A VULNERABILIDADE DAS MULHERES QUE ABORTAM: UM PANORAMA DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ SOB A ÓTICA DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Definições doutrinárias acerca do Abortamento, Direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos, o que é o aborto clandestino e qual sua relação com a saúde pública e analisar a criminalização do aborto e demonstrar a ineficácia desta.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo geral colaborar para o estudo dos principais entraves para a efetivação do direito à saúde e dignidade da vida das mulheres, considerando-se que a criminalização do aborto viola direta e indiretamente os direitos constitucionais da mulher que opta pela interrupção voluntária da gravidez. Outrossim, a presente pesquisa visa também demonstrar os altos índices que revelam o tema em questão como um problema de saúde pública, denunciando a ineficácia da criminalização. Torna-se necessário estar em pauta as discussões que desenvolvam o pensamento crítico no sentido de amenizar a incidência de mortes em mulheres decorrentes de tal fenômeno. Nesse sentido, foram adotados os seguintes objetivos específicos, divididos da seguinte forma: 1. Expor as definições doutrinárias acerca do Abortamento, Direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos; 2. Definir o que é o aborto clandestino e qual sua relação com a saúde pública com base na Doutrina Brasileira e artigos científicos; 3. Analisar a criminalização do aborto e demonstrar a ineficácia desta, tendo como parâmetro casos concretos e as altas estatísticas de mulheres em situação de amblose, bem como expor a falta de humanização e situações degradantes em que estas se submetem por optar pela interrupção da gestação.
Palavras-Chave: Abortamento; (des)Criminalização; Saúde pública; Direitos Sexuais e reprodutivos; Direitos humanos.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho acadêmico tem por diretriz principal analisar e abordar acerca da vulnerabilidade das mulheres que abortam voluntariamente, a fim de demonstrar a ineficácia da criminalização desta prática, com base nos altos índices de incidência e expor o quanto a criminalização deste fenômeno viola os direitos humanos das mulheres.
O tema aborto é daqueles que sempre provoca nas pessoas uma reação de posicionamento binário: “a favor” ou “contra”. Este fato causa um impacto negativo, reduzindo a importância da problemática, mascarando sua verdadeira dimensão social e prejudicando o seu esclarecimento.
O abortamento clandestino, por ser a causa de elevados índices de mortalidade materna e internações de mulheres, é uma questão de saúde pública reconhecida como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo certo que isto seria evitado com a implementação programas sociais e educativos, bem como com a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez.
Quando se discute o aborto, é importante colocar que não é uma questão de ser contra ou a favor, e sim analisar esta problemática na seara da saúde pública e do reconhecimento de um direito da mulher, a fim de que este não seja apenas um tema de confrontação de concepções filosóficas ou religiosas.
Destaca-se a relevância deste trabalho tendo em vista o crescente número de mortes de mulheres em situação de amblose em condições precárias. Deste modo, o presente artigo científico possibilita uma reflexão acerca da problemática abordada e possíveis medidas que possam contribuir para amenizar o problema em questão.
Para isso, analisaremos adiante, pormenorizadamente, o que vem a ser o abortamento, a evolução histórica deste e os direitos sexuais e reprodutivos sob a ótica dos direitos humanos. Será apresentado ainda acerca da clandestinidade abortiva e sua relação com a saúde pública. Neste azo, será apresentado depoimentos reais de mulheres que realizaram a interrupção voluntária da gravidez, sendo também exposta a realidade que estas enfrentam nos hospitais ao dar entrada com quadro de abortamento ou com complicações ocasionadas por este, ainda que seja nos casos permitidos em lei. Nesse sentido, foi utilizado o método de pesquisa dialético, onde pontos de vista na doutrina são sopesados e postos em contraponto a fim de extrair-se uma conclusão. Corroborando com este método, o tipo de pesquisa para a elaboração do trabalho é bibliográfico, conforme disposto nas referências.
DESENVOLVIMENTO
ABORTAMENTO, DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS ENQUANTO DIREITOS HUMANOS PARA A DOUTRINA BRASILEIRA
Abortamento: Evolução histórica e tipos legais
Preliminarmente, cumpre trazer a definição de abortamento, qual seja:
Inicialmente, há de se fazer a diferenciação entre o conceito de aborto do ponto de vista jurídico e médico. Do ponto de vista jurídico, a lei não estabelece limites para a idade gestacional, isto é: aborto é a interrupção da gravidez com intuito de morte do concepto, não fazendo alusão à idade gestacional. Consuma-se o aborto com a interrupção da gravidez e a morte do feto, desnecessária a existência da expulsão fetal. Do ponto de vista médico, aborto é a interrupção da gravidez até 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas ou ainda, alguns consideram quando o feto mede até 16,5 cm. Este conceito foi formulado baseado na viabilidade fetal extra-uterina e é mundialmente aceito pela literatura médica. [1]
Cabe destacar que o aborto está legalizado no Brasil desde 1940, mas apenas em situações específicas, sendo estas: o aborto necessário, quando a gravidez causa perigo iminente à vida da gestante; feto como resultado de estupro e, após decisão do STF por maioria dos votos em 12.04.2012, com o projeto de Lei 4.360/04, a qual passou a isentar a ilicitude da interrupção da gestação em caso de gravidez de feto portador de anencefalia. Importante frisar que em todas as modalidades, requer que seja praticado por um médico, conforme preconiza art. 128 do código penal.[2]
Importante se faz trazer o questionamento acerca do início da vida. Para a ciência, de acordo com a visão neurológica, usa-se para o início da vida o mesmo princípio da morte. Se a vida termina quando cessa atividade cerebral, logo, a vida humana como indivíduo se inicia após o desenvolvimento da atividade cerebral, e esta, para boa parte dos cientistas, ocorre após o primeiro trimestre da gravidez[3]. Por analogia, entende-se que, antes disso, não há vida humana. Conforme supracitado, o STF decidiu por maioria dos votos descriminalizar o aborto de feto portador de anencefalia, ou seja, má formação do cérebro. Entende-se cientificamente que até o primeiro trimestre não há atividade cerebral e, portanto, merece ser amparada a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, no mínimo, até este tempo gestacional. Inclusive, o Min. Luís Roberto Barroso defende este amparo, conforme será demonstrado posteriormente.
