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A Flexibilização Trabalhista Ante o Princípio da Proteção ao Trabalhador

O papel e a responsabilidade do Estado em equalizar a relação de trabalho iníqua e regular a flexibilização trabalhista ante o princípio da proteção ao trabalhador.

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RESUMO:

As crises econômicas são fenômenos cíclicos, reflexos do sistema econômico global.  Paralelamente a sua emersão, ressurge em pauta a questão da flexibilização das condições de trabalho e, consequente, altercações quanto aos seus limites. Historicamente, o trabalhador foi exposto a condições aviltantes pelos âmagos do capitalismo selvagem, em que se visavam exclusivamente os lucros. O homem era visto apenas como meio, não como fim em si. No decorrer dos séculos, com a luta das classes obreiras, exigiu-se do Estado uma postura intervencioprotecionista, que engendrou uma gama de direitos fundamentais aos trabalhadores - hipossuficientes no pacto laboral. A evolução do Direito do Trabalho concebeu o Principio da Proteção ao Trabalhador, arcabouço deste ramo do Direito, que tem por premissa básica equalizar essa relação iníqua. Movimentos como o neoliberalismo têm rechaçado tal postura tutelar do Estado, pleiteando a sua não intervenção nas relações privadas - que de forma equivocada - responsabiliza o Direito do Trabalho como fomentador do decaimento econômico. Aquiescer com tal idiossincrasia é retroceder na história, abandonar direitos que foram tão arduamente conquistados pelos trabalhadores. A flexibilização, desde que de forma efêmera e justificada, é de fato conveniente, porém, necessário se faz muita cautela para sua consumação.

Palavras-chave: Flexibilização, Princípio da Proteção ao Trabalhador, desregulamentação, crise econômica, intervencionismo estatal, Welfare State.

INTRODUÇÃO: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DO TRABALHO PAUTADO NA FLEXIBILIZAÇÃO TABALHISTA

O Direito do Trabalho tem como arcabouço a proteção ao trabalhador, diretriz fundante deste ramo do direito. É cediço que empregado e empregador, partes da relação de trabalho, não estão posicionados de forma equânime no pacto laboral, o que inviabiliza a negociação justa e paritária das cláusulas contratuais. O empregado, parte economicamente mais fraca, está premido a submeter-se a condições abusivas de superexploração e violação de garantias fundamentais a fim de salvaguardar sua subsistência. Conjuntura que requer a intervenção do Estado para imposição de regras mínimas voltadas a equalizar esta relação iníqua, na qual se almeja a igualdade substancial e convalidação da dignidade da pessoa humana. Axioma que consubstancia o Princípio da Proteção ao Trabalhador:

O Princípio da proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador. Enquanto no direito comum uma constante preocupação parece assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito do Trabalho a preocupação central aprece ser a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes.[1]

A máxima aristotélica de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam” nem sempre imperou nas relações de trabalho. A intervenção estatal foi conquistada pelos trabalhadores com o decorrer da história, após períodos de vasta tribulação de direitos. Durante séculos vigorou a autonomia da vontade das partes e, consequentemente, a vontade da parte mais forte, o empregador. O Estado se portava de forma absenteísta, inspirado nos princípios do laisser faire, laisser passer, de que o contratado era o justo.

Nesse sentindo, Camino leciona:

No falso pressuposto da igualdade entre os homens e consequentemente liberdade para contratar, os trabalhadores foram explorados à exaustão e submetidos à condição aviltante. A desigualdade econômica, ignorada pelo Estado absenteísta, inspirada nos princípios do laisser faire, laisser passer, do “o que é contratual é justo” gerou situação de miséria sem precedentes para a classe operária que, explorada e faminta, iniciou movimento ascendente de grandes proporções, impulsionada pelo sentimento de solidariedade que é próprio dos oprimidos.[2]

O absenteísmo do Estado e a ausência de normas trabalhistas logrou espaço à superexploração do homem, onde se atendiam apenas os âmagos dos economicamente fortes. No capitalismo selvagem visava-se única e exclusivamente o lucro. A classe operária era submetida a jornadas exaustivas, péssimas condições de trabalho, subempregos, miserabilidade e desguarnecia de quaisquer perspectivas de melhoras. O homem era tratado como um meio, não como um fim.

