Novo canal do Brasil Escola no
WhatsApp!
Siga agora!
Whatsapp

OS CONFLITOS ENTRE UCRÂNIA E RÚSSIA NO SÉCULO XXI: REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO DA POLÍTICA DE HANNA ARENDT

Análise sobre os conflitos entre Ucrânia e Rússia no século XXI.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

O conflito entre Rússia de Vladimir Putin e Ucrânia de Volodymyr Zelensky, está enquadrado em termos da Segunda Guerra Mundial, como nazistas, genocídio e na tentativa da Ucrânia em juntar-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Para a Rússia a entrada da Ucrânia na Otan é a tentativa dos americanos e de potências europeias em cercar o território russo e isso, configura-se para o governo de Putin, como ameaça a soberania do país, assumindo um discurso ideológico em defesa do povo contra a perseguição e genocídio do regime de Kiev, para isso, usa expressões de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.

Nesse contexto, as questões discutidas por Hannah Arendt (2006), sobre o sentido da política, retomam essas discussões em pleno século XXI, um conflito de grandes proporções levando milhares de civis ao deslocamento em busca de abrigo ou refúgio, sem contar o número de mortes. Em plena crise da Covid-19 a guerra é instaurada. Essas questões ressaltam a discussões de Arendt ao escrever: “As guerras e as revoluções e não funcionar de governos parlamentares e aparatos de partido formam as experiências políticas básicas de nosso século” (p.3).

Retomamos o questionamento de Arendt (2006) “Tem a política algum sentido?” (p.14), as perplexidades vividas no século XX, a Segunda Guerra Mundial que trouxe elementos perduráveis como o genocídio de judeus nos campos de concentração pelo regime nazista, é ressuscitado em pleno século XXI no discurso de Putin contra o governo da Ucrânia. O risco no século passado e uma destruição total, como sentiu Hiroshima e Nagasaki, cidades japonesas, em agosto de 1945, retoma com o perigo, em uma escala global e com maior poder de destruição na guerra travada e nas ameaças não apenas da Rússia, mas da Coréia do Norte, a tentativa de provar sua força em uma situação global que já está instável.

A decisão política em exterminar o próprio homem no mundo, a partir do entendimento que o homem age em um mundo real e são condicionados por esse acondicionamento, toda “a catástrofe ocorrida e ocorrente neste mundo”, reflete e (Co)determina o próprio homem e sua relação com o mundo, assim, uma guerra nuclear que devastaria a humanidade ou quase toda a vida na terra levará o homem a tornar-se “sem mundo”, como os animais, perdendo a capacidade formadora e realizadora do espaço que vive e constrói, segundo os argumentos dispostos por Arendt, o fato de a “política”, observando o cenário atual, levado a desumanização dos indivíduos tem como efeito a possibilidade da humanidade ser extinta e esse resultado está escondido atrás do preconceito na sociedade atual.

Esse preconceito contra a própria política, no argumento de Arendt está na relação, por exemplo, com a invenção da bomba atômica e o medo da humanidade ser varrida da Terra, isso ocorreria por meio da política e os meios de violência que estão à sua disposição. A ameaça presenciada na guerra entre Rússia e Ucrânia reviveu esse medo, a bomba atômica está à serviço do governo russo de Putin e ameaça não apenas a Ucrânia, mas o mundo. O governo russo justifica sua violência contra os ucranianos e a ameaça contra outros países que tentarem ajudar a Ucrânia com o sentido de salvar o povo russo dos genocidas e retoma o nazismo no século XXI e, por outro, o medo do extermínio em massa da humanidade, cria-se a ideia da necessidade de eliminar a política.

São essas questões que nos fazem refletir sobre eliminar a política como forma de autopreservar-se de uma extinção humana, no entanto, essa ideia não seria tão perigosa quanto a própria política? Se pensar que as condições precárias e um povo insatisfeito são causas que fortalecem o sentimento de mudança e produz um discurso de ódio? A partir desse discurso surge o discurso político, ou melhor, ergue-se “o político” como porta-voz do povo e concretiza na figura do homem que salvará a humanidade? Quantas figuras surgiram como defensor do povo e causaram mais destruição?

Esses juízos podem ser tão perigosos? Para Arendt (2006) a política não está na distinção entre governantes e governados e não se caracteriza por violência, mas uma ação conjunta e plural dos homens, se estes juízos que a política deve ser eliminada para a própria sobrevivência da espécie, levaríamos ao erro de não conhecer a verdadeira política, mas confundir-se “aquilo que seria o fim da política com a política em si, e apresentam aquilo que seria uma catástrofe como inerente à própria natureza política e sendo, por conseguinte, inevitável”. Caso esse preconceito contra “a política”, não reconhecendo-a como meio de organizar e regular o convívio de diferentes e não de iguais, seríamos arrastados a omissão e a ineficiência como indivíduos que não se reconhece como sujeito de ação e sujeito histórico e, principalmente, como indivíduos capazes de cessar o curso inevitável dos acontecimentos? Nesse sentido, não está aqui determinado a ineficácia “da política”, mas o interesse “do político”.