Muito embora na atualidade seja considerado como crime a prática da interrupção voluntária da gravidez, imperioso demostrar que em outrora tal prática era considerada pelos povos Hebreus, Gregos e Romanos como produto da concepção, sendo certo que tal fazia parte do corpo da mulher e esta poderia decidir. Segundo Fernando Capez:
A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo muito comum a sua realização entre os povos Hebreus e Gregos. Em Roma, a Lei das XII Tábuas e as leis da república, não cuidavam do aborto, pois consideravam o produto da concepção como parte do corpo da gestante e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava, nada mais fazia que dispor do próprio corpo. (...)[4]
Sendo assim, evidencia-se que o abortamento é uma prática realizada em todas as épocas, por todos os povos e culturas. Outrossim, ainda há registros de que no Código de Hamurabi, criado pela civilização babilônica no século V a.C., constava menções acerca do abortamento, onde apenas penalizava o terceiro envolvido no ato e não a gestante. Ainda, o Código Hitita, nascido no século XIV a.C., também não punia a gestante que praticava o aborto, somente o praticado por terceiros.[5]
A interrupção da gravidez era método anticoncepcional no Século II, conforme era ensinado pelas mulheres Gregas e Romanas, através de receitas com plantas medicinais dentre outras técnicas. Não obstante, há notas deixadas pelo ginecologista da época, chamado Grego Soranos, das quais relatam os métodos, sendo estes não muito diferente dos atualmente ainda usados, principalmente em alguns locais do Nordeste brasileiro. [6]
Dessa forma, pode-se perceber que a prática de abortamento acompanha o ser humano desde o começo da humanidade. Ocorre que, conforme analisaremos adiante, a decisão do legislador de ainda criminalizar o aborto voluntário em pleno século XXI, viola diversos direitos fundamentais da mulher, conforme será pormenorizadamente nas próximas seções, estando entre eles a violação dos direitos sexuais e reprodutivos, direito à saúde, bem como a integridade psíquica e física da mulher e o princípio da igualdade, com ressalvas a serem analisadas à posteriori.
A criminalização do aborto e sua violação aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher
Em suma, pode-se dizer que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos que incorporam os direitos humanos, os quais englobam ter vida sexual sem constrangimento, a maternidade voluntária, a contracepção auto decidida, dentre outros.
Como as Denaídes da mitologia grega, as mulheres estão carregando seus direitos em jarros furados. Elas têm seus direitos garantidos formalmente por dispositivos legais e constitucionais, mas não conseguem exercê-los em face da omissão do Estado e, por isso, têm sido vitimizadas por uma terrível história de violência, dominação e exclusão, especialmente no âmbito da expressão de sua sexualidade. E é exatamente essa história de violência, construída sob a égide de uma ideologia patriarcal e sob o enfoque de uma concepção moral ultrapassada, fundada na submissão carnal e na subordinação entre os sexos, que tem determinado essa inaceitável omissão constitucional do Estado.[7]
A vivência da sexualidade não implica tão somente sobre a liberdade e autonomia, mas também abrange intrinsecamente os direitos humanos. Pode-se afirmar que os direitos reprodutivos são entendidos, conforme classificação de Richard Parker como "a capacidade de se reproduzir e a liberdade de decidir-se, quando e com que frequência se reproduzir”. [8]
Acerca dos direitos sexuais, é de sabença geral que este tema é mais contemporâneo, o qual se originou nas lutas LGBTQIA+ e do feminismo, em prol principalmente da liberdade sexual, da livre escolha de parceiros e práticas sexuais sem constrangimento ou discriminação.[9]
Os direitos reprodutivos e sexuais da mulher também foram reconhecidos enquanto parte dos direitos humanos pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD) do Cairo em 1994, bem como pela 4ª Conferência Internacional sobre a Mulher (FWCW) de Beijing, em 1995. A primeira preconiza que determinados direitos humanos incluem os direitos reprodutivos, os quais já foram reconhecidos nas leis nacionais. Esses direitos se embasam no reconhecimento de que todo indivíduo tem como direito básico poder decidir de forma livre e responsável quando ter seus filhos, quantos, bem como ter informação e educação para isso, podendo alcançar uma boa saúde sexual e reprodutiva.[10]
Em Beijing, o acordo abordou que os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e a decidir livre e de forma também responsável acerca de sua sexualidade, saúde sexual e reprodutiva, livres de coerção, discriminação e violência. [11] Ressalta-se que o Brasil foi signatário de ambos os dispositivos.
