Fichamento de ZUMTHOR, Paul. “A Permanência da Voz”, O Correio, pp. 04-08. Rio de Janeiro, Ed. Da Fundação Getúlio Vargas, ano 13, Nº 10, outubro 1985
Análise dos artigos de Paul Zumthor e Silvia Davini.O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
FICHAMENTO 1ª PARTE (acerca dos artigos de Paul Zumthor e Silvia Davini):
Questão 1:
a) De acordo com Paul Zumthor é possível distinguir nas sociedades quatro tipos gerais de oralidade, sendo que, o autor alerta para o fato de que as tipologias não são necessariamente excludentes e sucessivas cronologicamente. São elas:
- a “oralidade primária”: existentes nas sociedades ágrafas, as quais não tinham nenhum contato com a palavra escrita. Assim, tais sociedades utilizavam-se da palavra falada como o único canal de comunicação, grande responsável pela gestão da memória social, visto constituir-se na maneira de transmitir o saber entre as gerações. Hoje essas sociedades estão quase totalmente desaparecidas e as que restam, informa-nos o autor, encontram-se nas “chamadas culturas primitivas” em pontos da faixa equatorial (ZUMTHOR, 1985: pg.5).
- a “oralidade mista”: situação em que a oralidade convive com a escrita, porém a influência que esta última exerce é considerada parcial, lenta e externa. Esse foi o tipo de realidade predominante na Idade Média, em que embora a Igreja dominasse a linguagem da escrita, a grande massa da população era de iletrados e que sequer tinham acesso às obras escritas (SOARES DE DEUS, 2003: pg.4). Zumthor aponta que ainda hoje, pode-se vislumbrar situação semelhante em algumas comunidades nas quais a língua nacional, dotada de escrita, convive com línguas locais ou dialetos, de práticas orais. A partir daí, ele aponta duas situações possíveis: o conflito entre a literatura nacional escrita e a poesia oral; ou “a tentativa dos movimentos regionalistas no sentido de criar uma versão literária (logo, escrita) do idioma local”. Para essa última hipótese, o autor sinaliza ainda que não necessariamente o resultado seja o fim da tradição oral.
- a “oralidade secundária”: aquela na qual a manifestação da voz existe a partir da escrita, tendo esta nítida predominância sobre aquela. Esse é o tipo mais freqüente de realidade social existente desde o século XII, "quando a escrita se consolidou no ocidente" (DAVINI, 1998: 37). E é essa predominância da escrita que, segundo Paul Zumthor, acarreta a separação entre pensamento e ação, levando a percepção do tempo não como ciclos que se repetem, mas como acontecimentos que linearmente se sucedem. Daí também, uma das origens do comportamento moderno tipicamente racionalista, individualista e burocratizado.
- a “oralidade mediatizada”: como o nome sugere, é aquela realidade que nos faz ser conhecida pela interferência midiática, qualquer que seja o suporte de difusão da informação (seja walk-talk, seja satélite de comunicação). Esse tipo de classificação difere das três anteriores que comparavam o grau de atuação da voz e da escrita. Isso porque na mediatização, ou midiatização, surge um novo elemento: a ação dos meios eletrônicos de comunicação, traduzindo o que hoje de maneira geral entende-se por mídia.
b) Sem dúvida, inserida que estou em uma sociedade ocidental contemporânea, minha realidade coexiste a "oralidade secundária" com a "oralidade mediatizada". É fácil constatar que cotidianamente e constantemente estou sob atuação da 'palavra escrita', e da 'palavra falada' pensada a partir da escrita. Além disso, o uso de televisão, cinema, jornal, rádio, telefone, máquina fotográfica, internet, gravador dentre muitos outros, indicam o quanto as informações produzidas, recebidas e compartilhadas estão mediadas por algum meio eletrônico.
c) O teatro contemporâneo pode assumir lugar de extrema relevância na presente conjuntura das sociedades de oralidade mediatizada e da voz rebaixada a segundo plano. Isso porque o teatro em essência se faz entre ator e público, não necessitando para tanto de nenhum meio eletrônico ou tecnológico. O mesmo não ocorre com outras manifestações artísticas por suas próprias características (cinema, fotografia, rádio, impressos) ou pela forma como são praticadas atualmente (caso das apresentações musicais _raramente independentes de instrumentos eletrônicos, gravadores etc_ e da poesia contemporânea _poesia concreta, poesia visual etc).
