonias durante esse período da seguinte maneira: a) durante o apogeu da Idade Média, entre os séculos XI-XIII, as cidades italianas e flamengas controlavam a produção artesanal e o comércio de breve (ao norte, flamengos; ao sul, italianos) e longa distância — sobretudo com o Oriente -, em que predominava a pequena produção mercantil, embora os germes do desenvolvimento capitalista amadureciam; b) a crise feudal dos séculos XIV-XV, seguiu-se um período de expansão (séculos XV-XVII), em que a revolução burguesa em Portugal e a unificação espanhola produziram o estabelecimento da hegemonia ibérica (séculos XV-XVI) que baseava-se na primazia da região na expansão mercantil-colonial e na formação do estado nacional; c) ao início da decadência e putrefação espanhola, na segunda metade do século XVI — materializada na derrota da Invencível Armada, em 1588 -, segue-se o período de hegemonia holandesao século de ouro holandês, que só termina em meados do século XVII; d) a famosa crise do século XVII — a última crise geral do feudalismo –, segue-se o duelo anglo-francês pela hegemonia, que termina com a vitória definitiva da Inglaterra e da revolução industrial, no final do século XVIII (HOSBAWM, 1977; FALCON, RODRIGUES, 2006).

Sobre o capitalismo comercial holandês, esse trabalho objetiva realizar apenas algumas considerações: 1) discutir a revolução burguesa holandesa; 2) debater o papel do comércio intermediário ou comércio de comissão como base da hegemonia holandesa; 3) discutir algumas das características do capitalismo comercial holandês; 4) debater os motivos estruturais da decadência holandesa e do seu atraso no desenvolvimento industrial.

1) O desenvolvimento do capitalismo comercial na Holanda foi produto de uma revolução burguesa. Ao contrário das revoluções burguesas na Inglaterra, no século XVII, e na França, no século XVIII, a burguesia holandesa teve que enfrentar, além dos entraves feudais — mais fracos nesse país do que nos dois anteriores -, a dominação estrangeira, no caso, a monarquia absolutista espanhola. Nesse sentido, a fundamentação ideológica da revolução, ao mesmo tempo que apresentava um caráter religioso, a defesa da fé calvinista e luterana e a tolerância religiosa, também apresentava um caráter nacional, de luta contra a invasão estrangeira[2].

Entreposto mercantil do Império Espanhol, a província dos Países Baixos passou, a partir de meados do século XVI, a ter as taxas tributárias aumentadas pelos Habsburgo devido às guerras, principalmente, contra a França. Aliado a isso, a imposição católica espanhola buscava barrar qualquer forma de manifestação religiosa da maioria luterana e calvinista que residiam nas principais cidades e vilas holandesas[3] (FIORI, 2012; FALCON, RODRIGUES, 2006; BENNASSAR et al., 1980). Essa dupla opressão, tributária e religiosa, não fez mais do que agudizar as contradições existente entre a dominação feudal-absolutista espanhola e o progresso comercial-burguês dos Países Baixos[4], o que se atesta pela maioria reformista dessa região. A religião não passou de mera maquiagem ideológica aos interesses da emergente burguesia holandesa[5]. Como afirmou Alberto Tenenti (1997),

“Por muito tempo [os Países Baixos] foi também um dos polos mais importantes do fluxo comercial que atravessou o continente de norte a sul. A Holanda, portanto, não demorou a se tornar um centro nevrálgico da Europa Ocidental do ponto de vista econômico. […] Era relativamente paradoxal que uma região com uma situação tão excelente não tivesse alcançado uma verdadeira autonomia política” (TENENTI, 1997, p. 38–39)

A rebelião holandesa, iniciada em 1566, durou até 1648, ficando conhecida como a Guerra de Oitenta Anos[6]. Mesmo que tenha havido algumas tréguas entre ambos os países durante esse período — como a Trégua de Doze anos (1609–1621), por exemplo -, “a fronteira da economia nacional holandesa foi criada pelo próprio cerco dos exércitos espanhóis” (FIORI, 2012, s/p). Mesmo que a rebelião só acabasse, oficialmente, em 1648, com Paz de Vestfália e o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618–1648), a burguesia holandesa já havia dominado o aparelho de estado e fundado uma, nas palavras de Falcon e Rodrigues (2006, p. 21), república mercantil oligárquica.

