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O crime de bigamia na sociedade moderna

Visão geral sobre o delito de bigamia possibilitando adentrar, na atual conjuntura, em suas especificidades.

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

RESUMO

Este trabalho nos traz uma visão geral sobre o delito de bigamia possibilitando adentrar, na atual conjuntura, em suas especificidades; o que diz a lei, o posicionamento da doutrina majoritária, como tem se posicionado nossos julgadores e alguns julgados, a visão das ciências sociais a respeito do casamento e da família, as mudanças ocorridas com o advento da constituição de 1988, que modificou, pluralizou, democratizou e humanizou a instituição familial, a superação do autoritarismo estatal nesta nova era constitucional onde os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana estão no foco central. Discutimos ainda o processo de esvaziamento que esse tipo penal vem sofrendo quando o confrontamos com a nova concepção de família que a Constituição e o Código Civil vigente nos aponta; é perceptível a contradição que o crime em comento denota ao evocar os princípios norteadores da Lex Mater, principalmente por partimos da premissa de que o Direito Penal deve ser tratado como “ultima ratio”. Por conseguinte a Bigamia, de acordo com a maioria dos doutrinadores o Direito Penal, é de natureza subsidiária, por isto este somente pode punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se. E por fim apresentamos nossas conclusões a respeito do crime de bigamia observando estas transformações sociais, culturais e jurídicas que vem ocorrendo tendente a revogação deste delito como o que aconteceu com o adultério.

PALAVRAS CHAVES: BIGAMIA; ULTIMA RATIO; CRIMINALIZAÇÃO; FAMÍLIA; CASAMENTO; BENS JURÍDICOS; CONSTITUIÇÃO; ESVAZIAMENTO; DIGNIDADE HUMANA.

 

*Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia; Graduando em Direito pela Universidade do Estado da Bahia.

**Licenciado em Letras/Inglês pela Universidade do Estado da Bahia; Pós Graduado em Métodos e Técnicas de Ensino; Pós Graduado em Metodologia do Ensino da Língua Inglesa; Graduando em Direito pela Universidade do Estado da Bahia.

ABSTRACT

This work gives us an overview of the crime of bigamy possible to enter, at this juncture, in their specific; the law says, the majority of the teaching position, has positioned itself as our judges and some tried, the vision of the social sciences about marriage and family, changes with the advent of the 1988 constitution; pluralize, democratize and humanize the familial institution, overcoming the authoritarian state in this new era where the constitutional rights and human dignity are the central focus. We also discuss the process of emptying that such law has been suffering when confronted with the new concept of family that the Civil Code in force points us, it is apparent the contradiction that the crime under discussion indicates when discussing the guiding principles of Lex Mater, mainly start from the premise that criminal law should be treated as a last resort. Therefore bigamy, according to most scholars of criminal law, is subsidiary in nature, therefore it can only punish the lesions of legal interests and misdemeanors against the purpose of social assistance is indispensable for living together ordered. Where are sufficient means of civil or public law, criminal law should withdraw. Finally we present our conclusions about the crime of bigamy observing these societal, cultural and legal what is happening seeking to repeal this crime as what happened with adultery.

KEY WORDS: BIGAMY; ULTIMA RATIO; CRIMINALIZATION; FAMILY, MARRIAGE, PROPERTY LEGAL; CONSTITUTION; EMPTYING; DIGNITY.

INTRODUÇÃO

A bigamia só ocorre quando um indivíduo casado sob a égide da lei realiza um novo casamento com os mesmos trâmites legais do anterior, sabendo que aquele ainda é válido, ou seja a bigamia só é crime se os dois casamentos forem no civil e ainda válidos no mesmo espaço de tempo. É importante esta compreensão pois para o senso comum basta o relacionamento poligâmico para achar que o individuo já está cometendo crime de bigamia, algo totalmente descabido no meio jurídico. Destarte a união estável e o simples casamento religioso não, têm valor legal para incriminar um indivíduo que por ventura as realize mais de uma vez.