Immanuel Kant em valorosa lição disciplina que: “Os seres racionais estão todos sujeitos à lei, em virtude da qual cada um deles nunca deve tratar-se a si e aos outros como puros meios, mas sempre e simultaneamente como fins em si.”[3]

Ao versar sobre a imposição do “direito do mais forte”, Rousseau afirmava que era impossível se falar em direito, pois a autoridade não advinda da força, mas sim da adequação proporcional aos anseios dos homens. Tais buscas premiam por um pacto social, que ao abrirem mão de sua autonomia, depositariam o ônus de regular a vida em sociedade a um ente fictício, o Estado.

O mais forte nunca o é bastante para ser sempre amo, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. (...) A força é um poder físico; não vejo que moralidade pode resultar dos seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade, é, entretanto, um ato de prudência. (...) Convenhamos, pois, em que a força não constitui um direito e que não somos obrigados senão aos poderes legítimos. (...) No Estado onde vigora o “direito do mais forte”, o homem não tem certeza do presente, quiçá perspectivas para o futuro. Não há regras, não há limites e não há segurança. Manda quem “pode mais”, se sujeita quem “podem menos”. Em síntese, o homem, a despeito de sua racionalidade (dignidade), está à própria sorte, dependendo unicamente de suas aptidões pessoais.[4]

Com a massificação do trabalho, sobretudo após a migração dos trabalhadores camponeses para as grandes produções industriais nos centros urbanos, houve a percepção que coletivamente estes detinham mais poderes do que individualizados. Contexto que eclodiu diversas manifestações. A classe obreira uniu forças para enfrentar os abusos cometidos pelos empregadores. Buscaram-se melhores condições de trabalho e exigiu do Estado uma postura intervencionista, compreendida na concepção do dever estatal de proteção dos seus.

Nessa acepção, disserta o saudoso jurista Segadas Vianna:

Cabe neste caso ao Estado intervir para proteger os fracos. O dever que cada particular não cumpre em relação ao próximo, e a que, em todo o caso, a lei não pode obriga-lo, pertence ao Estado cumpri-lo em nome de todos e, quando passa a ser um dever do Estado, torna-se um direito para quem se beneficia dele.[5]

Notórios avanços foram obtidos por meio de movimentos operários, em especial aqueles ocorridos em meados do século XIX, momento de surgimento do Direito do Trabalho. Ocasião que se conferiu o caráter público às relações de esfera privada num modelo que preconizava a separação entre Estado e sociedade. A partir de então desenvolveu-se o Welfare State, o qual exigia a intervenção estatal nas relações contratuais para tutelar a parte hipossuficiente. Protegia, assim, os trabalhadores das leis de mercado, impulsionado por pressões da sociedade operária, relações internacionais e Igreja.[6]

Importante destacar que o Direito do Trabalho foi o primeiro ramo a estabelecer normas de ordem pública, ou seja, aquelas de caráter cogente, irrenunciáveis. As vantagens no plano jurídico compensam a inferioridade fática presente nos contratos de trabalho. Por estas se objetiva a proteção dos empregados contra a força econômica do empregador, garantindo, sobretudo, a dignidade aos trabalhadores.[7]

(...) a dignidade humana, numa visão, não comporta escalas ou patamares, já que são, muito embora os homens sejam, de fato, materialmente desiguais, no plano da sua dignidade não o são. Então, a dignidade não pode ser vista como uma concessão, uma tolerância de uma pessoa para com outra, mas sim como um elemento presente em todas as pessoas, que as tornam destinatárias de igual respeito.[8]

Nesta linha, a da ideologia da valoração do trabalho e da dignidade da pessoa humana, o filósofo Friedrich W. Nietsche, em um de seus mais notórios ensinamentos, preconizou o brocardo de que a “profissão era a espinha dorsal da vida”.[9] Em preceito semelhante, ressaltam-se as famigeradas palavras do mestre Rui Barbosa:

O trabalho não é castigo: é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do trabalho é bom. Tudo o que se amontoa pelo trabalho é justo. Tudo que o que se assenta no trabalho é útil. Por isso, a riqueza, por isso, o capital que emanam do trabalho são, como ele providenciais; como ele necessários, benfazejos como ele. Mas, já que do capital e da riqueza é manancial o trabalho, ao trabalho cabe a primazia incontestável sobra a riqueza e o capital.[10]

Pautados nos ideais do Welfare State, o estado do bem estar social, houve vasta gama legislativa à proteção dos trabalhadores. Em especial, a partir de movimentos sociais como a Revolução Industrial, o Ludismo[11] e o Cartismo[12], em que se culminou a consciência coletiva da classe operária (germinação das entidades sindicais). Nesta época surgiram importantes documentos em defesa dos trabalhadores, como o Peel’s Act (1802), o Bill Alberdeen (1845), o Manifesto Comunista (1848) e a Encíclica Rerum Novarum (1891).

Por conseguinte, no período pós Primeira Guerra Mundial foi criada a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (1919), organismo voltado à defesa dos trabalhadores. Outrossim, elevou-se os direitos trabalhistas a nível constitucional; primeiramente no México em 1917 e posteriormente pela antiga República de Weimar em 1919. No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a tratar expressamente sobre o Direito do Trabalho.

A respeito da positivação do direito em nível constitucional destaca-se as lições de Wagner Balera:

O direito constitucional positivo é a expressão máxima dos valores considerados importantes, defensáveis e indispensáveis para a vida e o desenvolvimento da sociedade.[13]

Hodiernamente, há um vasto rol de direitos trabalhistas. No Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) compilou a legislação trabalhista vigente à época (1943). Ademais, foram elaboradas diversas leis sobre o tema, tais como a LC n° 150/2015 (domésticos), a Lei n° 5.889/1973 (rural), a Lei n° 6.019/1974 (temporário), a Lei n° 7.703/1989 (greve), entre outras. Por conseguinte, o tratamento constitucional foi mantido e aprimorado pela Constituição Federal de 1988, em especial, em seu capítulo II.  

Destarte, é saliente a evolução das relações trabalhistas. Em um primeiro momento era sobrepujada a autonomia da vontade das partes e a não intervenção estatal nas relações privadas. As reivindicações dos obreiros, a intervenção do Estado, a regulamentação de leis trabalhistas e a primazia da dignidade da pessoa humana esvaíram a postura absenteísta do Estado. Evolução que deu origem a era da publicização dos direitos e do bem estar social, em que são garantidos uma gama de direitos fundamentais mínimos aos trabalhadores.

A respeito, Vólia Bomfim Cassar, disciplina a matéria com maestria:

O direito do trabalho reflete todo o pioneirismo do papel ativo do Estado priorizando o bem-estar social dos trabalhadores, intervindo nas relações privadas para pacificação das lutas de classes, tornando um direito, até então privado e individualista, em um direito voltado para o bem-estar social mínimo garantido aos trabalhadores, já que impõem regras básicas para o contrato de trabalho, dando uma feição de direito público a um direito privado, daí a publicização do direito. (...) A garantia de direitos mínimos ao trabalhador faz parte de um conjunto de valores humanos civilizatórios (mínimo existencial), que encontra respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana previsto constitucionalmente como maior patrimônio da humanidade.[14]

Têm sido crescentes movimentos que refutam o grande contingente tutelar das normas trabalhistas, sobretudo, a intervenção estatal na esfera privada (paternalismo estatal). Dentre estes, destaca-se o neoliberalismo[15]. Por esta ideologia entende-se que os trabalhadores estão maduros e amparados o suficiente para negociarem diretamente com o empregador, inexistindo a premissa que amparava o Welfare State. O seu condão principal é a reestruturação das “inflexíveis” normas trabalhistas e primazia do negociado em detrimento do legislado.

De forma ainda mais rígida, há movimentos que apontam para a total “desregulamentação[16]”, isto é, ausência total de normas trabalhistas e adoção das regras de livre mercado.

Tempos de crise econômica são, via de regra, momentos de extenuação de direitos trabalhistas. O trabalhador, hipossuficiente, é o maior afetado por tal conjuntura, submetendo-se a condições desfavoráveis, subempregos, temores e, até mesmo, desemprego.