Em 1609, a República das Província Unidas era formada por sete províncias (Frísia, Groninga, Gueldres, Holanda, Overissel, Utreque e Zelândia), cada uma formada por redes de cidades, com certa hegemonia da província da Holanda — e de sua capital, Amsterdã — sobre as demais. A instituições centrais se sobrepunham as instituições locais, embora as cidades tivessem ampla autonomia, podendo escolher seu burgomestre e os magistrados municipais, além de enviar delegados para os “parlamentos” provinciais, variando de acordo com a província o poder de voto de cada cidade (na Holanda, 18 cidades tinham poder de voto, enquanto na Zelândia, somente seis). Sobre a autonomia das cidades, afirmou Braudel (1967): “Cada uma dessas cidades tem o seu governo, cobra impostos, ministra justiça, vigia atentamente sua vizinha, defende constantemente suas prerrogativas, sua autonomia, sua fiscalidade” (BRAUDEL, 1967, p. 163).

Os Estados Gerais (localizado em Haia, na Holanda), o parlamento das sete províncias, contavam com delegados escolhidos por cada província que possuíam apenas um voto por província, as decisões mais importantes deveriam sempre ser tomadas em consenso. Os Estados Gerais eram auxiliados pelos parlamentos e executivos provinciais (o “pensionista”, espécie de executivo civil, e o estatuder, executivo militar). Devido ao poder econômico da província da Holanda, o pensionista holandês tendeu a ter mais força que os demais[7] (BENNASSAR et al., 1980, p. 515–516; BRAUDEL, 1967).

Percebe-se, como a república mercantil oligárquica das Provinciais Unidas era um estado burguês fruto de uma revolução burguesa[8] que, embora possuísse continuidades feudais (como o caso das províncias monárquicas), já possuía os germes dos órgãos burgueses essenciais da democracia burguesa dos séculos XIX e XX.

2) A base principal da hegemonia comercial da Holanda foi, sobretudo, o chamado comércio intermediário ou comércio de comissão[9]. Os mercadores holandeses, “os carreteiros do mar”, controlavam o comércio internacional através da compra e venda de produtos de diversas regiões da Europa, Américas, África e Ásia[10]. O lucro era obtido através da compra dos produtos em um determinado mercado e da sua venda por um preço muito superior em outros. A Holanda seguia a máxima do capitalismo comercial: “comprar barato e vender caro”[11] (OLIVEIRA, 2003; FALCON, RODRIGUES, 2006). Os produtos do Oriente (especiarias, açúcar, chá, tecidos de luxo, etc.), os grãos da Europa Oriental, a madeira da Escandinávia, etc., esse eram os principais produtos controlados pelos mercadores neerlandeses.

Enquanto no mercado internacional, os holandeses praticavam uma política de mare liberum, mar livre, — exatamente por possuírem superioridade comercial -, nas suas colônias e regiões dependentes (como o caso da Europa Oriental) o que predominava era o mare clausum, mar fechado (BEAUD, 1987).

A hegemonia holandesa começou a ruir quando, em meados do século XVII, as demais potências regionais passaram a pôr em prática políticas protecionistas. Como resultado da revolução burguesa na Inglaterra, Oliver Cromwell estabeleceu os Atos de Navegação em 1651 (seguido de vários outros atos de navegação no restante do século), que garantiam o mercado inglês à burguesia comercial inglesa, na medida que proibia que mercadores estrangeiros trouxessem mercadorias de outros países, assim um mercador só poderia comercializar produtos de seu próprio país. Ocorreram várias guerras entre a Holanda e a Inglaterra — as guerras anglo-holandesas — até o final do século XVIII buscando dominar o mercado internacional. A França de Luís XIV e Jean-Baptiste Colbert também estabeleceu o protecionismo, buscando desenvolver a manufatura interna, que ficou conhecida como indústria artificial dos séculos XVII-XVIII.

Como afirmou Oliveira (2003),

“A Holanda foi bem-sucedida enquanto disputava a supremacia com Portugal e Espanha, nações que, então, possuíam débil base produtiva e que não mantinham política externa tão unilateralmente favorável ao comércio como os holandeses.