Fazendo um arremate histórico, é de se notar que o legislador de 1940, vislumbrava quando da elaboração da lei, a proteção jurídica da família, onde visava preservar o instituto familiar, com o fito de impedir que tal sociedade conjugal se esfacelasse diante fatos alheios, que poderiam contribuir de forma imoral com a dissolução da união.

Sob um novo viés de mudanças intensas que vem ocorrendo no mundo moderno, estas vem contribuindo para o desuso deste crime, e a proibição da bigamia está cada dia se tornando incompatível com uma sociedade plural e sem preconceitos.

É fato que a nossa formação cultural, tem como base a monogamia. Contudo, a realidade social demonstra que tem se aumentado as famílias oriundas de comportamentos poligâmicos, mesmo convivendo com a visão preconceituosa de alguns segmentos religiosos, este é um novo momento, não se pode estar enraizado a velhas tradições e nem tampouco de olhos vendados para este novo contexto. Não nos esqueçamos que o preâmbulo da nossa Carta Magna defende uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

É oportuno trazer a baile neste artigo, a discrepância do Estado em tutelar uma união estável concomitante com o casamento, efetivando os direitos adquiridos em relação a concepção de uma nova família externa ao casamento, e simultaneamente ratificar a criminalização da bigamia. Sem dúvida, debruçarmos sobre este tema nos possibilitara argüir se este tipo penal se efetiva em nosso meio e quiçá levar a reflexão dos nossos legisladores para uma reavaliação deste delito que vem se caracterizando como letra morta.

1 – A FAMÍLIA

A família tem que ser compreendida não como um modelo uniforme, mas de acordo com os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo.

Por isto segundo Cristiano Chaves2 “Sob a égide do código Civil de 1916, cuja estrutura era exclusivamente matrimonializada (somente admitida a formação da família pelo casamento), dizia-se que o Direito de família era o complexo de normas e princípios que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações entre pais e filho, o vinculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, curatela e da ausência”.

A família da década de 40 que vinha do conceito do Código Civil de 1916, era uma família matrimonializada onde imperava a regra “até que a morte nos separe”, onde se admitia o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vinculo casamento; era uma família patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, mas ainda compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais. As pessoas se uniam em família com vista à formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos, daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, pois a desagregação da família corresponderia à desagregação da própria sociedade, era o modelo estatal de família, pois bem a família tinha um caráter institucional, onde era mais importante do que os próprios indivíduos que dela fazia parte e o direito assim a tutelava.

2 CHAVES, Cristiano de Farias; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, P. 23.

Superada a percepção da família como unidade produtiva e reprodutiva, pregada pelo Código de 1916, a partir dos valores predominantes naquela época descortinam-se novos contornos para o direito de Família, fundamentalmente a partir da Lex Mater de 1988, que está cimentada a partir de valores sociais e humanizadores, especialmente a dignidade humana, a solidariedade social e a igualdade substancial

Com o advento desta nova constituição e as mudanças no Código Civil de 2002, a família ganhou nova feição passou a ser plural, democrática, igualitária substancialmente, hetero ou homoparental, biológica ou sócio-afetiva, não mais unidade de produção e reprodução mas unidade sócio-afetiva onde a preocupação com a proteção a pessoa humana passou a ser necessária e essencial na formação dessa família contemporânea. A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem. Abandona-se, assim uma visão institucionalizada pela qual a família era, apenas, uma célula social fundamental, para que seja compreendida como núcleo privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana. Ou seja, afirma-se um caráter instrumental, sendo a família o meio de promoção da pessoa humana e não a finalidade almejada, esta tem hoje um caráter instrumental.

Em outras palavras, a partir da Lex Fundamentalli de 88, a instituição familiar passou a ser vista sob uma nova ótica. O foco dado agora não mais retrata um ambiente institucionalmente formado somente pelos preceitos da lei, admite-se uma pluralização da entidade familiar. A forma de constituição da família é, agora, assunto de natureza pessoal, direito resguardado pela liberdade de dispor de si mesmo, e que encontra seu fundamento no direito de personalidade, respeitadas, assim, as escolhas pessoais que envolvem a intimidade e a privacidade dos indivíduos. Partindo deste enfoque, considerar o casamento como algo intrinsecamente ligado as formalidades da lei, que a instituição familiar se dá somente por este ato solene significa voltar ao tempo e acreditar piamente em um modelo singular de família.