Dessa forma, conforme supra elucidado, os direitos sexuais e reprodutivos estão intrinsecamente ligados aos direitos humanos, e cabe, portanto, demonstrar a razão pela qual a criminalização da interrupção voluntária da gravidez fere diretamente estes princípios.
As palavras de Luís Roberto Barroso, em seu voto no HC 124306 Rio de Janeiro, demonstram com clareza o quão grave é a criminalização do aborto face aos direitos fundamentais, em especial os direitos sexuais, reprodutivos e direito à saúde, como também fere o princípio da proporcionalidade senão, vejamos:
A criminalização viola, também, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que incluem o direito de toda mulher de decidir sobre se e quando deseja ter filhos, sem discriminação, coerção e violência, bem como de obter o maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade. (...)
(...) é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade[12]
Parte da doutrina e dos juristas brasileiros consideram que a criminalização do abortamento voluntário fere diretamente a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada.[13]
Nessa esteira, é nítido que grande parte dos abortos são realizados ilegalmente, ou seja, fora das condições básicas de saúde, sendo certo que esse cenário coloca, incontestavelmente, o abortamento como um dos enormes problemas de saúde pública no país, conforme será abordado detalhadamente a seguir.
ABORTAMENTO CLANDESTINO E SUA RELAÇÃO COM A SAÚDE PÚBLICA
Inicialmente, cumpre trazer à baila o esclarecimento de que o direito à saúde está inserido na órbita dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Conforme dispõe o artigo 196 da Carta Magna de 1988, in verbis:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.[14]
Para Henrique Hoffmann Monteiro Castro, a tutela do direito à saúde apresentaria duas faces: uma de preservação e outra a proteção. A primeira, seria a preservação da saúde, a qual se relacionaria às políticas de redução de riscos, enquanto a proteção à saúde seria um direito individual, de tratamento e recuperação de uma determinada pessoa.[15]
É fato de que o direito ao tratamento humanizado à mulher em situação de amblose se inclui à proteção à saúde, sendo certo que esta proteção é dever do Estado em garantir. Nas palavras de André da Silva Ordacgy:
A Saúde encontra-se entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do direito à vida. Dessa forma, a atenção à Saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais.[16]
O aborto quando realizado por médico qualificado, sendo utilizadas por este as técnicas corretas e em condições, ao menos, sanitárias, o procedimento é extremamente seguro, revelando taxas de letalidade menores do que um óbito para cada cem mil procedimentos, conforme pesquisa feita pela OMS.[17]
Nesse sentido, esclarece Diniz, Medeiros e Madeiro “que grande parte dos abortos são ilegais e, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto como um dos maiores problemas de saúde pública no país”.[18]
Nas palavras de Alcilene Cavalcante Dulce Xavier: “Quando se discute o aborto é importante colocar que não é uma questão de ser contra ou a favor, mas de encarar a discussão na esfera da saúde pública, da justiça social e do reconhecimento de um direito.”[19]
Neste passo, verifica-se uma espécie de dualidade entre o abortamento clandestino e a saúde pública, tendo em vista que a criminalização não é eficaz em desestimular as mulheres a praticarem o aborto, tampouco evita que este seja uma alternativa para a gravidez indesejada.
Tal fenômeno clandestino apenas reforça as desigualdades sociais, onde as mulheres que podem arcar com os custos de uma intervenção clínica, com métodos, em tese, seguros e sem riscos à saúde, recorrem à tal, viajam para países onde é permitido, por exemplo; noutra via, as mulheres mais carentes, com escassez de recursos, recorrem às clínicas clandestinas do mais baixo padrão possível, sem o mínimo de dignidade e assistência humanitária, geralmente operadas por pessoas desqualificadas, trazendo grande risco para a saúde da gestante, levando a morte na maioria dos casos.
Há muitos anos que a mortalidade materna por complicações ocasionadas pelo aborto clandestino ocupa entre a quarta e quinta posição em várias capitais brasileiras. Em diversos locais do país, onde as condições socioeconômicas e o acesso à saúde são precários, o aborto realizado de forma clandestina chega a ocupar o primeiro lugar em causa de morte materna, como por exemplo em Salvador/BA, desde a década de 90.[20]
Outrossim, em 2014, a Câmara dos Deputados alertava que “cerca de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos”. Noticiou, ainda, que o aborto “é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil” e que para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres”.[21]
Dessa forma, podemos analisar que não temos dados exatos de quantas mulheres abortam em razão da clandestinidade. Esta situação agrava-se com a criminalização da prática abortiva voluntária, sendo certo que consequentemente gera a procura pela interrupção da gravidez pelas vias clandestinas e, na grande maioria das vezes, inseguras, o que acarreta o aumento da morbidade e mortalidade materno-infantil no país.[22]
Segundo Andrea Dip[23], ocorrem aproximadamente 250 mil internações por ano no país nos hospitais para tratamento de complicações decorrente de aborto, sendo o segundo procedimento mais comum da ginecologia. A partir desse dado, calcula-se quantos abortos possivelmente ocorreram para que as complicações tenham ocorrido neste número. Diante disso, estima-se que ocorra entre 800 mil a 1 milhão de abortos induzidos de forma clandestina.