Entretanto, a partir de meados do século XVII, França e Inglaterra passam à ofensiva no mercado mundial, implementando agressiva política mercantilista, que protegia não somente o comércio, mas também a produção, e desde então a Holanda não mais conseguiria manter sua posição dominante. O comércio intermediário holandês sofre rude golpe não somente com os atos de navegação da Inglaterra e com as medidas equivalentes adotadas pelos franceses, mas também com as políticas mercantilistas de outras nações européias que tendiam a eliminar os intermediarismo no comércio externo. Como já fizemos referência, a Holanda não entra em abrupta decadência, mas a partir de então não mais foi capaz de acompanhar o ritmo de desenvolvimento do comércio internacional da França, e principalmente da Inglaterra, o que evidentemente a condenava a futura decadência” (OLIVEIRA, 2003, p. 123)

3) O historiador Michel Beaud (1987, p. 34–38) identificou três pilares que sustentaram a hegemonia holandesa durante o século de ouro: a) Companhia holandesa das Índias Orientais, expressão típica do capitalismo comercial — um misto de iniciativa especulativa, investimento a longo prazo e empresa colonizadora, segundo Wallerstein (1974, p. 73) -, estabelecia o monopólio comercial à burguesia mercantil holandesa[12] e chegou a dominar vários mercados, sobretudo na África e na Ásia, “estabelecendo numerosos entrepostos comerciais e conquistando algumas colônias, eles firmaram-se na Insulíndia (atual Indonésia), em alguns pontos do litoral ocidental da África e em algumas ilhas do Caribe […] seus estabelecimentos na América do Norte (Nova Amsterdã), na América portuguesa (nordeste brasileiro), em Angola e na Índia não resistiram às reações de ingleses e portugueses, conforme o caso” (FALCON, RODRIGUES, 2006, p. 22); b) Banco de Amsterdã, controlado pela burguesia usurária, era extremamente seguro e contava com uma grande variedade de moedas, o que atraía os capitalistas estrangeiros que poderiam comercializar produtos do exterior com mais facilidade, além disso realizava pagamentos sem lastração de metal e concediam empréstimos privados e públicos ao governo holandês e a outras nações (o Banco da Inglaterra, fundado no final do século XVII, só foi constituído devido aos capitais holandeses); c) frota holandesa, o domínio hegemônico dos mares necessitava do desenvolvimento de uma frota moderna, nesse sentido que algumas inovações tecnológicas (como o fluitschip, embarcação leve capaz de levar cargas pesadas e volumosas) e, sobretudo, uma mão-de-obra numerosa e barata (os marinheiros que compunham a frota eram em boa parte estrangeiros que recebiam salários extremamente baixos[13]) se faziam necessários.

Outra característica importante do capitalismo comercial holandês, sobretudo na sua decadência, foi a criação da Bolsa de valores de Amsterdã, em 1602. Vinculada ao Banco de Amsterdã e a Companhia das Índias Orientais, surgiu como uma forma de emitir ações para a companhia e acabou se tornando uma praça especulativa importante para os capitais ociosos holandeses e estrangeiros.

4) Como discutido anteriormente, a partir de meados do século XVII, as políticas protecionistas das demais nações europeias (sobretudo a Inglaterra e a França) pôs em xeque o comércio intermediário praticado pela Holanda. Os historiadores buscaram compreender porque os Países Baixos, mesmo com todo o seu poderio marítimo-comercial, não conseguiu manter sua hegemonia diante da Inglaterra e da França durante a virada do século XVII e todo o século XVIII.

É lugar-comum (e correto) afirmar que foi a ausência de um processo de revolução industrial, semelhante ao que aconteceu na Inglaterra, que deixou a Holanda para trás. As razões para essa ausência é um tema clássico entre os historiadores. Várias são as explicações apresentadas: os salários elevados; o obstáculo que representava a força manufatureira-industrial da vizinha Bélgica; a escassez dos recursos naturais e humanos; a ausência de “mentalidade empresarial” e o caráter rentista da burguesia holandesa (CHANG, 2004; FALCON, RODRIGUES, 2006).

Embora várias dessas explicações possam ser consideradas relevantes, não são explicações estruturais. Nesse sentido, a tradição marxista, segundo Falcon e Rodrigues (2006), sempre defendeu que “o grande desenvolvimento do capital mercantil não é capaz de assegurar por si só a passagem à produção capitalista, ou seja, o fator decisivo teria sido a inexistência de um processo de acumulação primitiva de capital em escala suficiente para desencadear uma autêntica revolução burguesa” (FALCON, RODRIGUES, 2006, p. 22).