2 – O CRIME DE BIGAMIA

Na história do Brasil, o crime de bigamia vem desde as ordenações Filipinas que, em seu Livro V, Título XIX, determinava que: "Todo homem que sendo casado e recebido uma mulher, e não sendo o matrimônio julgado por inválido per juízo da Igreja, se com outra casar, morra por isso, dando em seguida, igual tratamento ao ato praticado por mulher"

Delito este que também foi normatizado no Código Penal do Império em 1830, no Código Penal Republicano em 1890, nestes denominado de crime de polygamia, onde se configurava o crime ao contrair casamento mais de uma vez sem estar com o anterior dissolvido por sentença de nulidade daquele contrato, ou ainda por morte de um dos cônjuges, e por último o Código Penal de 1940, que também tipifica o crime de bigamia, como está previsto em seu artigo 235 que nos diz:

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

Como já expresso em linhas anteriores e como afirma a maioria dos doutrinadores o agente ativo do crime de bigamia ou polygamia, em regra é a pessoa casada e ainda que a pessoa solteira somente poderá ser excepcionalmente punido por bigamia na hipótese de ter conhecimento que a pessoa era casada, ou seja, sabendo dessa circunstância, conforme parágrafo 1º do Código Penal.

É importante saber que este é um crime de ação penal pública incondicionada, que independe de representação da vítima ou de seu representante legal, que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr, no delito de bigamia, da data em que o fato se tornou conhecido (art. 111, IV, CP). O parágrafo primeiro do art. 235 admite a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995) e que o erro em relação à existência de casamento anterior exclui o dolo.

De acordo com a lei não há crime de bigamia, quando um homem casa duas vezes com a mesma mulher ou a mulher casa duas vezes com o mesmo homem, e não é crime viver em concubinato, ou seja, ser casado com um parceiro e viver também com outro.

Lembrando que o objeto tutelado é a instituição da família, ou seja, há interesse do estado, por isto, a ação é pública incondicionada. Mesmo se as partes, marido, 1ª e 2ª mulher concordasses com a bigamia, a ação penal será instaurada, por ferir a bigamia interesse público, qual é a proteção da família como núcleo da sociedade.

Não é considerada tentativa, senão apenas ato preparatório o processo de habilitação. Este crime é material e precisa do resultado casamento para se consumar, por isso admite a tentativa. Por exemplo se o autor do delito na cerimônia diz “sim”, e o outro diz não.

Se um Brasileiro casa a segunda vez em país que admite a poligamia (exemplo: Senegal, a maioria dos países árabes), não há crime, mas o segundo casamento não será reconhecido no Brasil.

Se um Brasileiro casa a segunda vez em país que pune a bigamia (exemplo: Paraguai, Argentina, a maioria dos países ocidentais), há crime punível no Brasil.

3 – A VISÃO DA DOUTRINA NO CRIME DE BIGAMIA

Segundo a doutrina o bem jurídico ofendido na bigamia é a família e a ordem jurídica matrimonial, consistente no princípio monogâmico, o que é de se notar é que a estrutura familiar, via de regra, nas sociedades ocidentais funda-se em ligações monogâmicas, e na nossa cultura não se admite a bigamia, tendo inclusive o novo Código Civil em seu art. 1.521, V, previsto que não podem casar as pessoas casadas. Por isto em reforço à legislação civil, o Código Penal tipificou como crime a conduta daquele que, sendo casado, contrai novo vínculo matrimonial, como se nota essa previsão protege a instituição do casamento e a organização familiar que dele decorre ou seja, o objeto tutelado é a instituição familial, não a fidelidade conjugal se bem que esta depois da revogação do artigo 240 do Código Penal, já não é mais protegida pelo Estado.