Ainda, conforme Luís Roberto Barroso elucidou em seu voto no HC 124306 Rio de Janeiro, a clandestinidade gera diversas complicações para a saúde da mulher, o que consequentemente a leva para os hospitais em busca de reparar o dano causado, sobrecarregando ainda mais as emergências e gerando custos que poderiam ser evitados ou investidos de uma forma melhor.
Sopesando-se os custos e benefícios da criminalização, torna-se evidente a ilegitimidade constitucional da tipificação penal da interrupção voluntária da gestação, por violar os direitos fundamentais das mulheres e gerar custos sociais (e.g., problema de saúde pública e mortes) muito superiores aos benefícios da criminalização.[24]
Outrossim, conforme pesquisa realizada por Lorena Ribeiro Morais:
Em 2004, foram realizados 1.600 abortos legais previstos no artigo 128 do Código Penal Brasileiro, que tratam de risco de morte para a mulher e de gravidez resultante de estupro, em 51 serviços especializados do SUS (Sistema Único de Saúde), ao custo de R$232.280,50. No mesmo ano, ocorreram, no SUS, 243.998 internações motivadas por curetagens pós-aborto, decorrentes de abortamentos espontâneos e inseguros, orçadas em R$35.040.978,90. Tais curetagens são o segundo procedimento obstétrico mais praticado nas unidades de internação, superadas, apenas, pelos partos normais.[25]
Destarte, conforme analisamos doutrinariamente, a criminalização do aborto acarreta o altíssimo índice de complicações e mortes maternas decorrente dos procedimentos clandestinos inseguros, gerando um caso grave de saúde pública e consequentes gastos públicos.
Este último tópico guarda grande relevância ao presente estudo, tendo em vista que iremos analisar a criminalização do aborto e sua ineficácia, utilizando como parâmetro casos concretos dos quais demonstram a alarmante realidade deste fenômeno e expor a falta de humanização em que as mulheres se submetem, inclusive nos casos legais, de modo que este tópico merece ser analisado mais pormenorizadamente por subtópicos a seguir.
A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E SUA INEFICÁCIA: BASEADO EM DADOS E CASOS REAIS
Dos alarmantes índices em relação ao aborto no Brasil
O aborto para a sociedade não é crime e sim pecado. Embora o Brasil seja um Estado dito como laico, ainda podemos ver que os valores religiosos falam mais altos que os direitos humanos.
Como parte fundamental para entender a realidade das mulheres que optam pela interrupção voluntária da gravidez, torna-se importante colacionar a pesquisa realizada pelo Catraca livre, a qual demonstra dados apavorantes acerca do aborto no Brasil, senão, vejamos:
1. A cada dois dias, uma mulher morre vítima de aborto inseguro no Brasil. Todos os anos, ocorrem 1 milhão de abortos clandestinos.
2. São 250 mil internações no SUS (Sistema Único de Saúde) e R$ 142 milhões gastos por causa de complicações pós-aborto.
3. Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já abortaram no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, desenvolvida pela Anis – Instituto de Bioética.
4. As mulheres que abortam são, em geral, casadas, já têm filhos e 88% delas se declaram católicas, evangélicas, protestantes ou espíritas.
5. Cerca de 20 milhões dos abortos são realizados no mundo de forma insegura todos os anos, resultando na morte de 70 mil mulheres, sobretudo em países pobres e com legislações restritivas ao aborto.
6. 97% dos abortos clandestinos ocorrem em países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, 80% dos países desenvolvidos permitem o procedimento.
7. Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher (EUA), publicada em 2016, demonstrou que nos países em que o aborto é proibido o número de procedimentos não é menor do que em lugares onde é legalizado.
8. Em 2007, Portugal autorizou o aborto até as 10 semanas de gestação. Dez anos depois, pesquisa da ONG Associação para o Planejamento da Família mostra que o número de abortos caiu e as mortes decorrentes da prática são quase nulas. Na década de 1970, eram 100 mil abortos, sendo que 2% deles resultavam em morte, enquanto dados de 2008 mostram que o país registrou 18 mil abortos e, hoje, este número está em queda constante.[26]
Diante destes dados apavorantes, deve-se refletir se de fato a criminalização do aborto impede que mulheres realizem ou se apenas é garantido que estas venham a perder sua saúde e até mesmo vida em razão da prática clandestina.
Nas palavras de Lorena Ribeiro de Morais: “As mulheres ao serem impedidas de ter acesso à saúde por meio de tratamento adequado para o seu caso, em razão da forte carga de preconceito e intolerância acerca do procedimento do aborto, têm violada a sua honra e dignidade.”.[27]
É irrefutável o abalo moral e diversas vezes físicos causados pelos profissionais de saúde perante as gestantes em processo de abortamento, ou diante das mulheres que se submeteram aos métodos inseguros para interromper voluntariamente sua gravidez, em razão de seus preconceitos e crenças.