Segundo Oliveira (2003), a Holanda seria um típico caso do que Fernando Novais (1979), seguindo Marx, denominou de “cristalização do capital comercial”[14], e Erick Hobsbawm (1971) denominou de “negócio feudal”[15].

Seguindo essa linha de intepretação, a burguesia holandesa teria sido incapaz de revolucionar a esfera produtiva e moldar a sociedade à sua imagem, isso porque o capital comercial tendeu a se cristalizar nos próprios setores comerciais e usurários[16]. Enquanto possuía a hegemonia comercial europeia, a contradição entre o avanço e domínio do capital comercial e o atraso do setor produtivo ficaram em segundo plano[17], porém quando as ótimas condições para a expansão mercantil acabaram, em meados do século XVII, a Holanda começou a passar por um longo processo de decadência e putrefação. Ao contrário da Inglaterra, que utilizou os capitais acumulados no comércio internacional na manufatura e depois na indústria, o atraso do setor produtivo, levou a burguesia holandesa — assim como havia levado as suas predecessoras italianas e ibéricas[18] — a investir os capitais no próprio comércio ou em setores improdutivos, como a especulação e as obras de arte (OLIVEIRA, 2003; HOBSBAWM, 1971).

Mas a grande novidade da expansão comercial holandesa em relação às expansões italianas e ibéricas dos séculos anteriores foi o desenvolvimento de uma ampla praça especulativa[19], que apenas ajudou a atrasar ainda mais o desenvolvimento capitalista dos Países Baixos em relação aos seus vizinhos. Como argumenta Oliveira (2003),

“os lucros derivados das atividades comerciais não tiveram alternativa senão transformar-se em capital a juros, destinado a financiamentos externos. Dessa maneira, Amsterdã, no século XVIII, transformou-se em centro financeiro do mundo e suas exportações de capitais financiaram o comércio e as dívidas públicas de outras nações, principalmente a dívida da Inglaterra, país que absorve maiores volumes de capitais holandeses no século XVIII. Ora, a exportação de capitais dinamizava o processo de acumulação primitiva de outros países, reiterando evidentemente o atraso relativo da Holanda perante seus concorrentes” (OLIVEIRA, 2003, p. 124)

Se, como argumenta Oliveira (2003), o atraso da esfera produtiva e a cristalização do capital comercial foi o entrave estrutural do desenvolvimento capitalista holandês, a mentalidade da burguesia holandesa pode ter contribuído para isso, afinal, como argumenta Chang (2004), “quem possui uma base comercial mundial, como a Hong Kong de hoje, não tem por que se preocupar com a indústria” (CHANG, 2004, p. 81). Hobsbawm (1971), sugeriu ainda que havia um limite estrutural no mercado europeu devido a uma boa parte da população ser “economicamente neutra”, isto é, em outras palavras, a ausência de demanda entre as camadas mais populares. Se “eles [burguesia] usaram o grande capital de forma improdutiva, pode ter sido simplesmente porque não havia mais espaço para investi-lo progressivamente dentro dos limites desse ‘setor capitalista’” (HOBSBAWM, 1971, p. 18).

Busquei, nesse trabalho, a partir de revisão bibliográfica, discutir algumas considerações sobre o desenvolvimento do capitalismo comercial holandês, assim como o seu papel no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Esse trabalho buscou somente apresentar uma síntese de algumas discussões a respeito do assunto, ao mesmo tempo que algumas considerações do autor foram contempladas. Ademais, a pouquíssima produção em língua portuguesa sobre o assunto (nem tanto sobre a hegemonia comercial, mas sim sobre a revolta holandesa) me levou a produzir esse trabalho de síntese, mesmo que com limitações evidentes de todo trabalho feito a partir de revisão bibliográfica.