Já a conduta típica consiste em pessoa casada contrair alguém, sendo casado, novo casamento. Figura como pressuposto para a configuração do delito a existência formal de casamento civil anterior. Logo, suficiente a vigência do casamento, não sua validade, que persiste, na hipótese de casamento nulo, até a declaração da nulidade, e em se tratando de casamento anulável, até a anulação. Portanto não há bigamia se juridicamente inexiste o matrimônio ou quando a declaração não é realizada perante autoridade competente e deixa ainda de existir o crime quando é declarado nulo ou anulado o matrimônio anterior ou o posterior, este por razão diversa da bigamia.

Este crime tem como sujeito ativo a pessoa que sendo casada, contrai novo matrimônio, ou que sendo solteira, viúva ou divorciada, contrai núpcias com pessoa que sabe ser casada, e como sujeito passivo o Estado e secundariamente, o cônjuge do primeiro casamento e o contraente do segundo, desde que de boa-fé. É de se notar que o legislador previu uma figura especial, com pena mais branda, para a pessoa solteira, viúva, divorciada, que, conhecendo aquela circunstância ainda assim contrai núpcias de acordo com o primeiro parágrafo do artigo 235 do CP.

O tipo subjetivo neste crime é o dolo, direto ou eventual que deve estar consubstanciado na vontade livre e consciente de contrair novo matrimônio enquanto vige o primeiro, o agente deve estar ciente da existência desse impedimento caso contrário haverá erro de tipo o qual exclui o dolo e conseqüentemente o crime.

A consumação do delito ocorre no instante da celebração do novo casamento, segundo a regra do art. 1.514 do CC. Admite-se a tentativa nos atos de celebração. É o que ocorre, por exemplo, quando o juiz interrompe a cerimônia, após a manifestação de vontade do agente no sentido de se casar, por lhe ser denunciado que o contraente já é casado. Mas há que se fazer uma observação em relação a tentativa a doutrina diverge para alguns os atos praticados para o advento da ocasião dessa declaração de vontade são preparatórios, não podem ser tomados como atos de execução, pois esta começa e acaba com a declaração de vontade, e não começa sem a declaração, para outros até a consumação, os atos são preparatórios ou executivos, que se iniciam com o ato da celebração, portanto se admite a tentativa nos atos de celebração.

Como se nota a criminalização da bigamia foi uma das formas de tutelar o instituto do casamento e, por conseguinte a família por meio deste. Porem com as mudanças nas últimas décadas, em especial ao reconhecimento da união estável, acabou por mergulhar o instituto do casamento numa profunda contradição. Pois no plano prático não há diferença nenhuma entre casamento e união estável. Tal assertiva é perceptível em o nosso ordenamento quando a Constituição de 1988 estabelece no § 3º do art.226, que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” O C. Civil, nos arts. 1723-1727 também regula essa espécie de união de fato, reconhecendo-a “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” A união estável constitui-se de pessoas (homem e mulher solteiros ou viúvos ou divorciados ou separados judicialmente ou de fato) que vivem juntas, como se casados fossem, podendo casar-se quando quiserem, visto que são desimpedidos na forma da lei (C.Civil, § 1º do art.1723). A união estável é um fato jurídico, posto fato do homem que gera efeitos jurídicos. Dá-se entre companheiros parceiros ou conviventes, gerando efeitos patrimoniais. O § 3 do art.226 da CF/88 é regulado pela L. 9278/96, que estabelece, no art.5º que os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. A simples comparação dos arts. 1.566 (deveres dos cônjuges) e 1.724 (deveres dos companheiros) confirma que o que foi posto para um foi posto para o outro.

4 – A VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO CRIME DE BIGAMIA

A jurisprudência tem se pronunciado sempre no sentido de que só configura o crime de bigamia, quando houver o ato de contrair novo casamento, sendo legalmente casado. Casamento estes dentro das regras da lei, então os casos de casamentos religiosos não é pressuposto deste delito, salvo claro se efetuado na forma da lei, então se o agente casado, contrai três ou mais casamentos há concursos material de delitos, e a testemunha que tem ciência do casamento anterior e declara a inexistência de impedimento é partícipe do delito de bigamia, e nos casos de atos preparatórios do novo matrimônio podem configurar o delito de falsidade documental. No entanto, após a consumação, a bigamia absorve o delito de falso. O crime-fim que é a bigamia absorve o crime-meio que é a falsidade ideológica, que constitui etapa de sua realização. Portanto o que se nota é que a celebração de mais de um casamento configura crimes autônomos e que predomina o entendimento que a bigamia absorve o crime de falsidade “major aborbet minorem”. Outro ponto importante é a separação judicial do agente, visto que esta não extingue o vínculo matrimonial, que persiste até a decretação do divórcio. De semelhante, também a declaração de ausência não constitui presunção de morte, logo não impede a configuração do delito de bigamia se o cônjuge contrai novo matrimônio.