Nas palavras de Zumthor: “Devido a um preconceito há vários séculos arraigado nas mentalidades e no gosto do Ocidente, só admitimos os produtos da arte e da língua sob forma escrita, abrindo uma única exceção para o teatro” (ZUMTHOR, 1985: pg.4). Entretanto para que o teatro dos dias de hoje possa assumir esse papel, deve haver um trabalho de recuperação da ‘vocalidade’ do texto teatral, em que autor, ator e diretor possam conscientemente definir a valoração da palavra em cena, estabelecendo, assim, o que Silvia Davini denomina de jogo da palavra (DAVINI, 1998: 43 e 44).
Questão 2:
a) Gesto, Gestualidade e Gestus:
O conceito de gestualidade, trazido de Brecht, refere-se aquelas características físicas (incluindo-se aí a voz) que primeiro aparecem no trabalho do ator pela explicitação da personagem. Nesse trabalho, o ator deve controlar sua própria gestualidade cotidiana, bem como, a gestualidade totalmente convencional. A partir daí, o ator chega ao gestus, que são aquelas condutas e atitudes materializadas que nos permitem tirar conclusões acerca da situação social da personagem.
b) Frase, Fraseado e Estilo:
A frase no contexto musical é a menor unidade de sentido completo da composição musical. Forma-se a partir dos elementos de sons combinados em diferentes “alturas, o regime de duração, os acentos, suas direções, as variações de velocidade e intensidade, as articulações, as cesuras, seus encaixes, as ligaduras” (DAVINI, 1998: pg. 41). A autora mostra uma equiparação entre a frase e o gestus.
O conjunto de frases forma a composição musical, assim como o conjunto de gestus forma a peça teatral. Já o fraseado é a representação gráfica da oposição das frases com intuito de demonstrar graficamente o papel que elas ocupam nos fragmentos musicais. A observação importante é a de que tal notação analítica não deve sobrepor ou anteceder a frase cantada ou representada em cena. As opções estéticas e instrumentais adotadas pelo artista ao realizar sua obra, irão definir o estilo a ela inerente. Ressalta-se que essas opções estão sempre atreladas ao contexto histórico dado e aos recursos disponíveis. Assim, a cada vez que, por exemplo, um encenador for ‘adaptar’ determinado texto teatral, deve considerar tais circunstâncias históricas e estéticas para perceber o lugar de sua identificação e o de sua transgressão ao texto autoral. Nesse sentido, Davini nos informa que muitas vezes essa relação entre autor e intérprete fica limitada por um entendimento rígido e fechado do que seja estilo (DAVINI, 1998: pg. 41).
c) Atitude, Intenção, Atividade Fonatória e Microatuação:
Nos momentos de verbalização do ator em cena estão presentes dois processos diferenciados embora intimamente interconectados: a atividade fonatória e a microatuação. A atividade fonatória corresponde ao mecanismo de produção fisiológica do som (palavra, ruído, gemido etc) e todos os fenômenos físico-químicos que tal processo desencadeia no corpo humano. Já a microatuação caracteriza-se pelas inúmeras e sutis variações gestuais e expressivas surgidas quando da atuação vocal, e pode ser mais bem percebida quando isolada da atividade fonatória, pelo contraste que gera tal separação. Atitude e Intenção referem-se à compreensão e abordagem dada pelo ator ao texto no campo da semântica. São instâncias principalmente da passagem do texto lido e pensado para o texto falado e atuado.