Em entrevista dada à Alcilene Cavalcante Dulce Xavier para a elaboração do seu livro chamado “Em defesa da vida: aborto e direitos humanos”, Maria Berenice Dias, desembargadora e fundadora do JusMulher e Jornal Mulher, ao ser questionada que, mesmo sendo criminalizado, cerca de um milhão de abortos clandestinos por ano são realizados e os processos por esta prática não são no mesmo patamar; ainda, as mulheres se sentem mais penalizadas por cometerem “pecado” do que crime propriamente dito, então, qual seria o papel da criminalização nesse caso, esta que respondeu:
Existe uma razão perversa de ser, uma vez que a lei não permite que sua prática seja controlada pelo Estado. É feita de forma clandestina porque é criminalizada, o que torna a prática perigosa. Não é só a mulher pobre que é criminalizada, mas também aquela que paga pelo serviço. Não é seguro para ela nem para o médico, que estão sujeitos a controle e a punição. O fato é que a criminalização não impede a prática, visto ainda que a penalização realmente acontece pela influência da religião. Não há interesse na criminalização porque não há interesse na fiscalização. O que nos leva à conclusão de que a criminalização atende a outros interesses, o que faz a prática ser uma atividade lucrativa. É um papel perverso.[28]
Ainda na mesma entrevista, lhe fora dito que a problemática do aborto remete à garantia constitucional o direito à vida, sendo questionado, então, a partir de qual momento a constituição reconhece um indivíduo como pessoa humana detentora de direitos e deveres, sendo respondido:
Há uma grande discussão sobre o momento em que começa a vida. Não cabe ao Estado definir o início da vida, uma vez que nem a ciência consegue defini-lo. A religião busca reconhecer o momento de início e isso acaba retroagindo a um conceito anterior com a finalidade de banir. Esta definição deve ser deixada à ciência. À Constituição cabe garantir o direito à vida, mas sem defini-lo a partir do momento da concepção. Não cabe ao Estado nem à religião.[29]
Nada obstante, a fim de enriquecer o argumento de que a criminalização do aborto é ineficaz, foi realizado uma pesquisa através do Forms no Google, o qual, dentre alguns questionamentos, sendo perguntado se a mulher praticaria ou não o aborto induzido e, se não, por quais razões, das vinte e uma respostas, nenhuma declarou que deixaria de realizar este ato por “medo da penalização legal”, senão, vejamos:
Figura 1 - Mulheres que praticaram ou não abortamento voluntário e suas razões
Fonte: Forms Google de Viviane F. Montezi da Silva, 2020.[30]
Depreende-se do gráfico acima que a lei não é eficaz em impedir que mulheres optem pela interrupção da gravidez, sendo apenas eficaz em fazer com que recorram à métodos clandestinos e inseguros por não desejarem aquela gravidez naquele momento da vida.
Casos reais das mulheres em situação de amblose e seus relatos
O aborto legal ainda é “semiclandestino” no Brasil em razão da falta de informação para a população, bem como pela invisibilidade dos serviços. As mulheres são constrangidas a peregrinar de hospital em hospital, e por diversas vezes necessitando viajar para outros estados a fim de conseguir algo que lhes é assegurado por lei, como foi o recente caso da menina de 10 anos que engravidou através do estupro perpetrado por seu tio.[31]
A opinião de Olímpio Barbosa, médico responsável pela unidade que interrompeu a gravidez da menina de 10 anos traz que: “A criminalização do aborto não diminui o número de abortos. Ele acontece de uma forma ou de outra e a única coisa que acontece, quando você não dá acesso (ao aborto seguro), é que elas morrem.”[32]
A realidade que as mulheres enfrentam ao dar entrada em uma unidade hospitalar com quadro de abortamento ou com complicações de pós-abortamento, é de extremo descaso e preconceito, ainda que sejam casos que permitidos em lei, como o aborto humanitário.
Como exemplo disso, colacionamos um caso descrito por ESQUERDA.NET:
Mariana* tinha 20 anos quando chegou ao pronto atendimento de um hospital particular do seu convénio médico em São Paulo com um aborto espontâneo e acabou sendo tratada como criminosa. “Estava com dois meses de gestação, acordei uma noite com muita cólica e sangramento e corri para o hospital. Apesar de não estar mais com o pai do bebé e da minha família ter me dado a opção de fazer o aborto numa clínica, a minha religião me fez desconsiderar essa hipótese” conta. “Assim que cheguei ao hospital, sozinha, e comuniquei à recepcionista o que estava acontecendo, senti a conversa mudar. Ela passou a tratar-me com descaso e mesmo passando por uma hemorragia, tive de esperar muito mais tempo do que os outros para ser atendida”. Mariana lembra que assim que entrou no consultório, o médico perguntou se ela havia provocado o aborto e, diante da negativa, continuou perguntando seguidas vezes. “Antes da curetagem também perguntou muitas vezes se eu não havia mesmo usado nenhuma droga naqueles dias. Ele disse que eu estava com um aborto retido e que estava com uma grave infeção no útero. Fiquei vários dias internada no andar da maternidade e todas as vezes que saia no corredor, de cadeira de rodas, todas as mães, enfermeiras e atendentes olhavam-me com ar de reprovação. Já estava triste por ter perdido o bebé e ainda tive de passar por isso mesmo sem ter provocado nada.[33]
Por fim e de extrema importância, trazemos na íntegra depoimentos de mulheres, ricos em detalhes, para a devida análise satisfatória, o qual possui como base a pesquisa realizada por Rulian Emmerick, oriundos do seu trabalho de campo enquanto advogado, sendo certo que sua pesquisa objetivou mapear a situação da criminalização da prática do aborto no Estado do Rio de Janeiro.[34]