Todavia, mesmo que indiretamente, os trabalhadores acabam atingidos pelo empreendimento enfermo, sendo colocada em xeque a sua fonte de subsistência. Posto isto, o que se vislumbra como vantagem para ambas as partes é a manutenção da saúde da empresa. Porquanto, faz-se necessário a busca por um instrumento que viabilize o equilíbrio entre interesses a priori distintos; lucro do empregador versus melhores condições de vida do empregado; que a posteriori, revelam-se convergentes; a manutenção da empresa e fonte de emprego.

Impulsionada pela globalização e as políticas do neoliberalismo, surge a “flexibilização”. Ideologia que pretende suprimir ou relativizar as normas jurídicas que garantem a proteção do empregado na relação contratual. Tal prática pauta-se em baratear a mão-de-obra e o custo da produção, com objetivo de aumentar a competitividade e direcionar o Estado à retomada do crescimento econômico.

Catharino ressalta importantes ensinamentos sobre a flexibilização:

Tratando-se de um fenômeno recente (começado na década de 80), e estando em expansão, ainda é muito difícil defini-lo, tanto que Eduardo J. Ameglio preferiu falar da ‘ideia de flexibilidade’. Entretanto, admite para dar conteúdo jurídico ‘a esta ideia’, valer-se da opinião de autores espanhóis que consideraram ser ‘a flexibilidade’, basicamente, capacidade de adaptação do regime normativo e do das instituições à vontade unilateral ou bilateral das partes da relação de trabalho. Mais ainda, considera que ‘a flexibilidade significa fundamentalmente adequação da normativa laboral e concomitantemente uma diversificação dos níveis de proteção que brinda a seguridade social’.[17]

Vale ressaltar que flexível é o que não é rígido, aquilo que se adapta ao meio no qual subsiste. Flexibilizar para o direito do trabalho é diminuir a rigidez de algumas normas por meio de negociação coletiva ou até mesmo por condições dispostas na própria lei. Para tal instituto, prioriza-se o negociado em detrimento do legislado.

A exemplo de flexibilização é possível citar diversos dispositivos, dentre os quais alguns estão expressos no próprio texto constitucional, como o art. 7°, VI, XIII e XIV da CF, por dispositivo infraconstitucional, a Lei 13.189/2015 - que institui o Programa de Proteção ao Emprego (PPE) - até mesmo inserções na Consolidação das Leis do Trabalho, conforme preceitua o art. 58-A, §2° da CLT, que possibilitou a adoção da jornada por tempo parcial em contratos já vigentes e, ainda, a contenda denúncia da Convenção 158 da OIT. Atualmente, discutem-se três propostas de flexibilização das condições de trabalho no país; a ampliação das possibilidades de negociação entre empregados e empregadores; tornar permanente o Programa de Proteção ao Emprego - PPE; e a ampliação das hipóteses de terceirização.

Em síntese, a flexibilização de direitos trabalhistas consiste em um conjunto de mecanismos e medidas destinados a compatibilizar as mutações decorrentes dos fatores de ordem econômica, tecnológicas ou diversas ao contrato de trabalho. É mais interessante ao empregado, desde que de forma efêmera e justificada, flexibilizar alguns direitos, do que perder efetivamente seu emprego. Evidente que para aplicação de tal instituto sejam utilizados critérios como a proporcionalidade, razoabilidade, adequação e, sobretudo, excepcionalidade. Evitando assim, retroceder ao status quo ante, no qual prevalecia a autonomia da “vontade das partes” e o absenteísmo estatal. Ambiente propício a abusos de direito e violação da dignidade da pessoa humana.

O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO TRABALHADOR COMO LIMITE À FLEXIBILIZAÇÃO

Ante as considerações precípuas, a flexibilização denota-se como eficaz instituto para defrontar cenários de declínio econômico e revela-se, ainda, como fonte de interesse mútuo entre as partes da relação empregatícia. Todavia, esta prerrogativa do empregador não é ilimitada, e tais restrições divergem entre os estudiosos do Direito do Trabalho, sobretudo perante o princípio da proteção ao trabalhador e seus subprincípios; da norma mais favorável, da condição mais benéfica e in dubio pro operario.