Para uma maior compreensão podemos citar algumas posições judiciais:

“Haverá o crime, desde que vigente o casamento anterior” (TJSP, RT 557/301).

“O divórcio obtido posteriormente, em relação ao segundo casamento, não isenta o agente do delito de bigamia” (TJSP, RJTJSP 110/503)

“Pratica bigamia, se contrair novo casamento antes de divorciar-se” (TJPR, RT 549/351).

“A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr da data em que o crime se tornou conhecido da autoridade pública” (TJSP, SER 189.329-3, j. 13.11.95, in bol. AASP n° 1.962).

“Configura o crime de bigamia o fato de brasileiro, já casado no Brasil, contrai novo matrimônio no Paraguai, pois ambos os países punem a bigamia, o que preenche o requisito da extraterritorialidade do Código Penal” (TJSP, RT 516/287, 523/374)

1ª Ementa - SUMULA DA JURIS.PREDOMINANTE(ART.122 RI) DES. CASSIA MEDEIROS - Julgamento: 21/12/2006 - ORGAO ESPECIAL SUMULA 122, DO T.J.R.J. UNIOES ESTAVEIS CONCOMITANTES NAO RECONHECIMENTO

Uniformização de jurisprudência. Proposição de Súmula da Jurisprudência Predominante do Tribunal. Enunciado encaminhado pelo CEDES. Matéria de direito de família. Reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Inadmissibilidade. Enunciado n. 14 - "É inadmissível o reconhecimento dúplice de uniões estáveis concomitantes". Justificativa: A Constituição Federal reconheceu a união estável como entidade familiar (artigo 226, par. 3.). A moral da família é uma só. A duplicidade de casamentos implica na figura típica da bigamia, logo não pode ser admitida a "bigamia" na união estável. Enunciado aprovado com a seguinte emenda de redação: "14 - É inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis concomitantes".

Habeas Corpus – Direito Penal – Crime de bigamia e falsidade ideológica – Trancamento da ação penal quanto ao delito de bigamia determinado pelo Tribunal a quo por ausência de justa causa – Impossibilidade de seguimento do processo – Crime quanto à figura do crime de falsidade – Aplicação do princípio da consunção. 1. O delito de bigamia exige para se consumar a precedente falsidade, isto é: a declaração falsa, no processo preliminar de habilitação do segundo casamento, de que inexiste impedimento legal. 2. Constituindo-se a falsidade ideológica (crime–meio) etapa da realização da prática do crime de bigamia (crime-fim), não há concurso do crime entre estes delitos. 3. Assim, declarada anteriormente a atipicidade da conduta do crime de bigamia pela Corte de origem, não há como, na espécie, subsistir a figura delitiva da falsidade ideológica, em razão do principio da consumação. 4. Ordem concedida para determinar a extensão dos efeitos quanto ao trancamento da ação penal do crime de bigamia, anteriormente deferido pelo Tribunal a quo, a figura delitiva precedente da falsidade ideológica. (STJ–HC 2004/0161507-1 5ª T. – Rel. Min. Laurita Vaz – DJ 11.04.2005).

Neste julgado a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas-corpus em favor de denunciado pela prática dos crimes de bigamia e falsidade ideológica. A ordem determina o trancamento da ação penal também quanto ao crime de falsidade ideológica.

O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJ-MS) havia concedido parcialmente o pedido originário, determinando o trancamento da ação apenas quanto ao crime de bigamia em razão da atipicidade da conduta efetiva do denunciado.