2ª PARTE (relatório sobre o trabalho em sala): Questões 1e 2:
Após a escolha do grupo e do autor a ser trabalhado, fizemos a leitura individual dos textos. Particularmente, li as peças “Mãe Coragem” e “Luz nas Trevas”, além de textos pesquisados pelo grupo acerca da história e teoria do teatro Brechtiano. A partir daí o grupo dedicou algumas aulas na preparação do seminário sobre Brecht. Para tanto, discutimos em sala as características estilísticas do autor e das três peças que nos foram propostas. Também subdividimos o grupo em três, como forma de dinamizar o trabalho, para que cada subgrupo pudesse dedicar mais atenção ao estudo de uma peça e nela se aprofundar.
Em casa, fiz apontamentos e registros de minha compreensão acerca do teatro Brechtiano, utilizando a peça “Mãe Coragem” como referência ilustrativa à minha análise. Na apresentação do seminário abordamos temas como: modos literários; tratamento das ações; recursos estilísticos; objetivos do autor; recursos cênico-literários e os respectivos desdobramentos. Paralelamente à preparação para a realização dos seminários, foram realizados em sala exercícios de treinamento vocal e de consciência da respiração. Para mim, o Princípio Dinâmico dos Três Apoios foi um dos mais consolidados ao longo do curso. Consiste em apoiar os pés no chão, com o peso do corpo deslocado ligeiramente para frente; apoiar o ar sobre a pelve, mantendo o tônus muscular na região abdominal; apoiar o ar sobre a epiglote, deixando nuca e ombros relaxados. Outros exercícios feitos em diferentes posturas (no chão; com passos para frente; correndo; saltando; levantando em espiral) também se utilizam deste princípio, pois procuram manter o alinhamento e a conexão entre os apoios.
A seguir, nos foi proposto o estudo em grupo acerca das demandas de atuação surgidas na interpretação do texto de Brecht. Eu e Larissa discutimos principalmente as especificidades e desafios da interpretação distanciada, da preparação do ator-narrador, da construção do ‘gestus social’ dentre outros. Em vários momentos a professora nos orientou para um entendimento do texto teatral como um texto oral, utilizando como suporte teórico a abordagem da Pragmática e da Teoria dos Atos de Fala, cunhados pelo filósofo britânico John Austin. A análise pragmática, diferentemente da semântica ou da sintática, considera o uso da linguagem nos diferentes contextos e situações concretas em que ela se insere; ou seja, elementos não presentes diretamente no texto como tempo, lugar, emoção e atitude dos falantes são considerados nesse tipo de análise (MARCONDES, 2006: pg.219).
A próxima etapa foi a definição das cenas-chaves do texto trabalhado. Deveríamos então perceber quais eram as cenas nas quais os protagonistas operavam ou apresentavam alguma transformação relevante para o desenrolar da peça. No caso de “Mãe Coragem” não foi uma tarefa simples, tendo em vista certa independência em cada acontecimento da peça. Pelo mesmo motivo, é mais apropriado dizer que a história divide-se em episódios do que dizer que se divide em cenas. Prosseguindo então na tarefa de escolha dos 'episódios-chaves' fizemos a síntese escrita de cada episódio, procedendo à descrição objetiva do que acontece em cada um deles.
Após algumas discussões, concordamos na escolha de três episódios nos quais constam os fatos mais marcantes da história (como, por exemplo, a morte epistolar de cada filho) e nos quais a proposta didática de Brecht é ressaltada. Dos três 'episódios-chave', um foi escolhido para análise mais detalhada e para o desenvolvimento do trabalho prático. Surgiu então, a questão dos blocos de significado. A proposta era separar o episódio em módulos de sentido, e posteriormente buscar as palavras-chaves. Tal exercício nos permitiu trabalhar as atitudes e intenções das personagens. Foi interessante notar que no texto de "Mãe Coragem" muitas vezes esses dois elementos se contradizem. Isso porque para gerar alguns de seus recursos literários mais freqüentes, como a paródia, a ironia e a sátira, Brecht optava por confrontar a ação _atitude_ com sua motivação _intenção.