Em contrapartida, a Magna Carta brasileira possibilitou expressamente, em seu artigo 7°, incisos VI, XIII e XIV[18], a flexibilização de direitos trabalhistas no exercício da autonomia privada coletiva. Tratam-se de hipóteses constitucionais de alteração in pejus do contato de trabalho. Outrora, a negociação coletiva visava apenas à melhoria das condições de trabalho. Isto ilustra o brocardo que não há direito fundamental absoluto, tampouco a máxima da proteção ao trabalhador. Exegese que se refere a uma via de mão dupla, em que há limitação tanto à flexibilização como ao Princípio da Proteção ao Trabalhador.

No Brasil há duas espécies de flexibilização. A legal, que preceitua seus limites por disposição expressa da lei - aquiescência do Estado e empregador, sem atuação obreira – verbi gratia o PL 4330, que almeja viabilizar a terceirização em atividades fins da empresa. E a sindical, que é realizada por meio de negociação coletiva entre os entes sindicais – anseio mútuo entre empregados e empregadores.[19]

Uma das formas de ajuste das normas jurídicas à realidade social é através da negociação coletiva que é a expressão do Estado Democrático de Direito, enquanto meio de diálogo entre os grupos sociais. É um instrumento que procura manter a estabilidade nas relações entre os trabalhadores e empregadores, desempenhando uma função econômica de distribuição de riquezas, em que os sindicatos dos trabalhadores participam das decisões empresariais, permitindo a harmonização do ambiente de trabalho. (...) A negociação coletiva, até 1988, procurava conseguir melhores condições de trabalho ao empregado, mas após 1988 o exercício da autonomia privada coletiva também pode ser utilizado para flexibilizar in pejus os direitos, objetivando ajustar as normas jurídicas à realidade da sociedade capitalista, que se vincula, principalmente, ao desemprego. A flexibilização permite à empresa ajustar-se às flutuações econômicas.[20]

 A negociação coletiva é essencialmente transacional, ou seja, por meio dela transacionam-se, mas não se renunciam a direitos. O aplicador da lei deve examinar as possibilidades jurídicas e os elementos fáticos do caso concreto. Flexibilizar sem a devida premência configura ato ilícito na modalidade de abuso de direito (art. 187 do CC), o que enseja a nulidade absoluta do ato praticado, conforme disposto no art. 9° da CLT [21].

Empreender tal aferição é árd­ua tarefa, que poderá ser atenuada pela utilização de métodos hermenêuticos pautados em características próprias dos direitos fundamentais, como a cedência recíproca - que busca a coexistência entre normas fundamentais conflitantes - e a sistematicidade – que traduz a coerência sistêmica do ordenamento jurídico, sem que tais normas se excluam, já que integram um único sistema. Destarte, para consumar tais medidas aplica-se o princípio da proporcionalidade e seus subprincípios; adequação, necessidade/utilidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação visa aferir se a medida é adequada ao que se destina, a necessidade/utilidade coteja se a medida será eficaz lesionando o mínimo possível o direito contraposto e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito pondera se ao final ganhou-se mais que perdeu em matéria de fundamentalidade de direitos.

Nesse sentido, Luiz Carlos Amorim Robortella, ao buscar compatibilizar a flexibilização com o princípio tuitivo deduz da seguinte forma:

A problemática da compatibilização da flexibilidade com o princípio clássico da proteção e da imperatividade das normas laborais, que é a própria razão histórica e filosófica da existência do direito do trabalho como ciência autônoma, pode ser resolvida através da evolução interpretativa e da ampliação das categorias jurídicas.[22]

Arnaldo Süssekind elucida que os defensores do Welfare State admitem a redução do grau de intervenção, desde que os sistemas se constituam de regras gerais indisponíveis, na qual se estabeleça um nicho mínimo de proteção ao trabalhador pautado em sua dignidade humana. Acrescenta ainda, que a flexibilização deve ser realizada por meio de negociação coletiva e que tenha por objetivo atender as peculiaridades regionais, empresariais e profissionais, visando à preservação da saúde econômica da empresa e de seus empregados.[23]