O pedido de habeas-corpus sustentava que a ação penal careceria de justa causa, já que o crime de falsidade ideológica seria crime-meio para o de bigamia, que o teria absorvido. O crime de falsidade ideológica, portanto, inexistiria, em face do princípio da consunção.

A ministra Laurita Vaz, ao justificar seu voto, afirma que "o elemento subjetivo do tipo penal da bigamia é o dolo, a vontade de contrair matrimônio estando vigente casamento anterior. A figura prevista no art. 235 do Código Penal necessita para se consumar que o agente declare, em documento público, ser solteiro, viúvo ou divorciado, ou seja, que não há impedimento ao matrimônio. [...] O processo preliminar de habilitação para o segundo casamento importa necessariamente declaração falsa por parte do agente".

Por isso, declarada a atipicidade da conduta do crime de bigamia pelo tribunal local, não poderia persistir a figura delitiva da falsidade ideológica, razão pela qual a relatora determinou a extensão dos efeitos do trancamento da ação penal do crime de bigamia à falsidade ideológica. A decisão foi unânime.

Apelação – Bigamia – Reexame de provas – Erro na certidão cartorária – Pessoa humilde e de pouca cultura – Ausência de dolo – Absolvição – Condição ais benéfica que a declaração da prescrição – Dá-se provimento ao recurso. Se não houve oposição ao casamento da Apelante, que fez constar em certidão a palavra divórcio ao invés de separação, sendo a mesma pessoa humilde e de pouca cultura, não há falar em dolo, impondo-se a absolvição, circunstância mais justa e benéfica que a declaração da extinção da punibilidade pela prescrição. (TJMG – AC. 1.0000.00.301935-3/000 – 3ª C. Crim. – Rel. Juiz Gomes Lima – j. 06.05.2003)

Como vimos nos julgados, o casamento que é só uma das formas de constituir família, acaba por ser o elemento principal na formação do delito de bigamia, o que nos leva a crer que há uma diferença uma desigualdade no trato com as formas de constituição de família, pois o casamento não é a única, e como no direito penal não se pode fazer analogia in Malan partem, podemos afirmar então que esta tutela diferenciada do casamento em relação com outras formas de constituição de famílias fere o principio da isonomia.

5 – UMA BREVE VISÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS SOBRE FAMÍLIA, CASAMENTO E BIGAMIA

Para as Ciências Sociais a instituição familiar é uma das principais instituições sociais já que a mesma tem uma forte influência na formação do indivíduo, pois esta é o primeiro grupo social a que pertencemos. Este grupo social tem uma estrutura que em alguns aspectos varia no tempo e no espaço como quanto ao número de casamentos que podem ser monogâmica que é aquela em que cada esposo e cada esposa têm apenas um cônjuge, quer seja uma aliança indissolúvel (até a morte), quer se admita o divórcio (como é o caso da nossa sociedade). A lei brasileira permite um novo casamento após o término do casamento anterior; ou poligâmica é aquela em que cada esposo pode ter dois ou mais cônjuges. Ao casamento de uma mulher com dois ou mais homens dá-se o nome de poliandria. Esse tipo de família existe, por exemplo, entre as tribos do Tibete e entre os esquimós. Ao casamento de um homem com várias mulheres damos o nome de poliginia. Essa prática pode ser encontrada entre certas tribos africanas, entre os mórmons e entre os povos que seguem a religião muçulmana.

O casamento é uma exigência social e em toda parte, existe uma distinção entre o casamento, isto é, um vínculo legal e aprovado pelo grupo entre um homem e uma mulher, e o tipo de união, permanente ou temporária, que resulta do consentimento ou da violência. Todas as sociedades possuem algum modo de estabelecer uma distinção entre as uniões livres e as uniões legítimas.

Como se nota o casamento é uma exigência social e existe em todas as sociedades, mas estas mudam e conseqüentemente mudam também as relações entre estes indivíduos, e com o foco centralizado na dignidade da pessoa humana defendidas nas sociedades atuais, novas formas de uniões se estabelecem, e com isto o modelo antigo, velho de casamento acaba perdendo a sua atratividade exatamente devido a burocracia incorporada no mesmo.