Os estudos de Oliveira (2003), apoiados nas intepretações de Novais (1979) e Hobsbawm (1971), serviram de base para esse trabalho no que diz respeito ao conceito de cristalização do capital comercial e no papel do comércio intermediário, assim como e de Falcon e Rodrigues (2006), sobretudo no último ponto. Beaud (1987) e Fiori (2012), em suas visões mais particulares do fenômeno, também contribuíram para a reflexão do autor a respeito do assunto. Por último, os trabalhos de Braudel (1967), Wallerstein (1974) e Arrighi (1994), que buscaram explicar a hegemonia holandesa a partir de outras perspectivas, serviram mais para auxiliar a produção desse artigo, daí reside um limite desse trabalho que, futuramente, possa ser desenvolvido: dialogar mais profundamente com os teóricos do sistema-mundo. Além disso, outro ponto pouco discutido e que pode ser aprofundado futuramente é a questão do capital usurário, da especulação e sua relação com o comércio intermediário.

Notas

[1] O século de ouro ou a idade de ouro da Holanda corresponde, basicamente, ao século XVII. Período de hegemonia comercial holandesa, pelo menos em parte do período, mas sobretudo de ampla produção cultural, principalmente nas artes. É o tempo de Rembrandt, Spinoza, Vermeer, Huygens, entre outros.

A ideia do século XVII como século holandês é muito questionada, já que, em primeiro lugar, a decadência da Holanda se inicia nesse século, sobretudo na segunda metade, além disso, em segundo lugar, esse também foi o século de Cromwell e da revolução inglesa e o século ou a era de Luís IV, o Rei Sol.

[2] O caráter de defesa nacional não é nenhuma novidade da revolução holandesa, basta lembrar o caso da revolução burguesa em Portugal, no final do século XIV, que teve que enfrentar as tentativas de invasão de Castela. O que, talvez, seja uma novidade é o aparecimento do cristianismo reformado como uma forma de luta da burguesia durante um processo de revolução burguesa — já que as reformas foram antes lutas por espaço político e ideológico para a burguesia no marco feudal do que revoluções sociais. Ademais, o cristianismo reformado apareceria, novamente, de maneira mais radical e essencial, na revolução inglesa no século seguinte.

[3] Em 1565, Felipe II havia anunciado o estabelecimento da inquisição nos Países Baixos e pedia a aplicação dos éditos contra as heresias.

[4] “A Holanda tinha uma estrutura social idêntica à do resto da Europa Ocidental em meados do século XVI, com um clero e nobreza privilegiados, com uma divisão territorial complexa, com um campesinato distante da vida política e social e com uma burguesia que exigia mais poder político e não se contentava em contribuir com recursos sem participar da tomada de decisões. No entanto, uma das características peculiares dessas terras foi o grande desenvolvimento da burguesia, em um país muito urbano que, graças à produção e ao comércio de tecidos, vinha se desenvolvendo há séculos” (GALLEGOS, 2014, p. 177).

[5] A maioria dos historiadores acreditam que a religião teve um papel central na independência dos Países Baixos, Gallegos (2014) e Tenenti (1997) se encontram entre eles. Contudo, nesse trabalho, abordo as Reformas e o cristianismo reformado do ponto de vista marxista, segundo qual esses movimentos não passaram de formas ideológicas e culturais da burguesia em ascensão para lutar contra os interesses da velha sociedade, que possuíam como pilares ideológicos e políticos o catolicismo, a igreja e seu braço repressivo, a inquisição. Como afirmou Engels sobre as reformas, “Mesmo nas supostas guerras de religião do século XVI, tratava-se antes de tudo de muitos positivos interesses materiais de classes, e essas guerras foram lutas de classes exatamente como as colisões internas mais tarde produzidas na Inglaterra e na França. Que essas lutas de classes hajam possuído marcas religiosas de reconhecimento, que interesses, necessidades e reivindicações de cada uma das classes tenham se dissimulado sob uma capa religiosa, isso em nada altera os fatos e facilmente se explica pelas condições da época” (ENGELS apud DELUMEAU, 1965, p. 251).

[6] “Nestes oitenta anos, as Províncias Unidas viveram cercadas e em estado permanente de guerra, dentro do seu próprio território. Em 1585, a situação havia se deteriorado de tal forma que Amsterdam chegou a oferecer a soberania holandesa aos reis da França e da Inglaterra, e viveu dois anos como protetorado da Rainha Elizabeth I. Mas em 1590, este cenário mudou de forma súbita e radical. Amsterdam centralizou o poder e impôs sua hegemonia dentro da federação, e em seguida fez um enorme esforço fiscal e organizou em poucos anos um dos maiores e mais eficientes exércitos da Europa, iniciando uma ofensiva militar impressionante e vitoriosa, que conquistou 43 cidades e 55 fortalezas espanholas, em menos de dez anos. Em seguida, criou um anel protetor de cidades fortificadas e militarizadas e manteve sua ofensiva até o estabelecimento de uma trégua de 12 anos, com a Espanha, entre 1609 e 1621” (FIORI, 2012, s/p).