Para Sérgio Pinto Martins, os limites à flexibilização das condições de trabalho podem ser analisados conforme sua admissibilidade. Admissíveis são os utilizados apenas em épocas de crise econômica, por prazo determinado, com o intuito de salvaguardar a continuidade da empresa, materializados por negociação coletiva e que se respeitem os ditames constitucionais e legais. Os inadmissíveis são os que ambicionam aumentar lucros da empresa, suprimir direitos trabalhistas garantidos por normas de ordem pública e que violem políticas econômicas do Estado. O autor argumenta que o instituto importa sacrifícios ao Estado, com perda na arrecadação de contribuições sociais; empregador, com a diminuição de lucros, mas consequente manutenção dos postos de trabalho; e empregado, com perda temporária de certos direitos, mas viabilidade de se manter empregado.[24]

Em interpretação restritiva à flexibilização de direitos trabalhistas, Maurício Godinho Delgado observa a existência de duas categorias distintas de direitos, os de indisponibilidade relativa e os de indisponibilidade absoluta. O autor elucida que apenas os primeiros poderiam ser transacionados. Quanto aos de indisponibilidade absoluta, estes estabeleceriam um patamar mínimo civilizatório de direitos intransigíveis. Tal preceito tem fundamento no princípio da adequação setorial negociada.[25]

Os direitos de indisponibilidade relativa são passíveis de transação, ou, para alguns autores, até mesmo de renúncia. Estes ostentam caráter privado, envolvendo interesses particulares das partes, suscetíveis de atribuição econômica. Em contrapartida, os de indisponibilidade absoluta concernem direitos indisponíveis, constituído por normas cogentes, independentemente da vontade das partes.

Conforme deduz Godinho, o patamar mínimo civilizatório é formado por três grupos convergentes de normas trabalhistas heterônomas; “as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: art. 7°, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5°, § 2°, CF/88, já expressamente um patamar mínimo civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança do trabalho, normas concernentes a bases salariais, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios e etc.)”.[26]

Arion Sayão Romita caracteriza os direitos de indisponibilidade relativa e absoluta de forma diversa:

Não é correta, contudo, a assertiva de que os direitos trabalhistas – do trabalhador individualmente considerado – sejam indisponíveis. O que a Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 9°, declara é que são nulos os atos tendentes a desvirtuar, fraudar ou impedir a aplicação das normas de proteção ao trabalho. Nenhum preceito legal estabelece, de antemão, a indisponibilidade dos direitos do trabalhador. (...) É que os direitos do trabalhador admitem uma divisão: direitos absolutamente indisponíveis e os direitos relativamente disponíveis. O art. 9° da CLT não declara indisponíveis os direitos do trabalhador, apenas priva de eficácia o ato do empregador tendente a inviabilizar o gozo dos direitos assegurados por lei ao trabalhador. (...) São absolutamente indisponíveis os direitos de personalidade do trabalhador: honra, intimidade, segurança, vida privada, imagem. Os direitos patrimoniais são plenamente disponíveis, após o término da relação de emprego e apenas relativamente indisponíveis durante a vigência do contrato.[27]

Vólia Bomfim Cassar, de forma ainda mais restrita, entende que as normas que contemplam direito são sempre indisponíveis, portanto insuscetíveis de renúncia ou transação. Somente a lei poderá criar exceções à regra e, ainda assim, de forma absolutamente limitada – como nos casos de normas autônomas – e, desde que, seja comprovada a finalidade de recuperar a saúde econômica da empresa e não acarretar prejuízos aos trabalhadores, consoante ao princípio constitucional da prevalência da norma mais favorável.[28]

Em preceito semelhante, disciplina Vecchi:

Conforme já assinalado, o art. 7°, caput, da CF de 1988 é explícito em fixar que os direitos ali previstos são mínimos, impondo como somente possível, legitimamente, a previsão de outros direitos que venham a melhorar a condição de vida dos trabalhadores, ficando reforçado o princípio da proibição do retrocesso social. Ora, a cláusula de proibição de retrocesso social, somada à positivação do princípio da norma mais favorável, é uma clara demonstração do sentido que se deu aos direitos fundamentais dos trabalhadores, não cabendo ao legislador infraconstitucional alterar tal direção.[29]

Há posicionamento jurisprudencial na acepção de assentir a flexibilização de quaisquer direitos. A julgar pela autorização expressa dada pela Constituição Federal quanto à possibilidade de redução salarial (art. 7°, VI, CF/88), que, em tese, seria o maior direito dos trabalhadores, devido à sua natureza alimentar. O entendimento é no sentido de que “se pode o mais pode o menos”. Todavia, para tanto, parte da jurisprudência exige concessões recíprocas, consubstanciada pela teoria da conglobalização dos pactos coletivos.