Nesse sentido percebe-se que a paródia vem do choque entre a forma e o conteúdo, a ironia vem da distância entre o que se diz e o que se quer dizer, e a sátira vem do elemento cômico e do didático levados ao paradoxal (ROSENFELD, 2000: pgs.156 a 158). O passo seguinte foi aprender procedimentos para decorar o texto da cena de forma consolidada e principalmente que fugisse ao que Zumthor chama de "oralidade secundária" (ZUMTHOR, 1985: pg.5). Assim, a intenção foi decorar e falar a cena de maneira não subordinada ao texto escrito.
Para tanto, um dos exercícios propostos foi falar a cena em voz alta, procurando sempre aproximar-se o melhor possível da situação de performance. Uma boa opção seria decorar a partir da leitura em voz alta de uma outra pessoa, fazendo a repetição trecho a trecho do que fosse sendo escutado. Infelizmente, não tive a oportunidade de exercitar por esse método. Ao fazer sucessivas leituras em voz alta, pude perceber minha tendência em acentuar o começo das frases sem corresponder o acento para o final delas.
Fiz também a repetição oral da cena juntando a última palavra de uma frase com parte da palavra da frase seguinte. Esse exercício foi bastante eficiente pra decorar o texto como uma ladainha e assim, jamais esquecer o encadeamento das frases. Possibilita desconstruir a pontuação para que a referência visual não predomine em detrimento da referência auditiva. Pra mim, foi bastante transformador essa nova compreensão do texto a ser falado em cena. Isso porque eu tinha o hábito de escrever o texto com intuito de decorá-lo, pois sempre tive boa memória visual. Entretanto, percebi que tal método proporciona mais a fixação do texto escrito, sua ortografia e pontuação, do que a compreensão da intenção das falas e suas nuances vocais. Todo esse processo de fixação sonora do texto foi consolidado durante os ensaios das cenas, realizados tanto individualmente quanto com a professora.
Nesses momentos de ensaio, é que pude conceber os personagens -sobretudo a Ivette Portier, visto ser a que mais trabalhei- como um modo de fala, abandonando a visão paradigmática de entidade autônoma psicológica. Nesse sentido, enquanto buscava o timbre de voz, as microatuações, as pausas necessárias, a altura e intensidade adequadas a cada intenção das falas, ia definindo a própria personalidade da Ivette. Ou seja, a ‘construção’ da personagem vinha com o estudo da dimensão acústica da palavra em cena e com a percepção da palavra falada como um ato em si.
O momento de avaliação dos registros das cenas trabalhadas foi bastante produtivo, pois mais uma vez os conceitos trabalhados ao longo do curso puderam ser observados e discutidos na prática.
BIBLIOGRAFIA
DAVINI, Silvia Adriana. “O Jogo da Palavra”, Humanidades-Teatro. Nº 44, pp. 37-44, Ed.Unb, Brasília, 1998.
SOARES DE DEUS, Paulo Roberto. “Folclore e cultura clerical na Idade Média: a viagem de São Brandão”. n. 6, 2003. disponível em http://www.brathair.com/Revista/N6/folclore.pdf; acessado em 10/06/2007.
SOUZA FILHO, Danilo Marcondes de. “A Teoria dos Atos de Fala como concepção pragmática de linguagem”. FILOSOFIA UNISINOS, v. 07, n. 3, 2006. Disponível em: http://www.unisinos.br/publicacoescientificas/images/stories/pdfs_filosofia/vol7n3/art
01_marcondes.pdf acessado em: 14/06/2007.
ZUMTHOR, Paul. “A Permanência da Voz”, O Correio, pp. 04-08. Rio de Janeiro, Ed. Da Fundação Getúlio Vargas, ano 13, Nº 10, outubro 1985.
Publicado por: Melina de Oliveira Gonçalves Fernandez Costa
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