[7] Assim como a maioria das confederações na história, existia uma luta entre dois partidos: os adeptos da centralização, organizados em volta do estatuter da Holanda, que buscavam um poder central forte que auxiliasse o poderio militar na continuidade da luta contra a Espanha — apoiado sobretudo pela nobreza e pelos camponeses e cidadãos pobres das cidades que representavam a base social das forças armadas; os adeptos da autonomia das cidades e províncias, em volta do pensionista e do parlamento da Holanda, eram a favor da paz com a Espanha por acreditarem que isso iria ajudar no desenvolvimento dos negócios comerciais e usurários — era apoiado sobretudo pela burguesia comercial e manufatureira das grandes cidades (BENNASSAR et al., 1980, p. 517).

[8] Como o objetivo do trabalho é discutir mais as consequências econômicas da revolução burguesa na Holanda, e não exatamente seu caráter social e o seu padrão de luta de classes, abstive-me de discutir com mais profundidade essa questão, contudo uma nota se faz necessário. Não só na revolução holandesa, mas também nas revoluções burguesas em Portugal, Inglaterra e França, o motor dessas revoluções foram as massas, isto é, os camponeses e a plebe urbana ou gente miúda (setores semiproletários das cidades). Esses setores levaram adiante as reinvindicações burguesas, muitas vezes indo muito adiante dos interesses da burguesia, de maneira que acabaram sendo reprimidos. No caso holandês, sobretudo os Mendigos do Mar (artesãos pobres, pescadores, pessoas sem teto e posses, etc.) cumpriram esse papel (WOODS, 2016).

[9] “O capital comercial, crescentemente fortalecido, vai rompendo os limites à sua valorização, impostos pela esfera da produção, e a Holanda vai se tornando o país do comércio intermediário. Em outras palavras, na medida em que a esfera da produção nacional mostrava-se incapaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento comercial, este passava paulatinamente a buscar sua valorização, intermediando a circulação mercantil entre outras nações e regiões. Esse processo fortalecia o comércio ante a esfera produtiva, a qual sempre foi incapaz de impor políticas protecionistas quando seus interesses entravam em conflito com os do capital mercantil” (OLIVEIRA, 2003, p. 122).

[10] “A Holanda transformou-se no maior fretador marítimo da economia-mundo: por volta de 1660, ela possuía três vezes a tonelagem da Inglaterra, e mais que a tonelagem somada da Inglaterra, França, Portugal, Espanha e Alemanha. O tráfico comercial holandês alcançava todo o espaço econômico da época: o oceano Índico, a África, a América, o Báltico, o Mediterrâneo, e os rios do noroeste europeu” (REZENDE, 2010, p. 127).

[11] Segundo Marx, “Comprar para vender, ou, mais acuradamente, comprar para vender mais caro, D-M-D’, parece ser apenas um tipo de capital, a forma própria do capital comercial” (MARX, 2011, p. 299). Ainda no Capital, escreveu Marx, “É no genuíno capital comercial que a forma D-M-D’, comprar para vender mais caro, aparece de modo mais puro. Por outro lado, seu movimento inteiro ocorre no interior da esfera da circulação. Mas como é impossível explicar a transformação de dinheiro em capital — isto é, a criação do mais-valor — a partir da própria circulação, o capital comercial aparenta ser impossível, uma vez que se baseia na troca de equivalentes, de modo que ele só pode ter sua origem na dupla vantagem obtida, tanto sobre o produtor que compra quanto sobre o produtor que vende, pelo mercador que se interpõe como um parasita entre um e outro” (MARX, 2011, p. 309).

[12] Sobre as companhias, argumentou Arrighi (1994), “as companhias de comércio e navegação foram o meio através do qual a classe capitalista holandesa estabeleceu ligações diretas entre o entreposto de Amsterdam, de um lado, e produtores do mundo inteiro, de outro” (ARRIGHI, 1994, p. 143).