Na Europa, um novo modelo social tem se destacado, a flexissegurança. Surgida na Holanda e desenvolvida em países como Dinamarca e Suécia, este modelo híbrido preconiza a redução de conflitos entre o protecionismo estatal e a flexibilização de normas trabalhistas. Objetiva-se harmonizar o instituto com o princípio da proteção ao trabalhador, buscando um mercado de trabalho flexível, políticas ativas de mercado, processo de recolocação no emprego (outplacement) e sistema indenizatório vantajoso aos empregados. Tal sistemática é viável apenas em países pequenos, com baixa desigualdade social, o que não é o caso do Brasil.[30]

Ante o exposto, afere-se que é muito complexo delimitar parâmetros à flexibilização de direitos trabalhistas. O que é cediço é que deve se realizar por meio de negociação coletiva ou por disposição legal e, desde que, realizada de forma efêmera e justificada. Todavia, há vasta divergência doutrinária e jurisprudencial a respeito, com teorias e modelos em diversos sentidos. Devendo-se priorizar as raízes fundantes do Direito do Trabalho, o princípio da proteção ao trabalhador e a preservação da dignidade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que a flexibilização das condições de trabalho é um instituto complexo, visto para uns como o algoz do Direito do Trabalho e para outros como o salvador. Na verdade, não se trata de nenhuma dessas hipóteses. É um instrumento de harmonização entre o econômico e o social. As crises econômicas são cíclicas, por tal notável premissa, o país necessita estar munido de uma legislação pontual e efetiva, com parâmetros cristalinos para defrontar tais reiteradas conjunturas.

O Direito do Trabalho não pode dar-se ao luxo de se tornar estático, pois a sua inadaptabilidade acarreta o ancilosamento das normas e consequente desprestigio. Inobstante, isso não autoriza a desregulamentação das regras trabalhistas, sequer seu enrijecimento desmedido de forma a torná-las impraticáveis. A aspiração é pelo desenvolvimento econômico com justiça social, a busca pelo bem comum. A flexibilização deve ter sempre como essência o interesse convergente das partes do pacto laboral.

Por fim, enfatiza-se que o Direito do Trabalho prega, sobretudo, a promoção à dignidade dos trabalhadores como dever do Estado, de forma que se evitem os efeitos precarizantes da flexibilização - atribuição que lhe foi designada pelo povo, que individualmente não tem a mesma paridade de força que as classes econômicas. A Proteção ao Trabalhador possui o axioma básico de que o homem é um fim em si mesmo, e não mero meio. Contrariar tal idiossincrasia é retroceder na história da humanidade ludibriado pela falsa percepção das ideias neoliberais, que o Direito do Trabalho é culpado pela crise econômica. É pôr na conta da classe obreira uma dívida que não é sua, e, que, tampouco, contribuiu para tanto.