O primeiro caso analisado por Rulian Emmerick é o de S.S.L., preta, doméstica, com trinta anos, já possuía dois filhos, moradora da cidade de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que interrompeu a gravidez em 1993, sendo denunciada à polícia por seu próprio companheiro, cujo processo é do ano de 1998. Desta forma, interrogada disse:
(...) que vive maritalmente em companhia de D. há 12 anos, tendo dessa união um casal de filhos; que, já há muito tempo a declarante não deseja mais conviver em companhia de seu companheiro em virtude de bebedeiras e agressões e maus tratos contra os próprios filhos; que seu companheiro não cumpre com suas obrigações de pai e de marido, faltando tudo para a declarante e seus dois filhos, não possuindo nem uma cama para dormir; que devido a vida de sofrimento que levava em companhia de seu companheiro fez com que tomasse a decisão de abortar o terceiro filho que estava para nascer; (...) que após receber o seu salário, resolveu procurar a Srª. E., tendo pago a quantia de Cr$ 700.000,00 pelo “serviço”, tendo utilizado o método de matar o feto com uma sonda; (...) que no domingo passando muito mal a declarante abortou no banheiro de sua residência; (...) que não quis seu marido socorre-la, nada alegando para tal, podendo esclarecer a declarante que não vive bem com ele.[35]
Ainda, trazemos o caso de L. S. R., negra, atendente de lanchonete, solteira, com 26 anos, já com um filho, moradora da cidade de Belford Roxo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, interrompeu a gravidez em 2003 e foi denunciada à polícia por seu próprio namorado, uma vez que a mesma abortou sem comunica-lo. Ao ser interrogada na delegacia disse:
“(...) que namorou L. durante um ano e três meses; que em janeiro de 2003 a declarante descobriu que estava esperando um filho de L., após fazer alguns exames; que explicou a situação para L. dizendo que não dava para ter a criança, porque ele já tinha três filhos e estava desempregado, e não tem responsabilidade com nada, e que a declarante também já tem um filho; que L. disse que iria tentar arrumar o dinheiro para tirar a criança, pois ele queria que a declarante fosse numa clínica e não tomasse remédio para abortar em casa; que disse para L. que iria dar um jeito, e ele respondeu que tudo bem, mas no dia queria ir com a declarante para tirar a criança. A declarante narra que trabalha em um restaurante; que lá no restaurante a declarante sempre conversa com uma freguesa chamada N.; que contou para N. que estava grávida, e lhe perguntou se conhecia algum remédio para abortar; que N. indicou um remédio que a declarante não sabe ao certo o nome, mas acha que é “cititek”; que deu duzentos reais para N. comprar tal remédio, e no outro dia, ela trouxe e não deu troco para a declarante; que levou o remédio para casa; que apesar de não se recordar ao certo a data, sabe que num sábado a tarde a declarante ingeriu dois comprimidos de uma vez; que nesta data a declarante estava sozinha em casa e umas três horas depois foi ao banheiro urinar e quando olhou no vaso havia um sangue pisado (...) que consegui o dinheiro através de seu trabalho (...); que esta não é a primeira vez que tira um filho (...); que no ano de 2002 já havia tirado um outro filho de L., o qual deu o dinheiro para fazer o aborto (...); que tirou o primeiro filho pelos mesmos motivos que a levaram a tirar o segundo.”[36]
Conclui-se deste depoimento o nível de desinformação da depoente, onde mal sabia informar o remédio que fez uso para praticar o aborto, notando-se, ainda, não ser sequer a primeira vez a realizar este ato.
Extrai-se ainda diante sua relevância o seguinte depoimento:
V. B. C., mulher pobre, negra, com 24 anos, atendente, solteira, moradora de Realengo, bairro pobre do município do Rio de Janeiro, mãe de um filho de 10 meses, migrante do Maranhão, desesperada com a gravidez por não ter condições de levá-la adiante, em 2002 fez uso do medicamento Cytotec. Em seguida começou a sentir fortes dores e procurou atendimento no Hospital Albert Schuweitzer, sendo atendida pela Drª. V. M. B, que a colocou em uma cama, lá permanecendo sem orientação e atendimento médico adequado. Indo ao banheiro por causa de fortes dores, teve a criança na privada e a médica, em uma atitude preconceituosa começou a gritar com a paciente, chamando-a de assassina. Em seguida, a médica acionou a polícia, onde V., sem qualquer informação foi informada que deveria assinar um documento, pois estava presa, sendo algemada em seguida na própria cama. No dia seguinte ainda com hemorragia, foi conduzida ao presídio feminino e lá permaneceu por quase dois meses, sem qualquer atendimento médico.[37]
É de conhecimento geral que o aborto clandestino inseguro e insalubre causa diversas complicações e até morte, como foi exaustivamente abordado neste trabalho. Como exemplo disto, faz-se necessário demonstrar ainda o caso de E. C. M. F., não informada a cor, não informada a profissão, solteira, com 19 anos, Moradora da cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, submeteu-se ao aborto clandestino e inseguro em 1998 o qual resultou em sérias complicações. Desta forma, procurou o hospital Geral de Duque de Caxias e foi denunciada pela própria médica que lhe atendeu, sendo presa em flagrante. De acordo com o processo, a mesma não foi ouvida no momento do flagrante devido a sua péssima condição física de saúde. Desta forma, não trazemos o depoimento da envolvida, pois esta pagou a fiança e deixando o hospital e nunca mais foi encontrada.[38]
Existem diversos motivos para a mulher recorrer ao aborto como forma de interromper uma gravidez indesejada e o medo de penalidade criminal passa longe de todas elas.