Segundo Arendt a “desgraça da política no século XX” (p.4), não pode ser relacionada aos regimes totalitários que suprimiram a liberdade, mas ao surgimento de sistemas políticos. Assim, acomodar-se com o desaparecimento do fascismo e do comunismo, por exemplo, é deixar uma porta aberta para outros sistemas políticos tão perigosos quando o próprio nazismo e, nesse momento da história em pleno século XXI, vivemos um cenário de violência e de restrição da liberdade, utilizando, nesse momento, um discurso ideológico e revivendo antigos fantasmas que estão tão vivos quanto antes.

“Uma vez liberada a cólera, passa a ser possível construir qualquer tipo de operação política. ‘Descubra porque as pessoas estão enraivecidas, diga a elas que a culpa é da Europa, vote e a falaza votar pelo Brexit’[1], foi assim que um dos engenheiros do caos resumiu a estratégia, elementar e terrível, de uma campanha referendária que parecia fadada ao fracasso. ‘Deixe-me ser o porta-voz da sua ira’, foi com essa mensagem que o candidato mais improvável da História tomou a Casa Branca” (EMPOLI, 2020, p. 90).

A insatisfação gera a oportunidade de ascender ao poder o falso “porta voz do povo” e as consequências serem tão perigosas como a formação de um sistema político totalitário. É interessante compreender quando Chauí (2019), que encaixa muito bem nessa discussão sobre a política e a sociedade argumenta:

O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim que pretende dizer. Se o disser, se preencher todas as lacunas, ele se autodestrói como ideologia. A força do discurso ideológico provém de uma lógica que poderíamos chamar de lógica das lacunas, lógica do branco, lógica do silêncio. (p. 127).

A ideologia no discurso que busca legitimar a invasão na Ucrânia baseia-se nas ideias conservadoras e nacionalistas, muito parecida com a “nova direita”, para isso, invoca um discurso conservador, responsabilizando uma “elite global”, emergindo das profundezas do passado o nazismo e o suposto apoio dos ucranianos aos alemães na Segunda Guerra. Pfeifer (2022), no Brasil, não foi diferente, o discurso político-ideológico resgatou nomes como “os comunistas” e a “esquerda comunista”, como forma de resgatar a soberania nacional e o conservadorismo.

Charaudeau (2018), alinhado as ideias de Arendt, argumenta sobre a ação política como forma de organizar a vida social, a obtenção do bem comum, com decisões coletivas, sempre por um “querer viver juntos”, no entanto, se a ação política deve ser coletiva, a instância política, pode apropriar-se e através de uma “dominação legítima”, termo desenvolvido por Weber, que justifica a violência como meio necessário para que os homens dominados se submetam a autoridade. Essa dominação legítima está sendo assistida na guerra travada contra a Ucrânia pela Rússia, mesmo havendo uma série de questões que vão deste a Otan até o envolvimento dos americanos contra a política russa.

É sabido que Arendt é contra a necessidade da violência ao definir o poder político como poder dos cidadãos. Quando Arendt fala da privação do direito de começar algo novo, argumenta “(…) a acusação aniquiladora que ela fez ao totalitarismo tanto de direita como de esquerda; mas também nos supostos sistemas livres espreita o perigo de que a coação (…) e a violência sufoquem o livre agir do homem” (p.5).

Assim, a política discutida por Arendt é a criação do novo, resultado do coletivo, “assumir nos próprios ombros o peso da coisa política (…) o amor ao próximo e não medo dele”, a violência não se justifica como alternativa, mas o amor ao mundo, viver a política como sinônimo de liberdade, de entendimento entre os homens. Como escreveu o poeta inglês John Donne:

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti (JOHN DONNE, Meditações VII).

E cabe a nós como sujeitos históricos recusar o argumento da violência justificada na falácia da segurança de uma nação, do apetite exagerado pelo nacionalismo e do ultraconservadorismo, não se curvar diante da figura do Grande Inquisitor de Dostoyesvski, que retrata a angústia do ser humano face ao livre-arbítrio e o sofrimento, mas encontrar na própria ação humana o amor pelo mundo.

REFERÊNCIA

ARENDT, Hannah. O Que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. 2 ed. 4 reimp. São Paulo|: Contexto, 2018.

CHAUÍ. Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2019.

EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. 3 reimpr. São Paulo: Vestígio. (Espírito do Tempo).

PFEIFER, Hans. Rússia de Putin em guerra ideológica com o Ocidente. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/r%C3%BAssia-de-putin-em-guerra-ideol%C3%B3gica-com-o-ocidente/a-61018740. Acesso em: 07 abr. 2022.

 


[1] Brexit é uma abreviação de British exit, saída britânica, ao falar da decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia.

 

Por Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos

Alexandre Dijan Coqui


Publicado por: Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.