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[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1964. p. 91.
[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques, O contrato social. Tradução de Antonio P. Machado. 19° ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 28-29.
[5] VIANNA, Segadas. O regime democrático e o direito civil moderno; Instituições do Direito do Trabalho V. I. São Paulo: 1937. p. 41.
[6] CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 10 ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p.  21-22.
[7] GOLDSCHMIDT, Rodrigo. Flexibilização dos Direitos Trabalhistas: Ações afirmativas da dignidade da pessoa humana como forma de resistência. São Paulo: LTr, 2009. p. 13.
[8] Idem, p. 55.
[9] NIETSCHE, Friedrich W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Schwarcz Ltda. 2000. p. 166.
[10] A questão social e política do Brasil. Conferência Pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 20/03/1919. Rio de Janeiro, 1919.  p. 11.
[11] Movimento de trabalhadores que repudiavam a automação do trabalho gerada pela Revolução Industrial, a qual culpavam pelas péssimas condições de vida à época.
[12] Expressão que faz referência a “Carta do Povo”, documento que reivindicava direitos à classe proletariada.
[13] BALERA, Wagner. O valor social do trabalho - Revista LTr, v 58. São Paulo: LTr, 1994. p. 1167.
[14] CASSAR, op.cit. 2014. p. 26.
[15] “ (...) segundo os economistas neoliberais, a modernização e o desenvolvimento econômico dos países dependem apenas da capacidade dos governos de reformarem as estruturas econômicas de seus países com vistas a adaptá-los ao mundo globalizado, ou seja, é imprescindível realizar as seguintes reformas econômicas: abrir a economia à concorrência internacional, propiciar ampla liberdade de movimento ao capital, desregulamentar os mercados internos, em especial o mercado de trabalho, e realizar uma ampla privatização das empresas estatais. Em outras palavras, as reformas econômicas devem ser feitas de forma a permitir a maior liberdade possível ao capital em sua busca do lucro máximo. Se isso for feito, o resultado será o de elevar o crescimento econômico, reduzir o desemprego, eliminar os desequilíbrios no comércio internacional, estabilizar os preços e o próprio sistema econômico – ou seja, criaremos as condições básicas para termos uma economia próspera e eficiente”. MALDONADO FILHO, Eduardo. Globalização e neoliberalismo: o surgimento do novo ou a volta ao passado? In: CARRION, Raul K. M.; VIZENTINI, Paulo G. Fagundes (Org.). Globalização, neoliberalismo, privatizações: quem decide este jogo? 2. ed. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1998, p. 23.
[16] “(...) a desregulamentação do Direito do Trabalho, que alguns autores considera uma das formas de flexibilização, com esta não se confunde. A desregulamentação retira a proteção do Estado ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva, regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego. Já a flexibilização pressupõe a intervenção estatal, ainda que básica, com normas gerais abaixo das quais não se pode conceber a vida do trabalhador com dignidade. Precisamente porque há leis é que determinados preceitos devem ser flexíveis ou estabelecer fórmulas alternativas para a sua aplicação. SILVA, Reinaldo Pereira e. O mercado de trabalho humano: a globalização econômica, as políticas neoliberais e a flexibilidade dos direitos sociais no Brasil. São Paulo: LTr, 1998. p. 74.
[17] CATHARINO, José Martins. Neoliberalismo e seqüela. São Paulo: LTr, 1997. p. 47.
[18] Art. 7°, CF, incisos VI: irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; XIII: duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV: jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva;
[19] CASSAR, op.cit. 2014 p. 37.
[20] SAEGUSA, Cláudia Zaneti. A flexibilização e os princípios de direito individual e coletivo do trabalho. São Paulo, LTr, 2008. p. 75/76.
[21] Art. 9° CLT: Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
[22] ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O moderno direito do trabalho. São Paulo, LTr, 1994. p. 120.
[23] A Globalização da economia e o confronto entre os neoliberais e os adeptos do estado social. Jornal Trabalhista. Brasília: Consulex, n° 742, 1999. p. 8-9.
[24] MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das condições de trabalho. São Paulo: Atlas, 2004. p. 27-28 e 138.
[25] Pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta). DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2016. p. 1545/1546.
[26] Ibidem. p. 1547.
[27] ROMITA, Arion Sayão. Prefácio contido no livro de SOUZA, Zoraide Amaral. Arbitragem – Conciliação – Mediação nos conflitos coletivos trabalhistas. São Paulo. LTr, 2004. p. 11-12.
[28] CASSAR, op.cit. 2014 p. 39, 208 e 211.
[29] VECCHI, Ipojucan Demétrius. Noções de direito do trabalho: um enfoque constitucional. 2 ed. rev. e ampl. Passo Fundo: UPF, 2007. V 1. p. 47.
[30] GOLDSCHMIDT, op.cit. 2009. p. 145 e 146.


Publicado por: Bruno Petermann Choueiri Bugalho

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