Resta evidente que, em regra, o aborto poderia ser evitado, entretanto, a realidade mostra que lamentavelmente em muitos casos não se é possível evitar, ficando milhares de mulheres à mercê da clandestinidade e insegurança, tendo seu direito à vida e saúde ceifados por preconceito e falta de amparo estatal.
É irrefutável que a prática do aborto no Brasil é algo bastante comum, sendo ineficaz a punição nos casos que não são autorizados em lei. As mulheres não são punidas somente pela legislação, pois permanecem com sequelas e muitas das vezes pagam com a própria vida devido aos procedimentos inadequados, sendo que estes poderiam ser feitos de maneira mais segura e com assistência humanizada nos hospitais. A punição ocorre como reflexo de um Estado omisso que age com absurdidade face seus ideais democráticos, laicos e igualitários.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, considera-se constitucional a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, com base nos princípios fundamentais, em especial o direito à vida, à saúde, aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Imperioso frisar que, inobstante o senso comum infelizmente ainda majoritário, ser a favor da descriminalização do aborto dessemelha de defendê-lo como método contraceptivo. Este trabalho teve como diretriz principal demonstrar as situações degradantes que as mulheres se submetem para que possam fazer valer seus direitos fundamentais, situações estas que poderiam ser evitadas com a devida intervenção estatal.
Incontroverso o fato de que não se defende a interrupção voluntária da gravidez como método contraceptivo. Entretanto, a criminalização do aborto não salva a vida de fetos, mas mata milhares de mulheres e ocasiona diversas sequelas em milhares outras. Assim, cabe ao Estado legislar sobre os prazos razoáveis e seguros, bem como acerca dos procedimentos necessários para que as mulheres que optarem pela interrupção da gravidez, realizem de forma segura, digna e legal.
Entretanto, ao continuar impedindo que a mulher exerça seu direito de interromper ou não uma gestação indesejada, demonstra um controle injustificado sobre o seu corpo, sua sexualidade e reprodução, configurando-se, assim, uma clara violação aos direitos humanos da mulher.
Por se tratar de um tema polêmico, o qual envolve aspectos culturais, religiosos e morais, ocasiona entraves em relação à elaboração de políticas que tragam uma abordagem clara do problema.
Sob o prisma delicado que é a questão do aborto, parece um tanto inadmissível que o legislador penal brasileiro venha a ignorar solenemente a autonomia reprodutiva da mulher ao penalizar a prática abortiva. Salienta-se que o atual código penal brasileiro surgiu no início da década de 40, século passado, e sendo mantido até hoje, com as devidas exceções já mencionadas, porém, ferindo diversos valores e princípios constitucionais, não sendo compreendido a falta de manutenção legislativa em pleno século XXI, em um cenário axiológico absolutamente diverso.
Em busca da resolução desta problemática, faz-se essencial que, primeiramente, seja descriminalizado o abortamento voluntário; devendo, ainda, o Estado promover educação sexual e reprodutiva nas escolas, de forma ampla em todos os meios de comunicação social, bem como que seja abordada a questão do planejamento familiar, além da divulgação dos métodos contraceptivos existentes, sendo estes fornecidos de forma gratuita a toda população.
Um ponto também relevante para a resolução deste fenômeno, seria adotar as soluções semelhantes às quais países europeus adotaram, como a legalização do abortamento voluntário até o primeiro trimestre da gestação concomitantemente implantando os programas supracitados. Pode-se analisar que em todos os países ao redor do mundo após da descriminalização da interrupção da gravidez voluntária, os índices de aborto diminuem drasticamente, sendo praticamente nulos os riscos e complicações em decorrência deste feito.
Outrossim, deve-se assegurar a laicidade do Estado, visando a garantia dos valores constitucionais, afastando toda e qualquer argumentação de cunho religioso que tenta de forma infrutífera atribuir à vida uma supremacia da qual não encontra respaldo constitucional. No que concerne a religiosidade, esta deve ser realocada para a esfera privada de cada mulher, que considerará de forma íntima suas crenças e aplicar a si mesma, cabendo esta decidir o que fazer do próprio corpo.
Deve-se permanecer a luta para que haja a redução da mortalidade e morbidade materna e pelo avanço das leis que possam consolidar a democracia, sendo deixado o exercício religioso para a individualidade.
O presente trabalho permite inferir que a criminalização do aborto não se configura em solução para nenhum dos problemas que circundam a prática, porém, descriminalizá-lo implicaria diretamente no esgotamento das incontáveis mortes de mulheres que buscam clínicas e métodos clandestinos.