Como a punição da bigamia em nosso país tem por objetivo proteger a família, com o reconhecimento da união estável e de outras formas de constituição de família esta punição fica sem sentido, pois as pessoas podem constituir mais de uma família com dois ou mais parceiros sem serem casadas e não estão cometendo delito algum.

Podemos dizer sobre a família atual, que houve uma conquista da sociedade e que legalmente já são aceitos vários tipos de família. Essa pluralidade é vista como uma vitória, uma vez que o modelo social mais tradicional - o modelo nuclear - não é mais sancionado pela lei como o único modelo possível.

Mas devemos lembrar que ainda há resquício de preconceito tutelados nas leis infraconstitucionais, como é o caso da criminalização quando sendo casado contrai novo casamento.

6 – O PRINCIPIO DA “ULTIMA RATIO” VERSUS CRIME DE BIGAMIA

É tutelado, através do Direito Penal, ao Estado a capacidade de demonstrar a sua força coercitiva com o firme propósito de defender o interesse social, proteger a coletividade. No entanto, este poder coercitivo não pode ser exercido de qualquer forma, a qualquer custo. Como as pessoas interpretam o pensamento de Maquiavel3 “os fins justificam os meios.”

O Estado de Direito necessariamente deve ser obedecido, agindo sempre em consonância com que prega as regras jurídicas, partindo do principio que esse controle deve estar pautado sobre os princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade,

É ponto de partida trabalhar com a idéia de que a função precípua do Direito Penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais à tranqüilidade social, porém como “ultima ratio”, ou seja, como última opção de controle, tendo em vista o fracasso dos outros meios formais de controle social em relação à proteção dos bens da vida relevantes.

Isso implica dizer que, com a possibilidade de coibir determinadas condutas e conseqüentemente proteger bens substanciais ao ser humano por meio de outros ramos do direito (civil, administrativo, trabalhista), o Estado deve ser cerceado de lançar mão do Direito Penal para tal.

Seguindo este raciocínio é oportuno citar o trecho do artigo do advogado Thiago Bottino do Amaral4 denominado; A segurança por meio da estruturação da ponderação:

Com efeito, embora essa nova postura do Poder Judiciário surja ligada à defesa dos direitos fundamentais e à valorização dos direitos humanos, sua aplicação em matéria de direito penal e processual penal não tem se orientado pela proteção da liberdade dos indivíduos. Ao contrário, tem se revelado um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e

 
3 MAQUIAVEL, Nicolau. O Principe. Trad. Pieto Nassetti. 2. Ed. São Paulo: Martin Claret, 2007.

4 BOTINO, Thiago. A segurança por meio da estruturação da ponderação - critérios para ponderação em matéria penal. Disponível na Internet: . Acesso em 30 de outubro de 2009.

persecutórios do Estado. Portanto, é imperioso o estabelecimento de uma reserva de ponderação aplicável exclusivamente em matéria de direito penal e processual penal (que envolvem os conflitos entre os direitos fundamentais e, em especial, as liberdades individuais, e o interesse público repressivo).

Apropriando-se de tais considerações, é contundente o argumento que assevera que o Direito Penal deve abster-se de sua aplicabilidade imediata quando a matéria versar sobre direitos fundamentais conflitantes. Em suma, este deverá ser evocado somente quando todos os demais ramos tiverem sucumbidos no anseio de assegurar direitos substanciais protegidos pela nossa Lex Mater.

7 – A BIGAMIA: ESVAZIAMENTO DO TIPO PENAL, E O CONFRONTO COM PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS

Como se percebe o conceito de família mudou, abarca hoje não só a família oriunda do casamento civil, mas também as uniões estáveis, as monoparentais, as anaparentais, entre outras, já que o rol explicito na constituição não é taxativo mas meramente exemplificativo dando margem a uma pluralidade de famílias desde que constituídas através do afeto, da solidariedade.