[13] “Sozinha, a frota holandesa empregava, em 1614, mais marinheiros que as frotas espanhola, francesa, inglesa e escocesa reunidas” (BEAUD, 1987, p. 36).

[14] Analisando o caso do capitalismo comercial em Portugal, afirmou Novais (1979): “Veja-se bem, procuravam manter a riqueza móvel, isto é, reinvestir no comércio: assim se bloqueava exatamente a transição essencial da acumulação mercantil para o setor produtivo, elemento fundamental na mudança da estrutura. Foi este pois um dos mecanismos fundamentais (não o único, por certo) a travar, em Portugal ‘a penetração do capital comercial na produção artesanal’ […] O Portugal da época moderna parece, pois, configurar a situação de cristalização do capital comercial, que Marx referiu de passagem” (NOVAIS, 1979, p. 210).

[15] “Mas os maiores beneficiários da concentração durante o século XVII, os Países Baixos, foram em certo sentido uma economia de “negócios feudal”, Florença, Antuérpia ou Augsburgo em uma escala seminacional. Ele sobreviveu e floresceu, monopolizando o estoque mundial de certos bens escassos e grande parte dos negócios mundiais como intermediário comercial e financeiro. Os lucros holandeses não dependiam muito da manufatura capitalista. Portanto, a economia holandesa não serviu, até certo ponto, à industrialização no curto prazo. Nem a sua, porque sacrificou a manufatura holandesa (até 1816) aos imensos interesses estabelecidos do comércio e das finanças, nem do resto do mundo europeu, porque encorajou a manufatura em áreas feudais e semicoloniais onde eles não eram suficientemente fortes para romper com a velha estrutura social: como a Silésia ou a Alemanha Ocidental” (HOBSBAWM, 1971, p. 38).

[16] “Portanto, a raiz da relativa debilidade da Holanda no século XVIII pode ser encontrada na assimetria do seu até então florescente e dominante comércio, em contraposição ao limitado desenvolvimento de sua produção, vale dizer, num capital comercial que tendia a tornar seu processo de valorização independente da produção nacional” (OLIVEIRA, 2003, p. 122).

[17] Braudel (1967) e Wallerstein (1974) e os demais teóricos da sistema-mundo, ao contrário da abordagem que segue esse trabalho, defendem que o desenvolvimento do comércio intermediário holandês ocorreu ao lado e, em parte, em consequência do desenvolvimento manufatureiro, da pesca e da agricultura. Nesse sentido, o fim da hegemonia holandesa teria ocorrido devido à recuperação militar, econômica e política da Inglaterra e da França, que haviam passado por graves crises entre o final do século XVI meados do século XVII.

[18] As burguesias italianas e ibéricas, mais “feudais” que a holandesa, investiram mais em terras do que na especulação. Embora as três tenham em comum o investimento nas artes e na ciência. Como afirmou Arrighi (1994), “a grande diferença entre os holandeses e seus predecessores italianos foi a precocidade com que os negociantes holandeses transformaram-se numa classe rentista” (ARRIGHI, 1994, p. 138).

[19] Marx definiu a fórmula do capital como: D-M-D’, isto é, um dinheiro que através da produção ou circulação de mercadorias se valoriza, sendo o capital comercial a sua forma mais pura. Em relação ao capital usurário, Marx definiu como D-D’, ou seja, um dinheiro que se valoriza sem passar pelo processo de produção de mercadorias e, portanto, se valoriza somente artificialmente, na medida que não tem nenhum tipo de lastro na produção material. Em outras palavras, não existe, é mera especulação. É somente “dinheiro que se troca por mais dinheiro, uma forma que contradiz a natureza do dinheiro e, por isso, é inexplicável do ponto de vista da troca de mercadorias” (MARX, 2011, p. 309).

Referências Bibliográficas

ARRIGHI, G. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1996 [1994].

BEAUD, Michel. Expansão colonial e capitalismo na Holanda. In: IDEM. História do Capitalismo de 1500 até nossos dias. Brasiliense: São Paulo, 1987.

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Guilherme Giotti Sichelero é historiador e professor, licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é graduando em Ciências Econômicas.


Publicado por: Guilherme Giotti Sichelero

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