Concluo nas célebres palavras do Dr. Jefferson Drezett, Coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington: “Existe uma forte relação entre proibir aborto e matar mulheres. A lei não é eficaz em proibir abortos, mas é muito eficaz em matar mulheres”.[39]
[1] CREMESP. Segredo médico diante de uma situação de aborto: Consulta nº 24.292/00. São Paulo, 2000. Disponível em . Acesso em: 05 set. 2020.
[2] BRASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2020
[3] MUTO, Eliza; NARLOCH, Leandro. Quando a vida começa?. Super Interessante, [s.l.], 1 dez. 2016. Disponível em: < https://super.abril.com.br/ciencia/vida-o-primeiro-instante/>. Acesso em: 27 set. 2020.
[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003. v.2 p. 146.
[5] TEODORO, Frediano José. Momesso. Aborto eugênico: delito qualificado pelo preconceito ou discriminação. Curitiba: Juruá, 2007, p. 10.
[6] PRADO, Danda. O que é o aborto?, São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 36.
[7] O aborto e os diretos humanos das mulheres. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2020.
[8] PARKER, Richard. (Org). Sexualidades pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; São Paulo: Editora 34, 1999, p. 21.
[9] Direitos sexuais e reprodutivos: percepção dos profissionais da atenção primária em saúde. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2020.
[10] REPORT of the International Conference of Population and Development, Cairo. Nova York: Nações Unidas, 1995. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2020.
[11] REPORT of the Fourth World Conference of Women, Beijing. Nova York: Nações Unidas 1996. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2020.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus n. 124.306 Rio de Janeiro. Impetrante: Jair Leite Pereira. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, 2016. Voto Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2020.
[13] BRASIL, op. cit., Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2020.
[14] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 set. 2020.
[15] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Do direito público subjetivo à saúde: conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783 Acesso em 20 set. 2020.
[16] ORDACGY, André da Silva. A tutela de direito de saúde como um direito fundamental do cidadão. [s.l.: s.d.]. Disponível em http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_saude_andre.pdf Acesso em: 20 set. 2020.
[17] RISI, Erica Erthal. Aborto no Brasil: Tendências e estimativas entre 2000 e 2010. [São Paulo]: [s.n.], [2010]. E-book. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2020.
[18] DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, 2017, p. 653–660.
[19] XAVIER, Alcilene Cavalcante Dulce. Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo direito de decidir, 2006. E-book. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2020.
[20] ROCHA, Regina Maria. Aborto no Brasil e países do Cone Sul: panorama da situação e dos estudos acadêmicos. Núcleo de Estudos de População – Nepo, Unicamp. Campinas: [s.n.], 2009. p.176-205.
[21] ABORTO é um dos principais causadores de mortes maternas no Brasil. Câmara dos Deputados, [s.l.], 25 nov. 2014. Seção TV. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2020.
[22] EMMERICK, Rulian. Corpo e Poder: Um Olhar Sobre o Aborto à Luz dos Direitos Humanos e da Democracia. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
[23] DIP, Andrea. Mulheres clandestinas. Vermelho, [s.l], 20 set. 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2020.
[24] BRASIL, op. cit., Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2020.
[25] MORAIS, Lorena Ribeiro de. A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da mulher, Brasília, mai. 2008. Disponível em . Acesso em 20 set. 2020
[26] AUN, Heloisa. 8 dados chocantes sobre o aborto no Brasil que você precisa saber. Catraca Livre. 11 nov. 2018. Seção Cidadania. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/8-dados-chocantes-sobre-o-aborto-no-brasil-que-voce-precisa-saber/. Acesso em 18 set. 2020.
[27] MORAIS, op. cit.. Disponível em < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/131831/legisla%C3%A7%C3%A3o_aborto_impacto.pdf?sequence=6>. Acesso em 20 set. 2020
[28] XAVIER, op. cit., Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2020.
[29] XAVIER, op. cit., Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2020.
[30] SILVA, Viviane F. Montezi da. Precisamos falar sobre o aborto. Formulários Google, [s.l.], 17 set. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2020
[31] OGLOBO: Menina de 10 anos precisou sair do ES para fazer aborto. [s.l]: Globo, 20 ago. 2020. Seção Sociedade. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2020.
[32] UOL: Quem é o médico que desafia sociedade e religião por aborto seguro em PE. [s.l]: Uol Universe, 20 ago. 2020. Seção: Notícias. Disponível em: < https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/20/quem-e-o-medico-que-desafia-sociedade-e-religiao-por-aborto-seguro-em-pe.htm/>. Acesso em: 03 out. 2020.
[33] BRASIL: aborto clandestino é a quinta causa de morte materna. [s.l]: Esquerda.net, 28 set. 2013. Seção Internacional. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2020.
[34] EMMERICK, op. cit., p. 153-154.
[35] EMMERICK, op. cit., p. 155.
[36] EMMERICK, op. cit., p. 157-158.
[37] EMMERICK, op. cit., p. 162.
[38] EMMERICK, op. cit., p. 158.
[39] KIST, Bruno Vaianode Crisine. Falamos com o médico que fez mais de 600 interrupções legais de gravidez. Revista Galileu, São Paulo, 18 mai. 2016. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2020.
Artigo Científico Jurídico apresentado à Universidade Estácio de Sá, Curso de Direito, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso. Por: Viviane Ferreira Montezi da Silva
Publicado por: VIVIANE FERREIRA MONTEZI DA SILVA
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.