É esdrúxulo pensar nesta situação, tão comum no nosso cotidiano, quando por exemplo, um indivíduo que não contrai matrimônio conforme atesta a lei Civil, convive com duas famílias configurando união estável com ambas sem ser tipificado pelo artigo 235 do C.Penal. Vale a pena repisar: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Ou seja, hermeneuticamente união estável é sinônimo de casamento. Logo, é questionável qualquer argumento que diferencie a situação supracitada com aquele(a) que contraiu o casamento civil e concomitantemente contrai mais um matrimônio, sem que o anterior tenha cessado os efeitos. Conforme o disposto legal, citado anteriormente, este poderá ser punido com uma pena de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, uma pena alta; guardada as devidas proporções, chega a ser hilário.

Contextualizando os nossos argumentos, conforme o SIS, Sistema de Indicadores Sociais o Número de casamentos registrados nos cartórios do país cresceu 31,1%, de 1998 a 2007, assim, a capacidade de cometer o ilícito em comento aumenta consideravelmente em nosso meio.

Diante do exposto, será algo comum argumentar: se um indivíduo com duas, três ou mais uniões estáveis não é punido na seara penal, por que o que contraiu o casamento no civil tem que ser taxado por ter cometido crime de Bigamia? Não estaria o direito penal ofendendo a sua dignidade? Não estaria indo contra o Principio da Isonomia?

Se o bem ofendido é a família, não estaria o direito penal ao punir o sujeito que sendo casado contrai novo casamento no civil passando por cima de um principio basilar que rege essa nova concepção de família, o principio da dignidade da pessoa humana?. Não estaria o direito penal no artigo 235, ainda atrelado a um conceito já superado de família?.

A nosso ver o direito penal fere no artigo 235 de seu código, o princípio da isonomia, haja vista que trata de forma desigual as uniões utilizadas para a formação das famílias ao punir mais de um casamento no civil e não punir nas outras formas de uniões. Fere também o principio da dignidade da pessoa humana, já que a família cumpre modernamente um papel funcionalizado, devendo, efetivamente, servi como ambiente propício para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças, valores, servindo como alicerce fundamental para alcance da felicidade. A família existe em razão de seus componentes e não estes em função dela, por isto não se deve punir os seus integrantes em função desta.

8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por isto podemos concluir que o crime de Bigamia está ultrapassado da mesma forma que o de adultério e não deveria ser tutelado pelo direito penal, deixando este para outros ramos. Haja vista, conforme mencionado anteriormente, o principio da “ultima ratio” deve ser efetivado para este campo do Direito, ou seja o Direito Penal só entra em cena quando nenhuma outra solucionou o ilícito. Assim, a Bigamia poderia ser resolvida em outra esfera do direito como o Direito Civil, pois onde bastem os meios do Direito Civil ou do Direito Público, o Direito Penal deve retirar-se.

À medida que o Estado deixa de interferir na vida íntima do individuo como meio de impor a sua ideologia coercitiva melhor será para a coletividade; o autoritarismo estatal já esta superado na chamada era constitucional onde os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana tem que estar em primeiro plano, no foco central.

Numa sociedade pluralista na qual as pessoas se mostram e fazem questão de aparecer, de ser vista por todos, onde permitem que suas intimidades sejam expostas, recusam interferências aos seus comportamentos íntimos, o crime de Bigamia não tem espaço nesse novo modelo de sociedade, principalmente quando confronta-se a possibilidade de tipificação deste crime quando instituída pelo casamento diferentemente da família formada pela união estável. Tal diferenciação, por conseguinte vem ofender a dignidade da pessoa humana, já que trata com diferença aqueles que a lei procura tratá-los como iguais.

Por isto após o advento da constituição que modificou, pluralizou, democratizou e humanizou a família, este tipo penal vem passando, por um processo de esvaziamento e  contradição quando confrontado com alguns princípios da Lex Mater como o da Dignidade da Pessoa Humana e da Isonomia.

REFERÊNCIAS

BOTTINO, Thiago. A segurança por meio da estruturação da ponderação - critérios para ponderação em matéria penal. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 30 de outubro de 2009. 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume 3. 6ª ed., ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

CHAVES, Cristiano de Farias; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen


Publicado por: DIONES SOUZA MAIA

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